Recapitulando: aula prática sobre a geringonça



Depois de “geringonça” ser consagrada como nome da fórmula de governo desenhada no fim de 2015, é muito irritante o seu uso a torto e a direito para designar todo e qualquer tipo de coligação ou entendimento partidário de governo. Eleições na Suécia? Geringonça à vista. Eleições na Bélgica? Geringonça pela certa. Eleições na Holanda? Lá vem uma geringonça. Eleições na Madeira? Geringonça PSD/CDS. Eleições nos Açores? Geringonça para afastar PS. Eleições na Alemanha? Duas geringonças podem ser possíveis. Eleições em Portugal 2019? Geringonça reformulada.

Não é nada disto. A fórmula criada por Paulo Portas (salvo erro, citando Vasco Pulido Valente) para, num discurso parlamentar, designar a fórmula política que estava a emergir à esquerda, é absolutamente original e específica. Nada tem a ver com banalização engraçadinha. O que aconteceu na legislatura 2015/19, para suportar o governo PS, nunca acontecera em Portugal e é muito raro que aconteça. Não conheço outros exemplos no mundo, embora possam certamente acontecer.

Coligações entre partidos sempre as houve, de várias formas e feitios, nomeadamente coligações de governo ou de apoio parlamentar. São acordos assumidos entre todas as partes para esse efeito. Não têm qualquer tipo de novidade, por muito que os figurinos possam ajustar-se às circunstâncias políticas.

O que produziu a geringonça em Portugal foi uma circunstância nunca vista antes de 2015: resultando das eleições uma maioria de esquerda, o maior partido desta não era o partido mais votado da eleição. Por isto é que, ao contrário do que sempre fizera desde 1976 nessas circunstâncias, o PS não pôde atirar-se para fora de pé, apresentando-se a querer governar sozinho. A mera navegação incerta de equilíbrios entre parte da direita e o resto da esquerda não era possível.

Com os resultados de 2015, o PS não poderia contar com ninguém à direita; e, à esquerda, por estar com legitimidade mais frágil, tinha que munir-se de acordos escritos que lhe garantissem as condições de partida e de sobrevivência, o que nunca antes sucedera. Ao mesmo tempo, os parceiros à esquerda não queriam coligar-se formalmente com o PS e, prezando a independência de cada um, ainda menos queriam coligar-se entre si.

É isto que conduziu àquele jogo de três acordos separados cada um com o PS, não havendo qualquer acordo entre os outros três, nem parte destes. É este jogo - simultaneamente articulado e desarticulado - que produziu a desengonçada, mas imaginosa geringonça, de que o melhor retrato que conheço é o cartoon formidável de Hélder Oliveira, a ilustrar, no Expresso, em 10 de Maio de 2016, a peça “A história secreta da geringonça”. O segredo da fórmula estava nos amortecedores - vêmo-lo hoje claramente.

A partir das eleições de 2019, deixou de ser assim. Sendo o partido mais votado e mantendo-se o quadro da maioria de esquerda (a maior desde o 25 de Abril, aliás), o PS sentiu-se na posição do costume: podia atirar-se sozinho para fora de pé, confiado em que negociação suave e pressão política impediriam o resto da esquerda de o derrubar. O PS estava até mais inibido quanto a procurar apoios pontuais à direita, facto que, acreditava-se, mais inibiria a esquerda de o derrubar.

Não foi assim. Repetiu-se o que já acontecera com Mário Soares, em Dezembro de 1977, e com José Sócrates, em Abril de 2011: a esquerda e a direita chumbaram, em conjunto, o governo minoritário do PS. Os instrumentos foram diferentes: em 1977, uma moção de confiança; em 2011, o famoso PEC 4; agora, o OE 2022. Mas o resultado o mesmo: fim do governo e, com excepção do caso especial da 1.ª legislatura, eleições antecipadas.

O que falhou? Já não havia geringonça. O que se via era mera aparência, sugerida pela continuidade. Em suma, não havia amortecedores para acomodar em simultâneo aquelas partes. Por isso, quebrou.


José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado

DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 15.Dezembro.2021

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