Em torno do voto da emigração nacional


O voto dos emigrantes teve sempre resistências. Admitido desde as legislativas de 1976, levou muitos anos a ser aceite para as presidenciais: a Constituição só o permitiu na revisão de 1997, exigindo a “existência de laços de efetiva ligação à comunidade nacional” e aplicando-se, pela primeira vez, nas de 2001.

Em referendos, os emigrantes continuam excluídos. A revisão constitucional de 1997 consagrou, finalmente, o instituto do referendo, mas restringiu-os aos que vivem em Portugal: “Os cidadãos eleitores recenseados no território nacional podem ser chamados a pronunciar-se (…) através de referendo” (art. 115.º, 1).

Ao sofrerem as trapalhadas das últimas eleições, não surpreende a indignação nas comunidades emigrantes. Seria sempre objecto de indignação que 150 mesas misturassem, deliberadamente, votos inquestionavelmente válidos com votos provavelmente nulos, forçando um facto consumado e impedindo a resolução do problema que certamente surgiria. Ou que este procedimento irresponsável conduzisse, primeiro, à anulação de mais de 80% dos votos expressos na Europa e, depois, à anulação da eleição neste círculo pelo Tribunal Constitucional, que ordenou a repetição. Mas, com aquele histórico, o que muitos sentiram nas comunidades é que quem manda em Portugal quer dos emigrantes as remessas, mas não os votos.

A decisão do Tribunal Constitucional é lapidar. A “provocada” anulação de 157.000 votos equivalia a mais de 80% dos votos expressos e a sua contagem podia obviamente influenciar o resultado da eleição, na conversão dos votos em mandatos. Segundo a jurisprudência mundialmente consagrada, não havia volta a dar: repetir. O Acórdão foi por unanimidade. Como é possível que, com décadas de experiência eleitoral, esta brincadeira pudesse acontecer?

A exigência legal de juntar fotocópia do documento de identidade do eleitor em envelope exterior ao voto (este encerrado em sobrescrito interior), não pode deixar de existir, sob pena de favorecer fraudes massivas. No fundo, é a réplica, em modo de voto por correspondência, do que fazemos quando votamos presencialmente na urna: identificamo-nos perante o presidente da mesa, somos descarregados no caderno eleitoral e votamos.

O voto por correspondência é, já de si, um modo muito crítico e sensível: não garante plenamente a liberdade e o segredo do voto. Ninguém pode garantir que o eleitor que vota por correspondência não foi sujeito, em casa, na empresa, num grupo, a práticas de coacção ou de concertação, contrárias à expressão individual, livre e secreta da sua vontade. Por isso, votar por correspondência só é admissível em situações excepcionais, como é o caso dos emigrantes, muitas vezes distantes de uma urna de voto. Entrar pelo caminho das “facilidades”, é facilitar fraudes e manipulações, podendo liquidar a credibilidade e aceitabilidade deste modo de votar.

Há outras incertezas que pesam sobre o futuro do voto da emigração, que resultam da passagem nas últimas décadas do sistema de recenseamento activo (o eleitor ia registar-se ele próprio à freguesia ou consulado) para recenseamento passivo (o eleitor, maior, é automaticamente recenseado quando obtém ou renova o cartão de cidadão). Esta prática fez aumentar muito o colégio eleitoral – dizem alguns que de forma artificial – o que afecta a equidade do rácio deputado/eleitores. E também contribuiu para o aumento da abstenção – dizem de novo alguns que de forma artificial.

Em 1976, cada deputado correspondia a 25.000 eleitores, números redondos, e a diferença não era grande para o eleitorado registado em território nacional (1/24.900) e no estrangeiro (1/26.400). Na última eleição do século, em 1999, ainda com recenseamento à antiga, o afastamento acentuara-se: cada deputado no território nacional correspondia a 38.400 eleitores, no estrangeiro a 45.900 inscritos. E, em 2019, quando o novo sistema de recenseamento se aplicou já em todos os círculos, a diferença surgiu enorme: no território nacional o rácio era de 1/41.300, enquanto no estrangeiro era de um deputado por 367.000 inscritos.

Já se ouvem vozes para revisão do número de deputados atribuídos aos círculos da emigração, mas, olhando aos números de 2022, para repor a paridade existente em 1976, isso levaria a atribuir à emigração 32 deputados (sendo 20 na Europa e 12 no Resto do Mundo), em vez dos quatro actuais. E, simultaneamente, levaria a reduzir de 226 para 198 os deputados eleitos em território nacional. Não é crível que a Assembleia da República fosse por aí, além de que a Constituição não o determina (art. 149.°, 2). Mas a questão anda aí e é pressionada por um sistema de recenseamento, que tem suscitado muitas dúvidas e problemas. Um deles é a abstenção gigantesca: nas eleições de 2019, foi 89,2% na emigração; em 2022, de 83,1%.

É preciso atendermos devidamente a estes problemas e acompanharmos de perto o sentimento das comunidades portuguesas no estrangeiro, tão importantes para Portugal e nossa afirmação. Sob pena de se cavarem tensões ou falsas expectativas e tudo poder acabar no sistema que muitos países adoptam: os nacionais que vivem no estrangeiro votam, mas os seus votos são contados dentro do círculo nacional de origem ou de referência. Uma evolução dessas seria danosa para as comunidades, pois perderiam os seus deputados específicos na Assembleia da Republica e, portanto, a capacidade de influenciarem a agenda política. Aproveitando o ditado, seria caso para dizer, quanto aos deputados: mais vale quatro na mão do que 32 a voar.


José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS
Presidente da APDQ - Associação Por uma Democracia de Qualidade

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25.Fevereiro.2022

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