“Votos desperdiçados”: a questão e o risco de enganos


As eleições reacenderam a questão dos chamados “votos desperdiçados”, apresentados também como votos “para o lixo”, votos que “não foram convertidos em mandatos”. Não é questão nova. Têm aparecido alguns estudos interessantes, destacando-se a investigação de Luís Humberto Teixeira, que inspirou os últimos trabalhos de Artur Cassiano, no Diário de Notícias (23 de Janeiro), e de Mara Tribuna, no Expresso (31 de Janeiro). E correram gráficos ou tabelas nas redes sociais, clamando contra a desigualdade na atribuição de mandatos entre partidos, seja na base actual, seja imaginando um círculo nacional único.

É assunto que pode ser uma questão, mas não é necessariamente um problema, sobretudo na extensão em que é assumido. Mesmo que considerássemos que a principal função de um sistema eleitoral proporcional seria assegurar que todos os votos expressos se traduzam em mandatos, haveria sempre votos “desperdiçados”, pela razão que é o quebra-cabeças de qualquer criança que se defronta com a aritmética na escola primária: não há sempre restos zero. É até raro haver restos zero. Ou seja, o problema não é de natureza, mas de grau: acontece, mas não deve acontecer em excesso. Mas o que será o excesso?

Nos sistemas uninominais puros, que muitos vêem como os que melhor representam a cidadania (os cidadãos elegem directamente, na sua terra, o deputado que os representa), os votos “desperdiçados” são imensos, podendo até ser a maior parte dos votos expressos. Por natureza do sistema, no Reino Unido, só contam para eleger os votos no vencedor em cada círculo, que podem ser uma minoria. Por exemplo, nas eleições de 2019, em Cities of London and Westmister, ganhou Nickie Aiken (Conservador), com 39,9% - ou seja, neste círculo foram “desperdiçados” 60,1% dos votos. E, em Newcastle upon Tyne North, ganhou Catherine McKinnel (Trabalhista), com 45,4%, o que provocaria o “desperdício” de 55,6% dos votos. O mesmo acontece, embora de forma mais atenuada, no sistema francês de círculos uninominais com segunda volta. Por exemplo, em 2017, foi eleita, na 1.ª Circunscrição de Seine-Saint-Denis, Éric Coquerel (França Insubmissa), com 51,7% - isto é, teria havido, aí, 48,3% de votos “desperdiçados”. E na 1.ª Circunscrição de Gard, venceu Françoise Dumas (ReM) com 54,6% - a que teriam correspondido 45,4% de votos “para o lixo”.

Nos sistemas proporcionais, a questão não desaparece. Por exemplo, na Alemanha, nas eleições de 2021, teria havido 3 335 728 de votos “desperdiçados” (8,4% da votação nacional), mesmo somando apenas os votos nos partidos que não elegeram ninguém pata o Bundestag. E, se, como fazem os estudos nacionais – e bem –, somarmos ainda, dos partidos com deputados eleitos, todos os votos recebidos nos círculos em que não elegeram, bem como os restos sobrantes do método de Hondt nos círculos em que elegeram, o número dos “para o lixo” é ainda mais expressivo.

Boa parte desta constatação deve-se a dois factos inapagáveis. Um, é a inexorabilidade da matemática. Outro, é a decisão política em democracia: há uns que ganham; e há outros que perdem. A eleição é isso mesmo, é essa decisão. Por isso, os que ganham aproveitam melhor os seus votos do que os que perdem.

Pode haver correcções que atenuem esta questão, em que também tenho trabalhado, através do círculo nacional, possível desde a revisão constitucional de 1989. Mas será impossível arredar a matemática e seria errado querer domar e submeter a democracia. Os sistemas eleitorais devem assegurar a tripla representatividade: dos cidadãos, do território e das correntes políticas. Têm como função a representatividade, é certo; mas também a governabilidade.

Não podemos favorecer caminhos que imponham a partidocracia sobre a cidadania – como faria o círculo nacional único. A primeira proporcionalidade a fazer respeitar é a dos círculos eleitorais entre si. Os parlamentos existem para os cidadãos se fazerem representar a partir dos seus territórios. Não existem para os partidos, que são apenas o instrumento de arrumação política da representação.

E também não podemos favorecer caminhos que pulverizassem de tal modo a representação parlamentar que tornassem ingovernável a democracia. Nesse dia, veríamos que não seriam só os votos que iriam “para o lixo”, mas talvez toda a democracia com eles.


José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado

DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 9.Fevereiro.2022


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