A urgência da paz na Ucrânia é a urgência da paz na Europa
A perigosidade é extrema. Não estamos ainda todos em guerra. Mas poderemos estar antes do final do ano, se não conseguirmos pôr termo rapidamente à guerra que Putin abriu. Se não estivermos em paz na Páscoa, poderemos estar em guerra antes do Natal.
Quando, em 2014, Putin engoliu a Crimeia e armou o apoio aos rebeldes separatistas no Leste ucraniano, pôs a Europa a gotejar de uma ferida na ilharga. Nunca mais fechou. Foi acumulando violência. O caso mais brutal foi o Boeing 777 da Malaysia Airlines, em voo de Amsterdão para Kuala Lumpur, abatido por míssil russo, operado pelos separatistas ou os russos directamente. O crime hediondo, que assassinou 298 civis de várias nacionalidades (quase 200, holandeses que iam de férias de Verão) nunca foi tratado perante Putin com o vigor indispensável.
Hoje, a dor é tremenda. A pequena ferida que gotejava foi rasgada em chagas enormes. Sangra abundantemente. Em poucas semanas o cortejo de horrores já esmaga. As histórias de crueldade, brutalidade e sofrimento nestes 20 dias de invasão e guerra, far-nos-iam chorar um ano inteiro (ou mais), se voltássemos a vê-las, uma por dia. Incontáveis dramas pessoais, destruição desapiedada. Na Europa do século XXI, século de tantas promessas.
Enquanto continuar, será sempre pior. Putin fez desabar o apocalipse sobre os ucranianos. E fá-lo, diz, porque os considera “irmãos”, parte do mesmo “povo russo”. Como seria se os considerasse estrangeiros… Olhando à História do séc. XX, parece que condenou a Ucrânia a um segundo Holodomor.
O quadro é terrível. Putin pôs o apocalipse também à porta de toda a Europa. Fala-se do perigo da 3.ª Guerra Mundial. Putin já a começou. E de forma singular: o que fez foi retomar a 2.ª Guerra Mundial. A doutrina “russa” que proclamou sobre a Ucrânia não termina na Ucrânia: abrange também, pelo menos, Moldávia, Lituânia, Estónia e Letónia; e pode não parar aí. Na cabeça de Putin, a invasão da Ucrânia é um acerto de contas com a implosão da URSS em 1991: a retoma de países que, então, se tornaram independentes. A ambição de voltar ao mapa da divisão da Europa definido pela guerra 1939/45, deixa a dúvida sobre se Putin se satisfaz com o do pacto Hitler/Estaline ou aspira, no todo ou em parte, ao rescaldo final de 1945. Putin usa, sintomaticamente, para a Ucrânia a mesma linguagem que a Conferência de Ialta definiu para a Alemanha: “desmilitarização e desnazificação”. A 3.ª Guerra, que espreita, é o regresso à 2.ª Guerra na Europa: Putin copia Hitler de 1939, agora de Leste para Oeste, para reaver para a Rússia e seu espaço vital (o Lebensraum) aquilo que a URSS, entretanto, perdeu.
Putin alterou ainda a doutrina da dissuasão nuclear. O equilíbrio assentava na convicção de os Estados com poder nuclear não abrirem, entre si ou na imediata proximidade, confrontos militares, mesmo convencionais, sob pena de disparar a catástrofe global. Era esta a mútua dissuasão. Putin ousou diferente: atacou e invadiu, ameaçando com a sua capacidade nuclear quem quer que viesse intervir ao lado da Ucrânia. Mudou a dissuasão de bilateral para unilateral, para cobrir e proteger uma invasão clássica, e pôs o mundo a um palmo do abismo.
As ameaças logo feitas contra quem interferisse (“consequências nunca antes vistas na História”), as ameaças directas às Suécia e Finlândia, a sugestão de Putin recorrer a armas nucleares, as sanções que decretamos contra o agressor, o apoio financeiro e em material militar à resistência da Ucrânia, a ameaça de Putin atacar o transporte desse material, o seu desprezo face à Resolução da Assembleia Geral da ONU, aprovada por 141 países, que condena “a agressão da Federação Russa em violação do artigo 2.º da Carta da ONU” e exige que “cesse imediatamente o uso da força” e “se abstenha de qualquer ameaça do uso da força contra qualquer país-membro” – tudo mostra que a guerra é mundial, embora, por enquanto, só em solo ucraniano. Correndo mal a Putin a realidade, pode aumentar a escalada de modo desvairado.
A paz vem, ou porque as armas se calam, ou porque uma parte vence a guerra. Em boa verdade, só aquela traz mesmo a paz. O segundo modo, inevitável se só assim as armas se calarem, nem sempre o atinge: deixa chagas e cicatrizes, pode reacender tudo mais à frente.
O tempo é urgente. Medidas, gestos, palavras e acções não-violentas podem desempenhar papel decisivo para vencer a crise, sobretudo as que resultem da cidadania e não apenas dos Estados, e procurando articularmo-nos com a opinião pública russa anti-guerra:
1. Total isolamento civil, financeiro e comercial da Rússia, como já começou, e da Bielorrússia.
2. Excepcionar do isolamento os canais diplomáticos (se reduzidos, nunca os fechar), igrejas, Cruz Vermelha, organizações humanitárias e de socorro, jornalistas e similares.
3. Acção diplomática concertada, na base da Resolução da ONU de 2 de Março, pedindo à Rússia, Estado por Estado, o cessar-fogo e a retirada, por mensagens transmitidas, de modo recorrente e consecutivo, pelos governos aos embaixadores russos nos seus países e pelos respectivos embaixadores tanto em Moscovo, como nas Nações Unidas.
4. Acção diplomática concertada junto da China para apelar ao cessar-fogo e fim da invasão.
5. Agravamento da política de sanções da UE e de vários Estados contra a agressão de Putin.
6. Declaração pública reiterada de as sanções serem levantadas logo que os exércitos de Putin parem a invasão, calem as armas e voltem para casa, repondo a legalidade internacional.
7. Tal como Putin pediu aos militares ucranianos que depusessem Zelensky, apelos públicos reiterados, em nome da paz, às Forças Armadas russas para deporem Putin, honrarem o prestígio da Rússia, pararem a guerra e evitarem uma conflagração geral.
8. Onde ajustado e sob sólidas informações de segurança, diferenciar o tratamento aos oligarcas russos que ajudem a parar Putin ou a derrubá-lo dos outros que o apoiam.
9. Afirmação reiterada, hoje e para a era pós-Putin, de que a Europa, o Ocidente e o Mundo nada têm contra o povo russo e que a política é viver em Paz e Amizade com a Rússia e os russos por todo o sempre, admirando a sua cultura e a sua identidade.
10. Solidariedade internacional com os russos que, na Rússia, se manifestam pela paz e apoio à libertação dos perseguidos.
11. Mobilização civil, incansável e contínua, em todo o mundo, pela paz na Ucrânia e na Europa, com as comunidades ucranianas, em vigílias, orações, desfiles, manifestações de massa, espectáculos e também gestos pela paz junto das embaixadas russas e chinesas.
Resta a sugestão do deputado João Soares de o Papa Francisco ir à Ucrânia. Seria magnífico se pudesse fazê-lo. Se fosse marcada uma missa campal para a Praça Maidan, em Kyiv, com o Papa, eu faria tudo por estar nessa decisiva peregrinação pela paz, formidável acontecimento do nosso tempo. Mas a responsabilidade de ir a Kyiv parar a guerra e repor o direito é do Conselho de Segurança, que o pode fazer se quiser, como já escrevi. Também iria, se me convidassem. O Conselho tem de se atravessar no caminho com a autoridade da paz. As Nações Unidas fazem falta todos os dias, até acabar este horror.
É urgente chegar de novo à paz, para a guerra não chegar à nossa porta.
José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 16.Março.2022
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