Carta a Medvedev e a outros também


A frase é conhecida: “Na guerra, a primeira vítima é a verdade.” Nenhuma é isenta de pecado. A informação faz parte da guerra e a propaganda invade-a. Mas há quem exagere.

É o caso de Putin e dos seus. Sergey Lavrov, ministro das Relações Exteriores é o maior exemplo da falsificação sistemática da verdade. E montou escola no Ministério, onde está há 18 anos. Há dias, as televisões exibiram a porta-voz, Maria Zakharova, a garantir: “As forças armadas da Rússia não bombardeiam cidades. Isto é um facto que todos conhecem bem.” Nem Kharkiv, nem Mariupol (arrasada a mais de 90%), nem Kiev já, além de outras, são fustigadas por mísseis e à bomba. São “vídeos editados pela NATO”, disse com desembaraço descarado.

A estratégia da chefia russa assenta na mentira. Quem não se lembra dos dias anteriores ao 24 de Fevereiro? Dos desmentidos de estarem a preparar a invasão? Da troça dos americanos por essa denúncia? O enredo continuou com a negação da invasão: uma “operação militar especial”. E culminou na fundamentação: “desmilitarização e desnazificação” da Ucrânia. Agem como Hitler agiu em 1939, mas militaristas e nazis são as vítimas.

Dmitri Medvedev, Vice-Presidente do Conselho de Segurança da Federação Russa (presidido por Putin), juntou-se à mistificação do “agressor agredido” e atacou “planos que o Ocidente fez para colocar a Rússia de joelhos e destruí-la”. Condenou a “russofobia nojenta” provocada pelos EUA. Instrumental, em 2008/12, na consolidação do absolutismo de Putin, Medvedev parece querer manter o préstimo para ir ora à queima, ora à dobra, no discurso da paranoia e da ameaça. Disse: “A Rússia tem o poder de colocar todos os inimigos no seu lugar.” O Kremlin precisa desta falsidade para manter alinhada a opinião maioritária dos russos, a quem a censura esconde as imagens e o relato da invasão brutal e da agressão cruel que executa na Ucrânia.

Arrasam a Ucrânia para a pôr de rastos, mas são outros que aspiram “colocar de joelhos” a Rússia. Fazem uma guerra violenta e atroz, mas são outros que querem “destruir” a Rússia. Desmultiplicam-se em ocidentofobia e ucraniofobia, mas apontam uma “russofobia nojenta”. O Ocidente e a Ucrânia não dispararam um tiro, nem ocuparam um metro quadrado de solo russo; mas são eles a ameaça que há que “pôr no seu lugar”. Só a Rússia saiu do seu lugar: primeiro, na Crimeia; depois, no separatismo armado do Donbass; agora, nesta violentíssima invasão.

O Ocidente, longe da russofobia, sempre cultivou admiração pela cultura e identidade da Rússia, bem como pelo seu povo, que fazem parte da História europeia. Vultos como Shostakovitch, Stravinski, Rachmaninoff, Tchaikovski, Rimsky-Korsakov, Prokofiev, na música, ou Tolstói, Dostoievski, Tchekhov, Gorki, Boris Pasternak, Gogol, Soljenítsin, na literatura – fazem parte da nossa cultura comum e das nossas referências mais admiradas. O único criador de “russofobia” é o tirano belicista que ocupou o Kremlin. Como se pode gostar dele? Como admirá-lo?

A guerra, sobretudo quando tão fria, assassina e injustificada quanto esta, faz muito mal às relações entre povos. Temos de velar por que não se crie um fosso entre nós e os russos. Esse fosso seria um abismo. Na guerra, depois da verdade, a segunda vítima é a esperança – não podemos deixar que isso aconteça. Há que distinguir sistematicamente o Kremlin (que tudo esconde) dos russos (a quem tudo é escondido).

Importa manter o espírito disponível para construir e desenvolver a paz e a amizade com os russos e a Rússia. O maior crime de Putin é ter destruído a oportunidade aberta com a queda do Muro e o rasgar da cortina de ferro. Não podem voltar. A paz tem de ser possível. Mas, depois do massacre na Ucrânia, só acontecerá com a queda de Putin. Isto é tarefa dos russos, assim como a emergência de uma liderança de paz na Rússia.

Imaginemos que a 2.ª Grande Guerra tinha terminado, antes de 1945, num qualquer armistício com Hitler, que continuaria no poder na Alemanha. Teríamos tido realmente paz? Seríamos livres e seguros? Haveria construção europeia? Claro que não.


José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado

DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 23.Março.2022

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