E se o Conselho de Segurança reunisse em Kyiv?
Quando desencadeou a agressão à Ucrânia, em 24 de Fevereiro, Vladimir Putin escolheu as palavras: “Quem interferir enfrentará consequências nunca antes vistas na História.” É a pior crise que a Europa enfrenta desde 1945. A mais perigosa também.
O avanço das colunas militares de Putin, provocando fugas massivas de deslocados e refugiados, que se prolongam pelas estradas ou se amontoam nas estações de comboio, lembram cenas que só vimos em filmes aquando do avanço das tropas nazis: mulheres, crianças, velhos – os homens aptos dos 18 aos 60 anos ficando para combater. Só as roupas, viaturas e malas são do nosso tempo; o resto é de 1939 ou 1941.
Que tinha Putin na cabeça quando lançou a ameaça “consequências nunca antes vistas na História”? Que estava a pensar? Todos entendemos. Nenhum o quer dizer, nem sequer pensar. Desdobra-se em intimidações diárias. Nos que aponta a dedo, já ameaçou Suécia e Finlândia. O que quis sugerir quando ordenou “alerta máximo às forças nucleares de dissuasão”? Disse-o anteontem António Guterres: “As forças nucleares russas foram colocadas em alerta máximo. Este é um desenvolvimento assustador. A mera ideia de um conflito nuclear é simplesmente inconcebível. Nada pode justificar o uso de armas nucleares.” Aqui chegámos. Aqui estamos.
O art.º 28.º, n.º 3 da Carta das Nações Unidas estipula: “O Conselho de Segurança poderá reunir-se em outros lugares fora da sede da Organização, que julgue mais apropriados para facilitar o seu trabalho.” Qual é o seu trabalho? E qual é, nesta altura, o lugar mais apropriado?
O trabalho do Conselho de Segurança é “assegurar uma acção pronta e eficaz por parte das Nações Unidas (…) na manutenção da paz e da segurança internacionais”. Mais: é para este efeito que todos os membros da ONU lhe “conferem a principal responsabilidade” (art. 24.º). E o trabalho de exercer “os poderes específicos concedidos ao Conselho de Segurança (…) nos capítulos VI [e] VII”, isto é, os respeitantes à “Solução Pacífica de Conflitos” e à “Acção em Caso de Ameaças à Paz, Rupturas da Paz e Actos de Agressão”. Para isto existe o Conselho de Segurança.
Onde é, então, hoje, o lugar que é mais apropriado a cumprir o seu trabalho? A resposta é só uma: em Kyiv! É para Kyiv que deve ser convocada, com urgência, uma reunião (ou mais) do Conselho de Segurança para cuidar da solução pacífica de um conflito terrível e perigosíssimo e fazer face à ameaça à paz, à ruptura da paz e a actos de agressão.
As Nações Unidas foram fundadas no rescaldo de 1945, decididas “a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra que por duas vezes, no espaço de uma vida humana, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade” (Preâmbulo da Carta). Têm que agir depressa, porque esse flagelo está de volta. Estamos perante um líder que quer pior: brande, contra a Ucrânia e o mundo, “consequências nunca antes vistas na História.”
As Nações Unidas declaram-se também determinadas “a praticar a tolerância e a viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos; a unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais; a garantir (…) que a força armada não será usada, a não ser no interesse comum.” Têm que se mexer já para garantir “bons vizinhos”. É o contrário que entrou pela Ucrânia adentro, bombardeia cidades, mata e afugenta e está a chegar a Kyiv.
As Nações Unidas têm por objectivo: “Manter a paz e a segurança internacionais; tomar medidas colectivas eficazes para prevenir e afastar ameaças à paz e reprimir os actos de agressão, ou outra qualquer ruptura da paz; e desenvolver relações de amizade entre as nações baseadas no respeito do princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos” (artigo 1.º). Têm que enviar já o Conselho de Segurança a Kyiv, porque em Nova Iorque não o vão conseguir. Andam a discuti-lo desde o dia 24 – e antes até. Por que não acontece nada do que é preciso? Porque estão a reunir no lugar errado, em vez de no local onde é preciso.
As Nações Unidas agem de acordo com o “princípio da igualdade soberana de todos os seus membros”. E estes “deverão resolver as suas disputas internacionais por meios pacíficos, de modo que a paz e a segurança internacionais (…) não sejam ameaçadas”; e também “deverão abster-se nas suas relações internacionais de recorrer à ameaça ou ao uso da força (…) contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado” (artigo 2.º). Por isto, é imperativo que o Conselho de Segurança vá já reunir a Kyiv. Não é apenas pelo facto de em Nova Iorque não ser fácil alcançá-lo. É que, aqui, é impossível consegui-lo; e, em Kyiv, chegado lá o Conselho de Segurança, será fácil fazê-lo.
Se conseguida, a simples chegada do Conselho de Segurança a Kyiv será o cessar-fogo, uma trégua imediata. Ora, é desse cessar-fogo que precisamos já. Não há dúvida de que as autoridades e o povo do país acolheriam festivamente o Conselho de Segurança. E não acredito que o invasor do país fizesse o que quer que fosse contra o Conselho, para mais sendo um dos cinco membros permanentes.
O problema, é evidente, é tomar a decisão. Seja pela ousadia e coragem de a tomar, seja pelo previsível veto da Rússia, se o problema se puser. Mas a simples luta política e diplomática para enfrentar e vencer o veto de Putin criará problemas ao agressor e cavará mais o seu isolamento. Ninguém no mundo inteiro perceberá, excepto os seguidores de Putin, que se bloqueie a ida do Conselho de Segurança ao lugar onde é mais necessário, imperativo e urgente. Por que quer Putin os ucranianos a negociar em solo da Bielorrússia e não aceitaria em Kyiv o Conselho de Segurança, mais alta instância da paz? Os ucranianos não disparariam. E, se Putin calasse as suas armas, a chave da segurança estava encontrada. Nada a temer. Conselho de Segurança no lugar certo.
A opinião pública mundial seguiria com paixão este debate sobre as Nações Unidas irem, ou não irem, a Kyiv com o Conselho de Segurança: de mãos nuas, sem armas, inteiramente civis, armados unicamente com a razão e a Carta. A opinião pública mundial, crescendo em vigor, consciência e mobilização, é a única força capaz de parar e fazer recuar as “consequências nunca antes vistas na História” e garantir a paz.
É a opinião pública europeia e mundial, inspirada pela resistência heróica dos ucranianos e pelos protestos heróicos de muitos russos, que explica a extraordinária coesão que surge no Ocidente, na União Europeia e na NATO, nos seus países e nos seus povos, assim como um pouco por todo o mundo, ecoando na Assembleia Geral das Nações Unidas. É a opinião pública mundial que pode vencer a loucura que Putin desencadeou, porque sopra como o vento. E esse vento chega também à opinião pública russa. Nós não queremos nenhum mal à Rússia. Pelo contrário. Queremos o bem da Rússia e dos russos. Queremos viver em paz com a Rússia; e, mais do que isso, com amizade. Para isso, é preciso que a Rússia mude de política e pare a agressão.
É preciso pôr o Conselho de Segurança a reunir em Kyiv.
José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 3.Março.2022
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