A guerra é o veneno da Europa
Vendo bem, a guerra na Ucrânia é o último legado soviético. Do lado de cá do Muro, a Europa cresceu no modelo democrático, uniu-se livremente, consolidou-se, prosperou. Do lado de lá, os regimes comunistas impuseram uma união de ferro. Quando acabaram, a ressaca mostrou a face terrível e os pés de barro.
A primeira grande guerra europeia no pós-1945 foi a guerra civil jugoslava, violentíssima implosão da federação supranacional legada por Tito. Ninguém a imaginara. A segunda grande guerra europeia pós-1945 é esta, em que a Rússia, com a Bielorrússia, quer esmagar e submeter a Ucrânia, na desforra da independência no fim da URSS. Fora de tempo, é uma guerra civil soviética, revelada no desdém do discurso do Kremlin e na especial brutalidade das suas tropas.
O projecto europeu ocidental foi construído no sonho da Paz para sempre. As instituições postas de pé são atravessadas por esse desígnio. A arquitectura de livre circulação, de democracia, liberdade e Estado de direito servia a aproximação entre povos como o método de paz geral e de progresso. Foi assim também na NATO, quadro defensivo transatlântico, e na ousadia da OSCE, primeiro ensaio Leste/Oeste, com o Muro ainda de pé. Esses sonhos esforçadamente realizados, década a década, estão em risco de ruírem todos debaixo da violência que Putin lançou à Ucrânia.
Dirijo-me aos que estão a ir para a praia, ou planeiam férias, ou viajam sem receios quanto ao regresso, aos que acompanham os filhos à escola ou os abraçam no regresso, aos miúdos que riem com os avós e estes com eles, aos que vão ao futebol, ao cinema, ao teatro ou a um concerto, aos que almoçam em grupo numa esplanada, ou adormecem enamorados num relvado, ou numa falésia olham o mar sem fim. Isto é, dirijo-me também a mim, que faço igual. Domingo, 20 de Fevereiro, quatro dias antes da agressão brutal de Putin, todos os ucranianos faziam o mesmo. Haveria um ou outro mais inquieto, mas ninguém acreditava que a guerra fosse rebentar. Não no nosso século: o XXI. Não no nosso Continente: a Europa.
E tudo ruiu. De repente. Vão dois meses de destruição e morte, de arraso, atrocidades, tragédia. Tinham os mesmos sonhos que nós. Queriam – querem – aderir e pertencer ao nosso método europeu de paz geral e de progresso.
Esta guerra na nossa fronteira ameaça e corrói a confiança sem fim com que olhávamos o futuro. Os dirigentes russos não param de desferir ameaças – ainda segunda-feira, Lavrov apontou que "o perigo é sério, é real” da 3.ª Guerra Mundial. As perspectivas são sombrias, mesmo calando-se as armas. Como ficariam as fronteiras russo-ucranianas? Se a Rússia guardar territórios ocupados, que qualidade terá essa “paz”? Iremos viver outra vez, nos próximos 45 anos, com um muro a dividir a Europa? Como poderão as pessoas engolir as atrocidades, as valas comuns, as violações em massa, os bombardeamentos de hospitais, as torturas e assassinatos de civis, as crianças, os idosos, as mulheres? Quanto resistiria o muro?
A guerra envenena enquanto dura. Entre comunistas e na direita radical e extrema, há europeus apoiantes de Putin. Não há ruptura geral radical contra o invasor. E, nas correntes políticas dominantes, não é unânime o vigor do embargo total ao petróleo e gás russos. A divisão pode andar aí. Faz sentido fazer contas ao impacto no nosso PIB, quando a questão é quebrar a capacidade do agressor? Quanto vale o PIB, posto na balança com a guerra? Quanto quebrou o PIB da Ucrânia? Quanto quebrará o nosso, se a guerra de Putin nos entrar fronteiras adentro?
A guerra envenena também para depois. Como será uma Europa de novo dividida? Como será voltar a 1945, numa Europa outra vez de armas apontadas? Não há desenho de paz e amizade para depois do cessar-fogo. Que paz somos capazes de imaginar com autores de crimes de guerra? Conseguiremos cumprimentar, construir confiança e amizade com os que fazem os horrores que vemos, ouvimos e lemos todos os dias?
Quando disse “o último legado soviético”, quis dizer somente o último dos anteriores – houve várias guerras de menor escala nas últimas décadas, em diferentes pontos do perímetro da Federação Russa. Enquanto Putin e o seu regime estiverem no Kremlin, ninguém poderá garantir que não virá outra guerra depois.
Só haverá paz segura na Europa, quando a Rússia puder viver em democracia e em liberdade, com Estado de direito, o sonho comum europeu.
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