Contra a habituação à guerra



Dois meses depois do início da invasão da Ucrânia, há um espectro que paira: a habituação à guerra. É um espectro terrível de carrega más consequências. É preciso fazer-lhe frente pelo levantamento da cidadania e vigorosa energia diplomática.

Por muito que a televisão e o tempo tendam a banalizar o intolerável, não podemos habituar-nos às bombas e mísseis todos os dias, ao aviltamento dos civis, às atrocidades, à crueldade, aos milhões de refugiados, aos milhares de mortos e feridos, às crianças órfãs ou doutro modo perdidas, às mulheres violadas, aos velhos esquecidos, às valas comuns, aos crimes de guerra que arrepiam, a cidades e aldeias arrasadas, à Ucrânia que viu o céu desabar-lhe em cima de repente, interrompendo e partindo-lhe a vida. Não podemos esquecer, nem fingir que não vemos. Temos que ligar. E exigir que a guerra pare.

Esta guerra é continuação e efeito doutra que começou em 2014 e deixámos andar como que em lume brando. Habituámo-nos à ocupação da Crimeia. Fizemos mal. Habituámo-nos à guerra separatista no Donbass. Fizemos mal. Habituámo-nos ao derrube por um míssil russo de um voo comercial na Malaysian Airlines, carregado de passageiros, quase 300. Fizemos mal.

Esta guerra começou assombrada por ameaças. Os discursos de Vladimir Putin, em 21 e 24 de Fevereiro, afrontam os fundamentos das Nações Unidas enunciados logo no preâmbulo da Carta: “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra”; “respeito das obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional”; “praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos”; “unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais”; “garantir que a força armada não será usada, a não ser no interesse comum”. Uma afronta feita por um Estado membro-permanente do Conselho de Segurança, que, nessas datas, lhe presidia. Que vergonha!…

Putin assinou o tom ameaçador logo no arranque: “Quem tente dificultar-nos deve saber que a resposta da Rússia será imediata e o levará a consequências que nunca enfrentou na sua história.” O tom não baixou. Ameaçou Suécia e Finlândia. E ameaçou há dias os Estados Unidos da América com “consequências imprevisíveis”. Esta guerra só não se agravará, se formos capazes de a parar. Há semanas escrevi: “Se não estivermos em paz na Páscoa, poderemos estar em guerra antes do Natal.” A Páscoa já passou.

O terreno onde há muito a fazer é o da política, da diplomacia e da cidadania. Surpreende o pouco que, aqui, se tem feito. As sociedades civis (salvo no acolhimento dos refugiados) parece que adormeceram. A disponibilidade da Turquia não tem sido secundada e apoiada. A China continua como se isenta de responsabilidades. O multilateralismo entrou de férias, quando é mais necessário. Não há grandes gestos de diplomacia e política internacional, salvo a ousadia da União Europeia. As Nações Unidas entraram em hibernação após a sessão da Assembleia Geral de 2 de Março, que tanto pareceu prometer.

O espírito para parar a guerra e afirmar a paz é uma política a dois tons: falcão na mão direita, pomba na mão esquerda. Firmeza para enfrentar quem faz a guerra, disponibilidade para estabelecer a paz se o agressor parar.

Precisamos que, nos países livres, os cidadãos voltem às ruas clamando pelo fim da guerra. Vigílias, orações, desfiles, espectáculos, manifestações de massa, junto com as comunidades ucranianas e em solidariedade com os russos perseguidos por serem a favor da paz – todas as semanas, até a paz chegar.

Precisamos de diplomatas e políticos, desmultiplicando-se em contactos e iniciativas a travar a guerra e pressionar a paz: acção diplomática mundial concertada, Estado a Estado, apelando ou exigindo à Rússia o cessar-fogo e a retirada das tropas; acção diplomática mundial concertada Estado a Estado, junto da China para que faça o mesmo; declaração pública reiterada de as sanções serem levantadas logo que os exércitos de Putin voltem para casa; afirmação reiterada ao povo russo de que a Europa, o Ocidente e o Mundo aspiram a um quadro de paz e amizade com a Rússia e os russos; Conselho de Segurança a reunir em Kyiv; Secretário-geral da ONU, apoiado por um trio de países mediadores, a conduzir diligências em Kyiv e Moscovo.

A paz só vem se for chamada.


José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado

DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 20.Abril.2022

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