Em nome de 4 769 366 portugueses
O número corresponde aos portugueses que vivem fora dos distritos de Porto, Coimbra, Lisboa, Évora e Faro. São quase metade da população do Continente – 48,3% para ser exacto. O território em que vivem é ¾ (três quartos) do território continental. Estamos a falar de Viana do Castelo, Braga, Vila Real, Bragança, Aveiro, Viseu, Guarda, Castelo Branco, Leiria, Santarém, Portalegre, Setúbal e Beja. Estão em risco de desvalorização e, alguns, de abandono.
São estes que muito perderão com aquilo que, no governo, se chama “regionalização”, isto é, a consolidação da divisão administrativa assente nas cinco CCDR actuais, às vezes apresentadas como NUTS II, talvez para distrair e confundir. A razão por que perdem é fácil de entender. Já intervim tanto a este respeito, tentando chamar a atenção, que já me cansa repetir: o país organizava-se, no Continente, em 18 distritos; ora, quem de 18 faz apenas cinco, centraliza, não descentraliza coisa nenhuma.
Se essa “regionalização” avançar para aquelas cinco unidades – Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve – aqueles 4 769 366 portugueses perderão duas vezes. Primeiro, porque verão consolidar o modelo administrativo inclinado para o litoral que tornou as suas populações mais distantes e os seus territórios mais frágeis. O desmantelamento de facto dos distritos, quinquénio a quinquénio, foi isso que fez. E, segundo, porque verão impor-se um modelo territorial que centralizará ainda mais. É um modelo alheio a preocupações quanto ao território (multipolaridade e coesão) e ausente de uma política de população (povoamento).
O mais condenável é que tudo foi feito, nas últimas décadas, em derrapagem gradual, ao arrepio da Constituição, que determina (artigo 291.º): “Enquanto as regiões administrativas não estiverem concretamente instituídas, subsistirá a divisão distrital (…). Haverá em cada distrito (…) uma assembleia deliberativa, composta por representantes dos municípios. Compete ao governador civil, assistido por um conselho, representar o Governo e exercer os poderes de tutela na área do distrito.” Devíamos ter os distritos ainda em pleno. Onde estão? Deviam estar a funcionar as assembleias distritais. Que fazem? E os governadores civis deveriam estar a coordenar a acção distrital dos serviços desconcentrados do Estado, nas diferentes áreas. Onde é que isso esteve e está?
A fragilidade e o abandono em que caíram extensas zonas do interior devem-se a este grave desvio. É inaceitável que, em lugar de o corrigir e rectificar (como seria fácil fazer), se queira consolidar o erro e levá-lo ainda mais fundo.
Há sinais que não enganam. Tudo parece preparado. Por exemplo, para apresentar aqueles números da distribuição da população do Continente conforme ao censo 2021, já não o consegui: os resultados apresentam-se só por freguesia, município e NUTS II – os distritos foram ignorados. Tive que recorrer a outras fontes de dados.
Outro exemplo: reparei que, no Festival da Canção, os júris já não falavam por distrito, como era tradicional, mas pelas “novas regiões”, as tais cinco. Já acontece, assim, há alguns anos, talvez para ir habituando. Mas alguém de Vale de Cambra, Covilhã, Penalva do Castelo, Gouveia se sentiu representado pelo júri do Centro, que falava de Coimbra? E as pessoas de Vinhais, Montalegre, Arcos de Valdevez, Barcelos viram-se representados pelo júri do Norte, que falava do Porto?
Se se sentem representados por este quadro, calo-me já. Mas, se não se sentem, é imperioso manifestarem-se já. A realidade em perigo não é só música, é toda a vida social, económica e cultural. É inadiável organizarem-se para defender os interesses e fazer valer os direitos das vossas terras e das gentes que aí vivem. Não devem consentir que, em matéria de território e de população, seja construído um futuro que é pior do que o passado.
Ainda está aí alguém nos distritos? Ou será que 4 769 366 são ninguém?
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