Cinco gerações



Num belíssimo poema de Alberto Caeiro, diz Fernando Pessoa: “Porque eu sou do tamanho do que vejo / E não do tamanho da minha altura...” Nos da minha pertença, vejo duas gerações à frente, além da minha, e duas gerações atrás. O meu tamanho são cinco gerações.

Sendo amanhã o Dia dos Irmãos, quis olhar irmãos desses meus cinco patamares. Fui vendo que o tipo de relações entre irmãos varia consoante o número, o sexo (e sua predominância) e a diferença de idades. Fui em busca de cumplicidade, traço único entre irmãos. O que mais falta me faz do único que tive – morreu há oito anos. Era mais velho um ano e meio.

O meu avô Jaime, pai da minha mãe, era juiz. Jubilou-se como Conselheiro. Tinha um único irmão, o Tio Fernando, professor de Medicina (foi reitor da Universidade de Coimbra), com fama de pândego e boas piadas. Há muitas histórias e anedotas dele. Conheci-o pouco: morreu novo, sendo eu criança. Mas as imagens que gravei e as histórias que ouvi eram de grande cumplicidade: ambos rapazes, apenas dois, escassa diferença de idades.

Do lado do meu pai, havia “as tias”, uma terna instituição. A família era toda madeirense. O meu pai nasceu no Funchal, há 100 anos, e foi para África (primeiro, S. Tomé; depois, Angola) com três meses. O meu avô era director de alfândega. Esteve em vários portos. Voltaram em 1939, para a Amadora, primeiro, e Lisboa, a seguir. “As tias”, irmãs do avô Gilberto, vieram também do Funchal. A mais velha era casada: com um dentista – famoso, na família, por quebrar nozes fechando a mão. Tiveram um filho. Enviuvou cedo. As irmãs ficaram a viver juntas.

Os meus bisavós tinham um dedo para nomes: “as tias” chamavam-se Zoé Adília (a que casara), Aurélia Arlinda (houvera um irmão Arlindo Aurélio, que já não conheci) e a Tia Belicas era realmente Maria Corcina – detestava. “As tias” (Zoé, Aurélia e Belicas) eram uma fonte de ternura, paciência e alegria. Inseparáveis e muito cúmplices, perfeitas na entreajuda, sempre muito curiosas e interessadas. Os meus avós viviam no 2.º esquerdo, elas no 2.º direito. Não se ia a um lado, sem ir ao outro. Recebiam-nos sempre de sorriso e braços abertos. Quanta bondade Deus pôs naqueles corações! Eram três raparigas, de idades próximas, que cresceram juntas e juntas envelheceram. A cumplicidade fez-se aí.

Na geração dos meus pais, não era assim. O meu pai só teve um irmão, mas faziam seis anos de diferença: nunca deixaram de ser o Fernando e o Betinho (de Gilberto). Eram muito amigos, grandes companheiros de muitas paródias. Tinham marca angolana. Mas quando o meu pai fez 18, o irmão tinha 12. Também a minha mãe teve só um irmão, com menos de dois anos de diferença. Eram muito amigos, mas uma era rapariga, outro rapaz. Havia ali muita coisa boa, mas não cumplicidade.

Na minha geração, houve primos com proximidade muito parecida à nossa. O Rui e o Mário, netos da Tia Zoé, eram dez anos mais velhos do que nós e muito próximos entre si. Torturavam-nos frequentemente com temíveis ataques de cócegas, em casa d’ “as tias”, até estas virem socorrer-nos. Eram muito cúmplices. Infelizmente, já morreram. E os três filhos do irmão da minha mãe (o Jaime, o Zé e o Duarte, com um ano de diferença entre si) são inseparáveis. Assim cresceram em Garvão, Angola e Almada, sólidos como rocha. Assim continuam.

Nos filhos do meu irmão, que são treze, notam-se patamares etários, típicos nas famílias muito numerosas. Nos meus filhos e netos, há raparigas e rapazes, com idades variadas. Ainda bem que assim é, mas é diferente. Onde vejo despontar o tipo de relação que tive com o meu irmão é nos filhos do meu filho: o Pedro e o Vasco. Desde quando estes netos tinham quatro e três anos, lembram-me muito o Fernando e eu. Já têm oito e sete, e a proximidade cúmplice vai apurando. Mas todos se dão bem, nas diferentes geometrias. Uma grande bênção.

Vistas as cinco gerações de irmãos que me balizam, volto a Alberto Caeiro: “a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer”. O poema explica: “porque a nossa única riqueza é ver.”

Bom 31 de Maio a irmãs e irmãos!


José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado

DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 30.Maio.2022

Comentários

Mensagens populares