Eutanásia express – ter medo da razão
Para que servem os 2 301 887 votos da maioria absoluta PS? Seria mau servirem ao PS para diminuir os demais 8 518 450 eleitores, confinando-lhes os movimentos e silenciando a voz activa, depois de expropriar a cidadania independente e individual de muitos que em si votaram. E seria muito mau que o PS entendesse que a maioria absoluta o dispensa de ter razão e de guiar-se por ela – não pelo mero capricho da força.
A abertura do dossier eutanásia pelo PS dá o tom do autoritarismo. Há uma semana, em S. Bento, o líder parlamentar e duas deputadas do PS anunciaram a apresentação de novo projecto com o firme propósito de concluir tudo até Setembro. É a legalização express da eutanásia, a que nem a Constituição, nem a lei, nem o Regimento, nem a decência, nem a sensibilidade da matéria servem de baliza e tempero. É, em definitivo, o “aqui vai disto”.
O PS podia ter vergonha. Mostra não ter. Agora, como em 2019, omitiu do programa eleitoral a despenalização da eutanásia, o que enfraquece a legitimidade política. Fê-lo com um propósito evidente: a maioria absoluta. Vestiu-se de gato, sendo lebre; ou de lebre, sendo gato. Em 2019, não resultou. Agora, resultou. A soberba do discurso em S. Bento é desajustada a um partido que escondeu a eutanásia no tempo de debater e votar. Não só apresenta, no início da legislatura, um texto que não anunciou, como assume, de modo imperial, o “texto comum” anterior e faz de conta que é o mesmo processo. “Tenho maioria absoluta, quero lá saber!”
O PS podia ter a grandeza de convocar um referendo. Em rigor, a matéria e o processo exigem-no. É questão tão dolorosa, tão interpelante, tão carregada de efeitos morais e jurídicos, tão pessoal, que seria coerente os cidadãos pronunciarem-se. Se se pensa que, aqui, os deputados votam em razão da sua consciência, é cada cidadão que tem de votar. Eu não delego consciência, apenas representação política. Mas o PS refastela-se. “Tenho maioria absoluta, quero lá saber!”
Hoje, o projecto da pressa do PS ainda não existe. Todavia, ficou claro que vai insistir e alastrar uma expressão que não é só eufemismo, é mentira: “morte medicamente assistida”. Já escrevi sobre esta fraude: “Morte assistida e morte provocada” e ”Eutanásia: o túmulo da velhinha desconhecida e os factos alternativos”. Esta morte não é “medicamente assistida”, é “provocada”. Aquela expressão afronta até a classe médica, pois a Ordem não considera a eutanásia um acto médico e é contra. Aliás, a morte medicamente assistida nunca foi proibida em Portugal, nem é punível. Era o mais faltava!
Há dias, faleceu-me um familiar que vai a sepultar amanhã. Morreu no hospital, depois de anos de cuidados médicos para o tratar, salvar-lhe a vida e eliminar ou diminuir o sofrimento. Teve dias melhores e outros piores. Viveu sempre espreitando cada fresta de esperança. Não queria morrer. Morreu no sábado, medicamente assistido. Seria grotesco que, agora, alguém fosse perseguido por a lei dizer que “morte medicamente assistida” é “a morte que ocorre por decisão da própria pessoa”, etc., e passasse a ser punível quando assim não fosse, antes por apagamento da própria vida. “Tenho maioria absoluta, quero lá saber!”
Enfim, o PS recusará audições. E, em entrevista, a deputada Isabel Moreira explica a ideia. Faz de conta que continuam o processo legislativo anterior e, mais, que respondem ao veto do Presidente. Está errado: o processo anterior encerrou. Nada há “já feito”. Há novo Parlamento e novo processo legislativo. Não fazer “nova ronda” é o rolo compressor sobre a cidadania e a sociedade civil. E também contra a legalidade. “Tenho maioria absoluta, quero lá saber!”
Na mesma entrevista, a deputada expõe a teoria geral da maioria absoluta: “É claro que não é poder absoluto, vivemos numa democracia, há separação de poderes e há “checks and balances”. (…) É importante que o Governo, o grupo parlamentar e o PS não percam a noção da ligação à sociedade civil, no seu todo: às organizações participativas, às ONGs e que essa consciência da importância da escuta e do envolvimento da sociedade civil, na participação da tomada de decisão e na concretização das políticas. (…) Quando um partido tem maioria absoluta e se esquece da sociedade civil é um erro trágico e estou segura que não vai acontecer.” Dá vontade de rir. Na prática, a teoria é outra.
José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 11.Maio.2022
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