O assalto ao Tribunal Constitucional



A técnica é conhecida: acusar outros de algo que nós próprios estamos a fazer. É desse tipo a denúncia pela deputada Isabel Moreira de "entorse violento no Estado democrático", apontando o “secretismo” do Tribunal Constitucional.

O que se passa? Trata-se de manobrar para dominar a composição do Tribunal Constitucional.

Há um ano, em Março, os deputados Isabel Moreira e José Manuel Pureza tomaram posições públicas no sentido de usarem as audições parlamentares de candidatos a juízes do TC para apertarem o crivo ideológico sobre a eutanásia. Escrevi nestas páginas a esse respeito, facto que fora noticiado. Segundo a notícia, Jorge Pereira da Silva, Luís Pereira Coutinho e José Eduardo Figueiredo Dias teriam sido excluídos por não serem favoráveis à eutanásia.

O Tribunal Constitucional tem 13 juízes: a Assembleia da República designa dez, que cooptam os outros três. Uma vez oleado o controlo político-ideológico dos dez designados pela Assembleia da República, falta manipular a escolha dos cooptados.

Apresentando-se como indigitado António Almeida Costa, professor de Direito, armou-se um charivari que constitui o mais violento assalto ao Tribunal Constitucional que já vi. Pegou-se em escritos avulsos seus, como excertos de 1984, aquando dos debates da primeira legalização do aborto, para concluir que o autor é desqualificado. A deputada Isabel Moreira afirma, em geral, haver o dever de vigilância contra o “pensamento anacrónico”. E, em campanha conduzida a partir da comunicação social, quer-se impor tais pressupostos e conclusões aos juízes do Tribunal Constitucional, subtraindo-lhes o exclusivo dos critérios, da ponderação e da decisão, isto é, dos seus poderes.

A Constituição consagra o princípio da igualdade, nestes termos: “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.” E acrescenta: “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.” Pode excluir-se alguém – ou açulá-lo para ser excluído – por causa das suas convicções? Pode ser diminuído na sua dignidade social? É atropelo ao Estado de Direito.

A Constituição protege também a liberdade de pensamento e de expressão, determinando que “todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra” e completando que “o exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.” Pode alguém ser punido e perseguido, porque exprimiu no tempo próprio o seu pensamento? E pode ser objecto de censura tão violenta que não proíbe o escrito, mas proíbe o próprio autor? É outro atropelo ao Estado de Direito.

A Constituição é peremptória: “Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei.” Esta é garantia crucial do Estado de Direito. Derrubar a independência dos tribunais é derrubar o Estado de Direito. É o que está a ser feito ao Tribunal Constitucional, o que contaminará por inteiro a ordem judiciária, pela submissão à ingerência externa dos poderosos. É a morte do Estado de Direito, o paraíso dos iliberais.

No tribunal, não há “secretismo”, há independência. Secretismo existe em muitas decisões partidárias, sobretudo as mais sectárias ou nas que ordenaram e comandam esta campanha.

É sintomático que constitucionalistas que surgem a defender audições públicas no processo de cooptação declarem ser contra a cooptação. Talvez por isso não se importem de a destruir. Mas o remédio já não é o que apontam: todos os juízes serem designados pelo Parlamento.

O radicalismo partidário pode, infelizmente, ter já corrompido por inteiro o processo de escolha e designação para o Tribunal Constitucional. O único remédio será a passagem da tarefa para o Supremo Tribunal de Justiça, como já foi sugerido. A fiscalização da constitucionalidade é tarefa demasiado séria, não pode ser jogada no monte dos vendavais.


José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado

DIÁRIO DE NOTÍCIAS,  27.Maio.2022

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