Eutanásia: a lei democraticamente omitida



Ninguém duvida da aprovação parlamentar da eutanásia. Quatro partidos são ampla maioria. A questão era saber como iria fazê-lo – a começar pelo maior, o Partido Socialista.

Já critiquei a aceleração ordenada pelo PS, em modo de lei-expresso. Os socialistas – e a Assembleia, em geral – não estão dispensados da ponderação cuidada das questões e do diálogo aberto com a sociedade, apesar de ser a terceira legislatura consecutiva com o tema.

Tendo maioria absoluta e sendo o partido de governo, o PS tem especial responsabilidade. Tanto mais que escondeu sempre o tema do programa eleitoral. O processo – transparente, pausado, dialogado – poderia redimir essa omissão crucial. De facto, impressiona como o PS, que, através de um núcleo de deputadas, tem conduzido esta matéria no Parlamento como tema-bandeira, o ocultou nos Programas Eleitorais de 2015, de 2019 e de 2022. Há um problema democrático de legitimidade; ou, como se diz da lógica em tais circunstâncias, a democracia é uma batata.

Claro que os mais atentos sabiam que o PS, por esse núcleo de deputadas, puxaria o assunto após as eleições. Mas a questão é precisamente essa? Se sabia, por que escondeu? Tratando-se de uma reforma legislativa axial, por que a omitiu? A resposta é só uma: porque considerou que, ocultando, teria vantagens eleitorais.

Há quem invoque haver uma “maioria social”. O persistente procedimento político-eleitoral do PS não o mostra. Pelo contrário! Se estivesse convencido disso, teria incluído a medida nos programas eleitorais para ir ao encontro da tal “maioria social”. Os outros três (IL, BE e PAN) fizeram-no, como deve ser – lealdade e transparência com os eleitores –, mas não obtiveram maioria. O referendo também é rejeitado pelo PS, o que sugere que sabe ou receia não haver a tal “maioria social”. As leis da “morte a pedido” que avançam não foram pedidas pelos cidadãos, titulares da soberania. O núcleo de deputadas que, encavalitadas no dorso de um camião TIR eleitoral, as retiram da mochila e conduzem no palco parlamentar, nunca as levaram a votos dos eleitores: nem em 2015, nem em 2019, nem em 2022.

Uma mentirola como insígnia também não melhora. Olhe-se o título, agora generalizado em todos os projectos: “condições em que a morte medicamente assistida não é punível”. Onde é que alguma vez foi punível assistir medicamente a morte? A questão é a eutanásia ou o “homicídio a pedido”, como diz o artigo 132.º do Código Penal, que se altera.

Em 2015 e 2019, o PS escrevia verdade: “eutanásia não punível”. Agora, junto com o Chega, alinha também na ficção delicodoce, para iludir. Como é possível uma lei da República levar por título uma mentira? Como é possível ofender a classe médica, cuja Ordem não considera a eutanásia um acto médico? Porquê semear a confusão na consciência social?

A lei gera dúvidas cruciantes. E assenta no pedido de quem morre. O sofrimento e a vontade de cada um merecem respeito humano. Mas, além de haver outras respostas dirigidas ao sofrimento, há questões de ordem geral que podem pôr em risco fatal pessoas vulneráveis que nunca pediram a morte. O problema maior é a “rampa deslizante”. Ninguém a pode negar – só por má-fé. É deplorável que os deputados europeus portugueses, tão perto dos Países Baixos, Bélgica e Luxemburgo, não contem e denunciem o que lá se passa.

Há outros problemas, na estirpe violência doméstica, maus-tratos a idosos, descuido de doentes, má prática médica. E, quando falamos de “morte digna”, estimulamos a ideia de, a partir de certo ponto, a vida não ser digna – não a ideia de cada um sobre si mesmo, mas a ideia que volteia e cerca à sua volta. O tema exige, neste processo legislativo, séria e detida reflexão sobre questões sensíveis e os seus efeitos sociais e jurídicos. É que a democracia mora na forma, no processo. Se a forma falha, falha a própria substância.

Seguir no caminho “aqui vai disto” é teste de algodão muito negativo da maioria. E pode ser perigoso. Já entrou pelo manejo externo da composição do Tribunal Constitucional. Lembre-se a “claustrofobia” na maioria de José Sócrates. Maioria absoluta não é maioria à bruta.


José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado

DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 8.Junho.2022

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