Lisboa/Vladivostok: o Comboio da Paz
Foi em meados de Junho de 2015. A convite da Fundação Konrad Adenauer, ligada à CDU alemã, participei num encontro de diálogo UE-Rússia. Um fim-de-semana para avaliar, fora das instâncias oficiais, aprofundar pistas de diálogo, se as houvesse. O ambiente era propício: a Villa La Collina, antiga residência de Verão de Konrad Adenauer, nas margens do Lago Como, no Norte de Itália. Num dia e meio de apresentações e debates, 20 participantes trocaram ideias e visões.
Ia com curiosidade e muito interesse. Gosto da Rússia e dos russos, embora pense que têm sido mal governados. Admiro a sua cultura, parte muito importante da cultura europeia. Acredito que o colapso da União Soviética deveria abrir e consolidar espaços de cooperação, paz e amizade entre todos os europeus, incluindo necessariamente os russos. Mas ia preocupado com o abalo, em 2014, da absorção da Crimeia e o apoio russo ao secessionismo armado no Leste da Ucrânia. Os resultados ficaram aquém do que esperava. E vim mais apreensivo.
A delegação russa integrava altos quadros de universidades ou de institutos próximos do Kremlin, além de um arcebispo ortodoxo. Não sendo expressão oficial, traduziam a visão e o pensamento do Kremlin. Se esperávamos abertura para a questão da Crimeia, ouvimos logo que não havia questão: a Crimeia era russa, ponto final. E o estado da arte ficou clarificado na penúltima apresentação russa, ao projectar um mapa com a visão russa de ver como sua toda a faixa leste da Ucrânia, mais a faixa sul adjacente aos mares Negro e Azov até à fronteira com a Moldávia e a Roménia, incluindo Odessa.
O efeito do mapa foi desviar o debate da Crimeia para esta abordagem mais “inclusiva”. Desde a “revolução laranja”, que acompanhei em Kyiv em Dezembro de 2004, com a eleição do Presidente Yushchenko, já ouvira narrativas sobre uma Ucrânia ocidental, mais europeia, e outra oriental, mais russa. Mas nunca vira tão imaginativa reconstrução da geografia e da história, ali ao alcance de um lápis.
Ainda tomei o mapa como apenas um momento febril de um think tank moscovita. Mas o facto inquietou-me. Não só o mapa, que vi como anúncio de uma tragédia, mas o clima geral do discurso russo, que várias vezes estava na sintonia da guerra fria: postura de desconfiança e sentinela. O fosso era muito maior do que eu supunha.
Foi aí que me surgiu a ideia de uma travessia de comboio Lisboa/Vladivostok, anual, em Abril, dirigida à juventude universitária dos países atravessados e outros ainda, da Europa e da Ásia Central, destinada a demolir a desconfiança e construir a confiança, derrubando muros, desfazendo mitos, desmontando mistificações, abrindo amizades, aprofundando comunicação. Não há paz sem confiança, razão por que chamei o projecto de Comboio da Paz.
Resumindo o projecto, seria uma viagem de 15 dias, ora num sentido, ora no inverso, com um pequeno grupo multinacional de jovens que faria a viagem toda – o grupo piloto –, enquanto os restantes sairiam e entrariam, por escalas, em diferentes paragens. O percurso variaria, de ano para ano, podendo ser umas vezes mais a Sul, outras mais a Norte, para que o espírito da travessia fosse chegando a todo o lado. No comboio, decorreriam sessões de formação e debate com oradores convidados, em temas de História, Política Internacional, Ciência Política, Economia Internacional, Direito Internacional. Nalgumas cidades (Paris, Berlim, Varsóvia, Viena, Kyiv, Moscovo, outras.), haveria sessões públicas com jornalistas, universidades e autoridades do país. Acreditava no enorme potencial de desanuviamento desta ideia e que só a Comissão Europeia (talvez com a OSCE) poderia pô-la de pé. Era um projecto caro, mas um investimento seguro. Certamente mais barato que baterias de mísseis. Tentei algumas vezes, mas, fora da actividade política e longe das instituições europeias, nunca cheguei a apoios para pôr a ideia a andar.
Com a guerra de 24 de Fevereiro e o desfiar das aspirações russas, ecoou-me o mapa de Villa La Collina. É impossível que essa visão russa de ocupação não fosse conhecida noutras instâncias. Não sei se, quando Durão Barroso deu, em Março, entrevistas atravessadas por realismo, preocupado e pessimista, estaria a referir-se a isso, ou semelhante, quando disse: “No passado, não levámos Putin a sério.”
Se a paz voltar, ideias como o comboio podem ser necessárias e úteis. É duvidoso, dado o grau de destruição que o Kremlin já fez, não só no plano físico – já de si devastador –, mas sobretudo moral. Mesmo que haja paz de verdade, levará muito tempo a sarar as feridas desta loucura e insanidade. Podem ser úteis. Senão só nos restará celebrar o Requiem pelo Século XXI.
José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 22.Junho.2022
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