Requiem pelo século XXI


O arrastamento da guerra é inquietante. Augura o pior. Qualquer guerra em desenvolvimento contém o risco de explodir para o indizível. E a arrogância bélica do Kremlin põe a Europa e o mundo diante de enorme perigo. Não podemos diminuir a gravidade de invadir um vizinho, atacado e bombardeado com crueldade. Nem podemos ignorar as vezes em que insinuou a ameaça nuclear, detrás da qual julga proteger-se, e fez ameaças directas a Suécia e Finlândia, membros da União Europeia.

Tudo mostra que a agressão militar do Kremlin pretende destruir a Ucrânia (ou parte significativa), a fim de a submeter (ou apropriar-se de extensa parte). Isto não pode acontecer, sob pena de inaugurar a destruição do século XXI, transformado para sempre noutro século de guerra mundial, violência brutal e completa desordem.

O mundo em que vivemos, agindo nas Nações Unidas e noutras instâncias, é caracterizado por progressos extraordinários no Direito Internacional, com avanços notáveis desde 1945. As esperanças e as garantias de paz assentam nesta ordem fundada no Direito, inscrita na Carta das Nações Unidas e noutros documentos fundamentais da mesma inspiração.

O Kremlin, ao atacar a Ucrânia, põe em crise mortal o sistema baseado no Direito Internacional e na solução justa e pacífica dos conflitos. Se não voltar ao ponto de partida, demolirá a ordem internacional, devolvendo-a ao arbítrio do poder militar e do império da força. Esse modelo das guerras napoleónicas, no século XIX, e das invasões de Hitler, no século XX, estará de volta.

No sistema das Nações Unidas, é preciso lembrar que não há solução aceitável para esta guerra fora das linhas principais da Resolução adoptada em 2 de Março, na Assembleia Geral, por 141 votos a favor, 5 contra, 35 abstenções e 12 ausentes. Destaco as seguintes: (1) “Compromisso com a soberania, a independência, a unidade e a integridade territorial da Ucrânia dentro das fronteiras reconhecidas internacionalmente, incluindo as águas territoriais”; (4) “Retirada imediata, completa e incondicional pela Federação Russa de todas as suas forças militares do território da Ucrânia nas fronteiras internacionalmente reconhecidas.”

Por seu lado, o Tribunal Internacional de Justiça, órgão jurisdicional da ONU, ditou, em 16 de Março, por 13 votos contra dois (os juízes russo e chinês), que “a Federação Russa suspenderá imediatamente as operações militares no território da Ucrânia”. E, por unanimidade (isto é, incluindo também os juízes russo e chinês), determinou: “Ambas as Partes devem abster-se de qualquer ação que possa agravar ou estender a disputa perante o Tribunal ou torná-la mais difícil de resolver.” Há mais de três meses!

Tudo já devia ter parado, num século que se guie pelo Direito Internacional. Ao contrário, a guerra continua e derrapa para perigo extremo. O triturador de Putin prossegue no Donbass a ocupação e o míssil-ao-alvo. Os crimes de guerra acumulam-se. Mas… a cidadania europeia e mundial parece ter adormecido. As lideranças partidárias e políticas são fraquíssimas: dedicam-se ao preguiçoso exercício do silêncio, da banalidade e da indiferença. Entre os líderes, só merecem nota alta Zelensky, Roberta Metsola, Ursula Von der Leyen, NATO e pouco mais. Ninguém responde com prontidão e verdade ao discurso provocatório e falsificador de Putin e Lavrov, impedindo a mentira de fazer carreira. Ninguém desmonta a vitimização sonsa da “russofobia”, nem mostra que o mundo quer viver em paz e amizade com a Rússia e os russos, o que só o belicismo do Kremlin impede. Ninguém afirma e reafirma como as fronteiras da Ucrânia são as criadas e reconhecidas pela própria Federação Russa, que sucedeu à URSS no quadro da ONU. Ninguém expõe Putin todos os dias, pelas atrocidades e destruição que produz. Ninguém insiste para esclarecer a posição da China. No Conselho de Segurança, há 17 Estados-membros favoráveis à Resolução de 2 de Março, duas abstenções (China e Índia) e um contra (Rússia). Devia batalhar todos os dias pela paz e pela justiça, com imaginação, tenacidade e iniciativa. Mas, ao invés, até as Nações Unidas parecem estar de férias.

É fúnebre o vento que sopra. Não de esperança, nem de paz.


José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado

DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 29.Junho.2022


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