Só haverá paz, se o Kremlin perder


Pode parecer duvidoso a alguns, mas a verdade, simples e directa, é esta: só haverá paz, se o Kremlin perder. O arrastamento do status quo ou a vitória do Kremlin conduzem à continuação indefinida da guerra, seu agravamento, possível alastramento e, se houver um ilusório cessar-fogo, ao seu inexorável regresso mais explosivo e violento.

É fácil perceber porquê. A guerra foi começada por Putin, que invadiu um país vizinho para lhe ocupar território e, se possível, o submeter. Esta guerra não é um taco-a-taco em que ambos se guerreassem para triunfarem com o que alcançassem. A Ucrânia nada quer da Rússia, a não ser que a deixe em paz. A guerra é inteiramente unilateral, de um invasor contra um invadido. É tiro ao alvo da Rússia sobre a Ucrânia: cidades ucranianas arrasadas – Mariupol, Kharkiv, Severodonetsk, Borodyanka, outras –, nem uma só atingida na Rússia. A Ucrânia tem milhões de deslocados e refugiados, a Rússia não. O retrato é claro: só haverá paz quando a Rússia parar a invasão e retirar-se do que ocupou. Enquanto o não fizer, a guerra de ocupação continuará, gerando ipso facto a legítima defesa e a resistência.

Há dias, comemorando os 350 anos de Pedro, o Grande, Putin tornou clara a visão imperial: “Temos a impressão de que, ao combater a Suécia, ele estava a apoderar-se de alguma coisa. Não estava a apoderar-se de nada, estava a recuperar”. E comparou-se no mesmo plano, apontando à guerra na Ucrânia: “Aparentemente, cabe-nos também recuperar e desenvolver”.

Conhecemos o discurso do Kremlin desde o início da invasão. Ancora-se nesta visão do Czar. Mas não estamos no sec. XVIII. O Direito Internacional progrediu imenso desde 1945. Ninguém na Europa ou nas Nações Unidas pode aceitar, hoje, este tipo de política e de facto consumado. Por isso, inquieta que as palavras de Putin não recebessem denúncia vigorosa e forte repúdio.

Anda aí um vento Chamberlain. Há moleza verbal. Face à ameaça de Hitler, houve europeus a alimentar a ideia de umas concessões territoriais saciarem os nazis e selarem a paz. Pelo Acordo de Munique (Setembro 1938), França (Édouard Daladier) e Reino Unido (Neville Chamberlain) cederam à Alemanha uma parte da Checoslováquia, os Sudetas. Pouco depois, os nazis ocupavam e retalhavam toda a Checoslováquia. A seguir, invadiam a Polónia. Em Março de 1940, França, Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo. A “paz” de Chamberlain deu uma Guerra Mundial e o Holocausto. É ilusão pensar que Putin se satisfaria com o Donbass, tal como foi ilusão pensar que se ficaria pela Crimeia.

Há um mês, na CNN Portugal, em conversa com Miguel Sousa Tavares, no Dia da Vitória (9 de Maio), Paulo Portas fez, sobre o fornecimento de armas à Ucrânia, em modo de prevenção, um comentário que circulou muito: “Está muito estudado que, em situação de guerra, quando há disparidade de forças e começa a haver aproximação de forças, isso não é um incentivo à paz.” Não penso assim. O que está estudado é a desproporção de forças favorecer o triunfo de uma parte e, sendo essa o agressor, o triunfo da guerra. Quanto ao agredido, a aproximação de forças favorece que o agressor reconheça o insucesso da guerra, passo indispensável a buscar a paz.

O trágico é o Kremlin, nesta guerra, ter já acumulado um passivo tremendo perante a Humanidade e o Direito Internacional: invasão massiva, ocupação militar, bombardeamentos cruéis, destruições devastadoras, milhões de refugiados e deslocados, massacres ignóbeis, tortura de vítimas civis, violação de mulheres sem conta, dezenas de milhar de mortos, crise alimentar mundial, crimes de guerra sob investigação, denúncias de genocídio por responder. Ninguém pode ignorar.

Apesar deste horror, não conheço no Ocidente uma só voz responsável que queira o mal da Rússia e dos russos. Pelo contrário. O que queremos é viver em paz e amizade. Exactamente como fizemos com a Alemanha. É preciso afastar Putin (ou ele mudar), tal como foi indispensável vencer Hitler. Nunca há paz com um tirano obcecado no poder. Alimentar cedências a Putin conduz ao prolongamento e agravamento da guerra. Os que queremos paz temos de ver e anunciar que a paz é a contrapartida directa da derrota do Kremlin.

José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado

DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 15.Junho.2022

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