Ainda aquele 2014, em Moscovo
O meu último artigo gerou comentários na edição electrónica e nas redes sociais. Divergem de mim apenas por considerarem que Putin teve “razão” em reagir. Mas não contestam a decisão de Moscovo, nem na altura, nem na guerra atroz e brutal que lançou, agora, sobre a Ucrânia. No fundo, as reacções confirmam que é 2014 que, por vontade do Kremlin, explica tudo o que, então, se passou e, agora, agravou para patamar de altíssimo perigo.
É conhecida a linha pró-Kremlin: o “golpe de Estado [engendrado pela NATO/UE] que derrubou o presidente eleito” (Yanukovich); “Maidan, que derrubou um presidente eleito em escrutínio validado pela OSCE”; “leste do território, com populações de maioria russa”; “o Batalhão Azov”; “pressões de Bush filho para integrar a Geórgia e a Ucrânia na NATO, contra o parecer da própria Merkel”; “a Geopolítica”; “invasão [da Crimeia] foi a reacção da Rússia ao derrube do regime que existia até então na Ucrânia”; “derrube colocava em risco a permanência da base naval em Sebastopol (arrendada por tempo indeterminado)”; “em 2022 o cenário foi semelhante, mas ainda mais grave. A fantasia de fazer passar a Ucrânia para o lado do Ocidente é um "pedido" para a Rússia atacar esse país.”
Este tipo de comentários é alinhado com o mais alto nível demencial da visão dos senhores do Kremlin, visão reproduzida e aceite cegamente apenas porque “eles” são poderosos. É a “geopolítica”– desculpa para tudo. Porque são poderosos, podem tudo o que lhes aprouver.
A Federação Russa não é a União Soviética e não tem o mesmo poder territorial. Várias Repúblicas Socialistas Soviéticas, na Europa oriental e na Ásia Central, alcançaram a independência, em geral em 1991. Foi o caso da Ucrânia. Com ela, também os países bálticos, a Moldávia, a Bielorússia, e muitas outras. Não foi nenhuma conspiração externa. Foi a implosão da URSS, por impulso dos próprios povos.
A Federação Russa tem de reconhecer e aceitar essas independências. Ponto final. Não o fazer, como está a acontecer, é violar a Carta das Nações Unidas e a Acta Final de Helsínquia, para citar apenas dois dos instrumentos internacionais mais relevantes e essenciais.
Aceitar a independência significa aceitar eleições ou revoluções que ocorram nesses países independentes. Moscovo não tem o direito de intervir em Kiyv. A Ucrânia não é um Estado lacaio. Não tem o direito. Ponto final. Os ucranianos é que têm o direito de decidir do seu presente e do seu futuro. Maidan não foi outra coisa senão uma reedição da Maidan anterior: a “revolução laranja” de 2004, que terminou pela eleição de Yushchenko. A seguir à queda de Yanukovich, houve diversas eleições na Ucrânia, elegendo os Presidentes Poroshenko e Zelensky. A Federação Russa tem que respeitar as autoridades ucranianas legítimas, por sinal democráticas, diversamente do grande amigo de Putin, Kim Jong-un da Coreia do Norte.
Os dirigentes da Federação Russa podem sentir-se incomodados com acontecimentos na Ucrânia, mas não tinham, nem têm o direito de intervir militarmente. Podem pensar que a Ucrânia é deles. Mas a Ucrânia não é deles. Esse é o ponto. Não podem ir além dos meios legais.
A Ucrânia nunca entrou na NATO e não entraria – Merkel (e não só) opunha-se. Sebastopol era potencialmente um ponto sensível, mas como atacaria a Ucrânia a Marinha russa? E para quê? O estatuto da base poderia até ser um eixo para regular interesses comuns no Mar Negro, desde que a Rússia deixasse de ter a veleidade de interferir na Ucrânia, como faz na Bielorrússia.
A guerra actual começou mesmo em 2014. Foi aí que Putin a decidiu. A Crimeia não foi “apenas a Crimeia”. A ocupação da Crimeia foi o início da invasão da Ucrânia em 2022, passando pela contínua pressão separatista armada no Donbass.
Putin é especialista na arte de “virar o bico ao prego”. Ainda ontem voltou a acusar Washington de “prolongar o conflito” na Ucrânia. Como levar a sério um invasor desapiedado que culpa outros daquilo que faz? E por que se esquecem sempre os críticos da Ucrânia e do Ocidente da tragédia do voo MH17 que vitimou 300 civis inocentes que sobrevoavam a Ucrânia, em Julho de 2014? O silêncio tem um nome. Vergonha. Não é caso para menos. Oxalá Putin a tivesse.
José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 17.Agosto.2022
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