Aquele 2014, em Moscovo



Há uma narrativa que põe a culpa da guerra da Ucrânia na “expansão da NATO” e “agressividade do Ocidente”. O Kremlin “não pôde deixar de reagir” e lançou a “operação militar especial”, em 24 de Fevereiro. A tese, mil vezes repetida no modo que Goebbels teorizou, consegue perturbar muitos – a certa altura, também o Santo Padre –, mas é uma fabricação.

Para compreender este 2022 sangrento onde estamos, importa procurar o que se passou em 2014, em Moscovo. É aí que está a chave: 2014 foi o primeiro acto, 2022 o segundo, de uma dramática mudança da visão e da estratégia não-declarada da Federação Russa.

As relações com a NATO viviam uma maré de aproximação, como se escreveu no Conceito Estratégico de 2010 da Cimeira de Lisboa. A orientação era: “A cooperação NATO-Rússia é de importância estratégica, uma vez que contribui para a criação de um espaço de paz, estabilidade e segurança. Queremos ver uma verdadeira parceria estratégica entre a NATO e a Rússia e agiremos em conformidade, com a expectativa de reciprocidade por parte da Rússia.” O espírito de diálogo alargava-se a áreas sensíveis (armas nucleares, defesa antimísseis, contraterrorismo, etc.), afirmando que “continuamos convencidos de que a segurança da NATO e da Rússia estão entrelaçadas e que uma parceria forte e construtiva baseada em confiança mútua, transparência e previsibilidade pode servir melhor a nossa segurança.”

O Ocidente esteve disposto até a silêncios embaraçosos para que o diálogo avançasse. A agressão russa contra a Geórgia, em 2008, foi arrumada na prateleira.

Rolava também a política energética alemã, hoje tão criticada. Angela Merkel, que já reconheceu o erro de avaliação, poderá ser acusada de tudo menos de “agressividade”. A sua visão (quiçá ingénua) de parceria comercial e energética com a Rússia, acreditava talvez na estratégia da Declaração Schuman: “realizações concretas que criarão uma solidariedade de facto.” Qual o problema? Putin não é Schuman, nem Adenauer, nem Spaak, nem De Gasperi. Putin traiu Merkel, ninguém traiu Putin.

Há dias, em entrevista ao Público, na reedição actualizada de um seu livro, Bernardo Pires de Lima recorda esse tempo de lua-de-mel: “Até à anexação da Crimeia [2014] a Rússia tinha uma embaixada no quartel-geral da NATO, em Bruxelas. As relações eram próximas. Na cimeira de Lisboa, em 2010, só faltou abrir um bolo e garrafas de champanhe para selar a amizade.”

Em 2014, tudo mudou. O Kremlin assim o decidiu e quis. Sem pré-aviso.

No fim de Fevereiro, lança a anexação da Crimeia, que consuma em Março. Aumenta o apoio militar aos separatistas de Donetsk e Lugansk, alimentando uma guerra morna que nunca mais acabou. Nesse mesmo 2014, em Julho, o apoio militar russo aos separatistas mostrou as suas aptidões: abateu por um míssil russo o voo MH17, que voava sobre Donetsk, rumo à Malásia, cheio com 283 passageiros e 15 tripulantes. Morreram todos os 298. Iam para férias em família, a larga maioria dos Países Baixos, membro da NATO. Os destroços do Boeing 777 e os restos mortais fragmentaram-se por uma área de 50 km2 – um horror! Alguém viu Putin ou Lavrov prestarem homenagem às vítimas inocentes? O julgamento ainda não acabou.

Ainda assim, o propósito ocidental de desanuviamento e parceria com a Rússia era tão forte que nem a NATO, nem o Ocidente mudaram a estratégia de fundo. E não é segredo para ninguém que muitos, no Ocidente, confiavam no passar do tempo para esfriar a questão da Crimeia, permitindo um acordo em que a Ucrânia aceitasse perder a Crimeia, consolidando o resto. O problema? O Kremlin não queria só isso e nunca deixou de pensar em ir buscar o resto. Foi o que lançou, em 2022: ir buscar o resto.

Então, a NATO teve de rever as orientações de Lisboa e adoptou o Conceito Estratégico de 2022, em Junho, em Madrid, onde se diz quanto à Rússia: “A guerra de agressão da Federação Russa contra a Ucrânia destruiu a paz e alterou gravemente o nosso ambiente de segurança.” E mais adiante: “A Federação Russa é a ameaça mais significativa e directa à segurança dos Aliados e à paz e estabilidade na zona euro-atlântica.” Não são precisas explicações.

Mas mantém uma linha comum com 2010: “A NATO não representa ameaça para a Rússia”; e acrescenta, em 2022, que “a NATO não procura o confronto”. É a linha clássica da aliança defensiva, não tem muito de novo. Se isto é suficiente para assegurar a defesa coesa do conjunto – principal activo estratégico da NATO –, não parece suficiente para assegurar o fim do conflito. Aí, tem faltado claramente estratégia política activa por parte do Ocidente.

Esta guerra é responsabilidade exclusiva do Kremlin: começou-a, pode terminá-la. A NATO não disparou um tiro, não pisou um milímetro de solo russo, nem proferiu qualquer ameaça. Alarga-se, porque os que temem ser agredidos por Putin vêem na NATO um abrigo de segurança comum. Os últimos foram Suécia e Finlândia. Quem pode estranhá-lo? Quem pode condená-lo?

A explicação da guerra está nas salas e recantos do Kremlin, em 2014. Provavelmente antes: 2014 não foi decidido do dia para a noite. Obedeceu a um plano deliberado e a uma visão, ainda hoje, não totalmente declarada.


José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado

DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 10.Agosto.2022


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