Kremlin: culpa e ameaça
Anteontem, ao abrir a conferência sobre o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, começou por destacar que “ocorre numa época de perigo nuclear não visto desde o auge da Guerra Fria”. Descreveu o contexto actual: “As tensões geopolíticas estão a atingir novos máximos.” Apontou os pontos mais críticos: “As crises - com sombras nucleares - estão a apodrecer. Do Médio Oriente e da Península da Coreia. À invasão da Ucrânia pela Rússia, e a muitos outros factores em todo o mundo.” E apontou o abismo: “Tivemos uma sorte extraordinária até agora. Mas a sorte não é uma estratégia. Nem é um escudo contra as tensões geopolíticas que se transformam em conflito nuclear. Hoje, a humanidade é apenas um mal-entendido, um erro de cálculo longe da aniquilação nuclear.”
Vladimir Putin enviou à conferência uma mensagem bem-comportada, afirmando que “uma guerra nuclear não deve nunca ser desencadeada” e repetindo o lugar-comum: “Não há vencedores numa guerra nuclear”. Que vale a declaração de Putin? O mesmo que as repetidas afirmações até 24 de Fevereiro de que não preparava o ataque à Ucrânia. O mesmo que a descarada negação persistente da brutal invasão sob a alcunha de “operação militar especial”. Desde o discurso de Putin na noite do início da guerra até outras declarações de Lavrov e Medvedev, incluindo a colocação em alerta máximo do dispositivo nuclear, o Kremlin tem repetido sugestões de possível escalada até ao confronto nuclear.
Independentemente das cinco acções propostas por Guterres, a prevenção contra uma conflagração nuclear reside principalmente no Direito Internacional. O próprio Tratado é um instrumento de Direito Internacional. Ora, o respeito actual do Kremlin pelo Direito Internacional é nenhum. Pode mesmo dizer-se que a atitude é de hostilidade contra o direito.
A Ucrânia e a Bielorrússia, por estranho que possa parecer, foram membros fundadores das Nações Unidas, a par da União Soviética, em Outubro de 1945. Hoje, aos olhos de todo o mundo e com as Nações Unidas a assistir, a Federação Russa, que sucedeu legalmente à União Soviética, invade, agride, destrói, mata e abocanha território a território à Ucrânia, cujas fronteiras ela mesmo definiu. Direito Internacional no caixote do lixo.
Por falar em nuclear, foi assinado em Dezembro de 1994 o chamado Memorando de Budapeste, pelo qual a Ucrânia renunciou ao seu arsenal nuclear. Nesse Memorando, a Federação Russa, o Reino Unido e os Estados Unidos da América “reafirmam o seu compromisso perante a Ucrânia, em conformidade com os princípios da Acta Final da Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa, de respeitar a independência e soberania e as fronteiras existentes da Ucrânia.” Vemos a qualidade da palavra e a honradez das garantias do Kremlin. Direito Internacional no caixote do lixo. Tanto este memorando, como a Acta Final de Helsínquia.
Também reafirmavam “a obrigação de abster-se da ameaça ou do uso da força contra a integridade territorial ou independência política da Ucrânia” e que procurariam “uma acção imediata do Conselho de Segurança das Nações Unidas para prestar assistência a Ucrânia, se a Ucrânia se tornar vítima de um acto de agressão”. Lixo! O Kremlin joga tudo no lixo.
Aquilo que vemos é uma guerra cruel movida unilateralmente pelo Kremlin contra a Ucrânia e o seu povo, assente numa estratégia terrorista: bombardeio quotidiano de alvos civis, destruição de infraestruturas civis (incluindo hospitais, maternidades, escolas e teatros), morte de vítimas civis, incluindo velhos, mulheres e crianças. Uma guerra de genocídio, em que Dmitri Medvedev apareceu até, nesta pergunta, a contestar a subsistência da Ucrânia: “Quem disse que a Ucrânia pode ainda estar nos mapas nos próximos dois anos?”
Vivemos um momento terrível e de extremo perigo para a paz na Europa e no mundo. É claro onde estão a culpa e a ameaça. No Kremlin. Enquanto não perder ou não mudar, não teremos direito, nem paz.
José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 3.Agosto.2022
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