Tabu n.º 1 – a Nicarágua
Às vezes, tropeçamos em assuntos – ou eles em nós – de que notamos estarem imersos num tabu: um silêncio que os rodeia e cala. Alguns são temas que sem importância, o que pode explicar o silêncio. Outros não é assim: temas claramente importantes e de grande significado, são calados, seja qual for a fonte e a razão que os cala. Temos que reflectir sobre estas: a fonte e a razão do silenciamento. Ultimamente dei com três destes tabus. Hoje, comento o primeiro.
Os cristãos que crescemos em sociedades ou países de maioria cristã tínhamos a tendência (se é que já não temos) para considerar que as perseguições aos cristãos foi coisa do tempo dos romanos: a arena dos leões, as crucificações, as catacumbas. E, depois, “está bem”, “um ou outro caso isolado”, “coisas sem grande significado”. Apreciamos considerar que o tempo da liberdade religiosa veio, há muito tempo, para ficar; e que não há mais a temer. Mesmo olhando aqueles casos em que eram cristãos a perseguir, de que nos penitenciamos.
Envergonha-me ver que pensava assim, carregado desse optimismo tolo, infelizmente sem confirmação. No ano 2000, fiz 47 anos. Foi S. João Paulo II, por ocasião do Jubileu, que me acordou dessa mentira, ao chamar a atenção para os mártires do século XX. Proferiu, aliás, uma homilia notável, na celebração ecuménica em Maio desse ano, no Coliseu de Roma, para “recordar as testemunhas da fé do século XX”. Depois, li muito, Não foi só sobre os cristãos, muito menos só sobre os católicos. Mas falou-se muito destes nessa altura e foram os que mais me interessaram para vencer a estupidez da ilusão em que estivera.
As catacumbas nunca acabaram. O século XX, então, foi particularmente tenebroso. Fora quase metade da minha vida; e eu não sabia. Ou melhor, não coligira o que conhecia.
A liberdade religiosa não é questão de somenos, é uma liberdade principal na constelação dos direitos fundamentais. Encontramo-la nos primeiros passos da cultura dos direitos humanos; e não há Bill of Rights, digno desse nome, que a não contenha. É um pilar matricial dos direitos civis e da paz – o seu desrespeito conduziu historicamente a perseguições terríveis e até a guerras. Compreende o respeito por outros credos ou por nenhum.
Agora, em Agosto, na Nicarágua, a perseguição desabou sobre os católicos a partir da cadeira de Daniel Ortega. No que não é um exemplo único, este guerrilheiro revolucionário comunista evoluiu para autocrata violento, igual ao ditador Somoza que derrubara. Fomos tendo notícias esporádicas dessa degradação. Em 2021, todo o mundo viu que a última eleição foi fraudulenta. E o arbítrio cresceu.
Já fechara um canal de televisão da Igreja. Em Agosto, encerrou sete rádios católicas. Expulsou as Missionárias da Caridade, a congregação de Santa Teresa de Calcutá. Expulsou o Núncio Apostólico. Manda pôr em detenção domiciliária o bispo de Matagalpa, D. Rolando Alvarez, com mais seis sacerdotes e seis leigos, em forte exibição do poder policial, a cercar o paço episcopal. Duas semanas depois, a polícia irrompe pela residência e leva-os. Proíbe a procissão com a Virgem Peregrina de Fátima, em Manágua, a capital. O pároco de uma igreja em Mulukukú é preso e desaparece; é localizado, mais tarde, a 300 km, num centro judicial em Manágua.
Todas as semanas, houve notícias da perseguição religiosa na Nicarágua, porque houve vários factos da violência do Estado. Poucas notícias vi em Portugal sobre este tema de evidente actualidade – cerca de metade na Rádio Renascença. Lemos que a perseguição começou há quatro anos. Pouco soubemos do que aconteceu. Correram alguns protestos colectivos internacionais, em redes católicas.
Este não é um assunto religioso, mas tema político de destaque. Tudo o que tem a ver com o Estado e a forma como não defende a liberdade e antes a viola, ofende e atropela, é política e de primeiro plano. É matéria para os governos e os parlamentos tomarem posição, o que o mesmo é dizer as opiniões púbica manifestarem-se. Isto só acontece se a comunicação social informar, não for albergue de tabus.
Onde a liberdade periga, o dever é contar. Havendo ou não vítimas mortais, o que mata é o silêncio.
José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 31.Agosto.2022
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