A moção Lavrov
Considero fraca, no plano da opinião pública e do debate político, a acção ocidental face à brutalidade da agressão do Kremlin sobre a Ucrânia e ao extremo perigo para a paz na Europa e no mundo. A resposta no apoio político e militar foi muito positiva, acima até do que poderia esperar-se. Mas, passada a excitação inicial, o discurso político arrefeceu e não se substanciou no esforço incessante de exposição da ilegitimidade da agressão, de listagem exaustiva das atrocidades cometidas, de manutenção de um nível elevado de condenação pela opinião pública, de alargamento do repúdio internacional. O discurso político e a parte visível da acção diplomática como que entraram numa normalidade indolente, sem verve e chama, nem ousadia e arrojo.
Esta guerra tem coincidido com um namoro irresponsável com o poder nuclear: ameaças ocasionais de escalada, proferidas por Putin e outras vozes do Kremlin; acções militares nas centrais nucleares de Chernobyl e Zaporíjia; o bloqueio pela Rússia, em 27 de Agosto, do acordo final na 10.ª conferência do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, acordo aceite pelos restantes 191 signatários; e anúncio, há dias, de a Coreia de Kim Jong-un, grande amigo de Putin, ter aprovado a lei que autoriza ataques nucleares automáticos.
Estes factos estouvados enaltecem o gesto notável da Ucrânia, que, três anos após aceder à independência, renunciou à totalidade do arsenal nuclear que possuía, por herança da União Soviética. Era o terceiro maior do mundo. Parte foi desmantelada, parte foi transferida para a Rússia, conforme os acordos celebrados.
O pilar destes acordos é o Memorando de Budapeste, assinado em 5 de Dezembro de 1994, entre Ucrânia, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos. O Memorando comprometia estas três potências a “respeitar a independência e soberania e as fronteiras existentes da Ucrânia” e a não “ameaçar, nem usar a força contra a integridade territorial ou independência política da Ucrânia”. Os quatro líderes (Kuchma, Yeltsin, Major e Clinton) declararam-se “empenhados em continuar o processo de construção política, segurança militar e económica numa Europa indivisa” e “confirmaram que os compromissos da OSCE na área de direitos humanos, economia e segurança representam a pedra angular do espaço de segurança comum europeu e ajudam a garantir que os países e povos neste espaço não sejam submetidos à ameaça de força militar”.
Este espírito, luminoso e promissor, era servido pelo parágrafo 4. do Memorando de Budapeste, em que Rússia, Reino Unido e EUA “reafirmam o seu compromisso de procurar uma acção imediata do Conselho de Segurança das Nações Unidas para prestar assistência à Ucrânia”, se esta fosse vítima de agressão. O Conselho de Segurança é, nos termos da Carta das Nações Unidas (artigo 24º, n.º 1), o órgão a que está conferida “a principal responsabilidade na manutenção da paz e da segurança internacionais”.
Reino Unido e Estados Unidos bem podiam apresentar uma moção (ou outra proposta adequada) ao Conselho de Segurança para apreciar a invasão da Ucrânia e os perigos nucleares envolvidos, à luz dos compromissos do Memorando e do direito das Nações Unidas e da OSCE. Os dois países podiam também convidar a Federação Russa a associar-se à moção, tal como se associou ao Memorando de Budapeste.
Poderia chamar-se Moção Lavrov, em homenagem ao Representante Permanente da Federação Russa em Nova Iorque que, em conjunto com os outros três embaixadores, assinou a comunicação formal às Nações Unidas, em 7 de Dezembro de 1994, do Memorando e da Declaração Conjunta dos líderes nacionais. Dessas quatro testemunhas qualificadas, duas já morreram: o ucraniano Anatoliy Zlenko e, falecida um mês após esta guerra começar, a americana Madeleine Albright. O terceiro, o britânico David Hannay, provavelmente apreciaria esta Moção, mais ainda se Sergey Lavrov estivesse à altura dela e da sua assinatura de 1994.
Seria muito interessante ver a diplomacia e a política movimentarem-se em torno deste eixo, o eixo certo.
José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 14.Setembro.2022
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