Tabu n.º 2 – D. Filipe Neri
O Papa Francisco acaba de criar 20 novos cardeais, sendo quatro de língua portuguesa. A notícia surgiu por ocasião do Consistório em 27 de Agosto, parecendo que só agora se soubera. Para mim, foi assim: despertei para a novidade nesse dia, por uma notícia rápida na televisão. Todavia, ao preparar este artigo, verifiquei o facto era público há três meses. Ainda se conserva essa primeira notícia, originária da Lusa, relatando o anúncio papal no Angelus de domingo, 29 de Maio, na Praça de S. Pedro.
Ou seja, a comunicação social, se o quisesse, teve muito tempo para preparar este acontecimento. Em fim de Agosto, apenas se concretizou. Quatro cardeais de língua portuguesa, sendo um timorense, dois brasileiros e um goês, normalmente apresentados por esta ordem: o arcebispo de Díli, os arcebispos de Manaus e de Brasília e o arcebispo de Goa e Damão.
Pouco se cuidou dos dois novos cardeais do Brasil, o que se compreende: já há outros cardeais brasileiros, não tem grande novidade. Entre os que deram a notícia em Portugal, o maior relevo foi para D. Virgílio, arcebispo de Díli, o que também se compreende: é o primeiro cardeal de Timor, que nos está muito intenso na memória e no coração, e senta-se na cadeira que foi de D. Ximenes Belo. Ainda assim, ninguém, a não ser a Rádio Renascença, teve tempo para entrevistar D. Virgílio, que tem palavra e pensamento: “É uma Igreja [a de Timor] com 500 anos de história, de evangelização, com quase 500 anos de missão, uma Igreja que sofreu muito durante mais de 24 anos, durante a guerra da independência. É uma Igreja que acompanhou o povo, não só durante o sofrimento, mas também para se reconciliarem com os adversários” – disse à Renascença. Não é tema que interesse apenas aos católicos ou aos que vão à missa. Tem a ver com a nossa história, a nossa língua, a nossa cultura, a nossa memória, a nossa universalidade – isto é, com o nosso papel e o nosso lugar no mundo.
Onde o tabu se manifestou mais flagrante e intenso foi quanto a D. Filipe Neri Ferrão, arcebispo de Goa e Damão, na Índia, Patriarca das Índias Orientais e Primaz da Índia, que, desde 2019, preside à Conferência Episcopal da Índia de Rito Latino. As notícias foram poucas e, na generalidade, muito discretas – até na primeira, em Maio, quase que sumia.
Desta feita, não foi só a Renascença a estar atenta. A palma vai, para o Diário de Notícias, que, já em fim de Junho (também só vi agora), publicara uma desenvolvida peça do seu correspondente, Alexandre Moniz Barbosa: “Finalmente, um cardeal para Goa”. Dá gosto ler, por ser rara, pontual e com informação nova. Agora, através de Aura Miguel, da RR, D. Filipe Neri dirigiu palavras aos católicos e, em geral, aos portugueses: “A minha mensagem para os portugueses, sobretudo aos portugueses católicos, é a seguinte: continuai a ser faróis da fé cristã, orgulhosos da vossa nação que, apesar do seu minúsculo tamanho, irradiou a fé cristã por quase metade do globo.” E noutro trecho: “Quando penso em Portugal, penso logo na grande dívida de gratidão que nós, goeses, temos contraído com aquela grande nação que nos deixou a preciosíssima herança de fé cristã e que depois ficou difundida pelo resto do Oriente, através da nossa pequena Goa.”
A criação deste cardeal é um facto de importância extraordinária: um cardeal da Índia, que fala português, além do concanim e, como é óbvio, do inglês. O Patriarca das Índias é importante, uma vez mais, não só do ponto de vista da Igreja, mas do ponto de vista da portugalidade – tudo acontece, conta o cardeal, “graças à grandiosa obra missionária levada avante por intrépidos homens e mulheres de fé, particularmente nos séculos XVI, XVII e XVIII.”
Somos muito pequeninos se o não percebermos. É um legado que continua a chamar por nós: um específico traço da nossa relação com a Índia. É pena não termos festejado este cardeal. (Ainda por cima, S. Filipe Neri é o Santo da Alegria.) E é sintomático que ninguém ouvisse uma só das muitas figuras das qualificadas comunidades goesas em Portugal e noutros países, a respeito deste seu primeiro cardeal. Uma lacuna que ainda podemos preencher.
Este tabu não respeita apenas aos católicos, abafa também os goeses. É triste. O tabu é uma arma muito desigual: os que têm o poder de divulgar, são os mesmos que têm o poder para calar. Aos outros, nada sobra, senão ouvir o que nos dão.
José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 7.Setembro.2022
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