Liberdade de educação – complicar o que é simples
O debate sobre a liberdade de educação mostra como é elevadíssimo o grau de iliteracia sobre direitos fundamentais na sociedade portuguesa. E tem permitido pôr à vista – para quem quer ver – como o actual Governo é um dos agentes principais dessa iliteracia, com o apoio dos sectores alinhados e a cumplicidade de muitos outros. Em boa verdade, o Governo, enquanto finge educar para a cidadania, educa contra ela. É isso que ressalta da polémica em torno do caso dos jovens de Famalicão e da “Cidadania e Desenvolvimento”.
Na construção do constitucionalismo e dos direitos fundamentais há algumas ideias cruciais. Uma é a limitação dos poderes do Estado por um mecanismo contratual: a Constituição é como um contrato feito entre todos os cidadãos, através dos seus representantes, para constituir o Estado e sua governação de determinada maneira. De modo geral, no Estado moderno, com estes três traços: separação de poderes, democracia e Estado de direito, e catálogo de direitos, liberdades e garantais. Estes afirmam-se perante e acima do Estado, definindo um domínio reservado, que o Estado não pode invadir, limitar ou negar. São tão fundamentais que nem por maioria se pode atentar contra eles – é um dos problemas resolvidos, ainda no infantário da democracia, a própria maioria não poder afrontar esses direitos, porque fundamentais. São de todos não por serem do maior número, mas por pertencerem a cada um.
Claro que tudo o que é de lei é susceptível de interpretação. Mas esta não pode ser à vontade do freguês. Tem regras. A primeira, que convém sempre, é honestidade intelectual. Outras são, por exemplo, as enunciadas no Código Civil: “não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal”; e “o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
Se a Constituição diz, taxativamente, que “o Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”, o governo ou a Assembleia não podem, em tortuosa ginástica, interpretar que o Estado pode fazê-lo. Se determina que “incumbe ao Estado cooperar com os pais na educação dos filhos”, o governo ou a Assembleia não podem, em mortal à rectaguarda, interpretar que o Estado manda nos pais e estes devem-lhe obediência. E há muitas outras normas constitucionais a estipular o primado dos pais na educação dos filhos, a protecção da família e o papel subsidiário do Estado.
Sem assimilar isto, está-se no reino da iliteracia e no império da arbitrariedade, contra a cidadania. É esse reino que o Ministério semeia.
Em Agosto, no “Observador”, com um texto construído apenas com 43 excertos da Constituição e preceitos internacionais – Educação, família e liberdade: o discurso do Direito –, fiz um pequeno concurso para premiar os leitores que acertassem no maior número das fontes de cada norma usada, que desvendei dias depois. Os resultados dos 22 concorrentes foram muito animadores: houve seis totalistas (que repartiram o prémio), 59% teriam nota acima de 18 ou 77% acima de 16.
Pelo discurso público, a nota do actual Ministério seria negativa, a menos que haja hipocrisia, e não ignorância – isto é, se for que sabe, mas não pratica. Os efeitos são muito nocivos sobre os cidadãos. Por cada vez que se lê ou ouve, a respeito do caso de Famalicão e da verticalidade simples dos pais, frases como estas – “se não gostam, ponham-nos no privado”; “chumbem-nos, que é para aprenderem”; “têm o ensino doméstico”; “todos têm de obedecer” – vê-se bem não só a dimensão do desconhecimento dos direitos de cada um e do que é a escola pública (para todos), mas também a agressividade do populismo reaccionário contra conquistas básicas da democracia, do Estado de direito, da pessoa humana e da autonomia das famílias.
O Ministério chumba na sua missão, apesar de, nos “Documentos de Referência” públicos da “Educação para a Cidadania”, incluir os textos fundamentais que fixam deveres do Estado e direitos dos cidadãos. Mas o chumbo é alimentado pelo embrulho cada vez mais empastelado em que tudo aparece: Constituição, Declarações e Convenções internacionais, à mistura com “cartas”, “objectivos”, “orientações”, decretos, portarias e “referenciais” – como se fosse tudo a mesma coisa. A açorda de papel baralha; e complica saber o direito em que vivemos.
José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 19.Outubro.2022
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