Os russos


A Rússia tem tudo – ou tinha, já veremos – para ser uma grande nação do século XXI. Teria de livrar-se dos tiques autocráticos, identificar e resolver os problemas da economia, confiar na sociedade civil e nos cidadãos, atender à crise demográfica. Mas a Rússia não é o único com estas questões, nem elas são impossíveis de enfrentar – querendo, é claro. Esta devia ser (já há algum tempo, aliás) a agenda do poder russo para o século XXI, em vez da loucura senil de partir em guerra contra a Ucrânia e mais de meio mundo.

A Federação Russa, libertada por Gorbachov da sopa ideológica soviética, tinha todas as condições para emergir como grande país, mundialmente admirado. É uma nação milenar. Estende-se até ao Pacífico, pela vastidão euro-asiática, onde brilham cidades históricas como Vladimir, Novgorod, Moscovo, São Petersburgo. Teve grandes monarcas como Pedro I, o Grande, Catarina II, Alexandre I (que venceu Napoleão). A literatura tem nomes como Pushkin, Gogol, Dostoievski, Tolstoi, Tchekhov, Anna Akhmatova. O poeta Boris Pasternak tornou-se mundialmente famoso com uma novela, banida pela URSS: “Doutor Jivago”. Daria um filme soberbo, romântico, de banda sonora memorável – ganhou cinco Óscares e cinco Globos de Ouro. Pasternak foi distinguido com o Nobel da literatura. Quatro outros escritores russos também: Bunin, Sholokhov, Solzhenitsyn, Brodsky.

A arquitectura tem edifícios e monumentos notáveis e são sem conta os seus pintores de renome: Argunov, Borovikovsky, Ivanov, Shishkin, Kandinsky, Marc Chagall, tantos outros. Na música, brilham compositores extraordinários – Tchaikovsky, Rimsky-Korsakov, Rachmaninoff, Stravinsky, Prokofiev, Shostakovich – e intérpretes de excepção: Oistrakh, Rostropovich, Richter. São mestres no bailado, com Pavlova, Nijinsky, Plisetskaya, Nureyev e Baryshnikov. E quem não se curva diante dos espectáculos do Bolshoi e do Mariinski?

São inúmeros os seus vultos na ciência, como Lomonosov, Pavlov, Sakharov. Os russos têm, ainda, vasta e antiga história de inovação, em todos os domínios, desde os mais sofisticados ou científicos aos prosaicos e comuns, como as montanhas-russas (onde tanto nos divertimos), os bifes strogonoff, as bonecas Matrioska, o extintor de espuma, a balalaica. E há a história e tradição da Igreja ortodoxa, a dos judeus e a dos cossacos, com o sopro das estepes.

Tudo isto – e muito mais – faz parte da história e cultura europeias e, em rigor, do mundo. Chegados à era da aldeia global, só um poder completamente demente, decrépito e tresloucado escolhe trocar tudo isto por um paiol de munições e um arsenal de mísseis, bombas e ameaças nucleares. Só um poder cego e abrutalhado troca o encanto, a admiração e a influência do soft power por acicatar o ódio sanguinário e cavar a fractura cruel.

A Rússia também tem grandes desportistas. Para citar apenas alguns exemplos, Sharapova e Marat Safin, no ténis; no futebol, o lendário Lev Yashin (único guarda-redes do mundo a ganhar a Bola de Ouro) e Arshavin; Karpov e Kasparov, no xadrez. A violência traiçoeira que Putin faz desabar sobre a Ucrânia desencadeou espontânea resposta do mundo do desporto, banindo a participação russa em provas internacionais e no quadro olímpico: do futebol ao hóquei no gelo, do basquetebol ao ténis, da canoagem ao andebol, da natação à ginástica, etc. Uma metáfora do isolamento a que Putin, Medvedev, Lavrov e tutti quanti conduzem o país. De modo invulgar, a cidadania do desporto ditou uma palavra clara contra a brutalidade e a infâmia das ordens de Putin. Não! O desporto aponta o caminho à comunidade política internacional. Um safanão para despertar.

A agressão da Rússia sobre a Ucrânia, que vive dias e horas dramáticos, é inteiramente contranatura, pois realmente são irmãs. A Rússia engradece-se se respeitar o mais pequeno. E também se destrói, se o quiser esmagar. Por cada dia que passa desta guerra, a imagem e a memória que vamos guardando dos russos não são as delícias literárias no “Anna Karénina”, de Tolstoi, mas o pântano dos horrores no arraso de Mariupol; não é a maravilha coral de “O Canto da Floresta”, de Shostakovich, mas os gemidos e gritos enterrados nas valas comuns em Bucha e Izium; não é a majestade admirável dos templos ortodoxos ou dos grandes monumentos, mas a demolição, à bomba, de escolas, hospitais, teatros, bairros, infraestruturas civis, para infundir o terror. E estou a dizer pouco: seja do imenso legado cultural desperdiçado, seja deste presente enormemente detestável.

Os russos têm de respeitar a história, a arte, a cultura, a religião e a identidade dos ucranianos. Não se salvarão se o não fizerem. Serão tanto maiores quanto mais o fizerem. Os russos têm de beber da inspiração da sua história e dos seus escritores e artistas, não da intoxicação pela mentira e pela cicuta que jorram do Kremlin. Têm de libertar o Kremlin e livrar-se a si próprios da maldição de Putin.

Quando se foca os olhos apenas no passado na ilusão de o refazer, é certo repetir os seus horrores, não é nada certo reeditar as grandezas. O mundo, hoje, não está para conquistas; quer paz e entendimentos. Como é possível sentar-se no Conselho de Segurança das Nações Unidas um poder que usa como instrumento da política externa e de defesa uma coisa que dá pelo nome de “Grupo Wagner”? Não é um poder decente. É a sua própria caricatura.


José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado

DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 12.Outubro.2022

Comentários

Mensagens populares