O rapto da Constituição


Li com atenção os artigos “Constituição e a revisão”, de Miguel Poiares Maduro, e “Para quê uma revisão constitucional?”, da deputada Isabel Moreira, que têm responsabilidade nos projetos de revisão constitucional de PSD e PS. Ambos os partidos atacam o Chega, mas seguem-lhe o tempo e o modo. Não foi boa ideia.

O texto de Isabel Moreira tem dois anos de atraso. O de Poiares Maduro três anos de avanço. Ou vice-versa. Estas ideias deviam ter sido propostas em 2020/21, antes das eleições. Ou fazer parte da agenda eleitoral de 2026. Assim, é batota.

Não, o poder não pode ser como apetece, apenas porque a oportunidade e a potência estão a jeito. A palavra tem de ter significado e valor, senão não há direito, nem nada. Não há crédito, nem confiança se a palavra não vale. A Constituição diz: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular”. Acrescenta: “é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular”.

Todos sabemos que as eleições não cuidaram da revisão constitucional. Nem uma folhinha de papel, nem uma palavra só. Nenhum partido a pôs no programa, nem a debateu com os eleitores. As eleições foram para resolver um problema de estabilidade governativa. Esse foi o tema das escolhas eleitorais, junto com outras matérias debatidas. Rever a Constituição? Nada.

Como podem os partidos, às ordens de quem manda, abrir uma revisão constitucional, incluindo temas muito críticos, sem os deputados terem pedido e recebido mandato? A Constituição é da mais alta dignidade. Não pode vir-se, partido a partido, lançar de repente projetos de revisão, como ilusionista que tira coelhos da cartola.

O processo é oligárquico, depois de se ter subtraído ao povo eleitor a mais leve possibilidade de informação, de expressão, de mediação quanto à revisão constitucional. Sumiu a “República soberana, baseada na vontade popular”? Sumiu o “Estado de direito democrático, baseado na soberania popular”? Estas palavras não significam já o que dizem? Foram revistos os pilares fundacionais da Constituição? Ainda seremos uma democracia?

Há sempre possíveis pontos “de acordo”. É costume rodear estas manobras de acenos com andorinhas, miosótis e grinaldas – todo o ilusionista trabalha assim. Mas há matérias da maior sensibilidade: restrições a direitos, liberdades e garantias, ideologia de género alçada a dogma, mudança no estatuto do Presidente da República, número nacional único dos cidadãos, girândola programática. Por que não perguntaram antes? Porquê o facto consumado?

Não consigo lembrar revisão constitucional como esta. Talvez na Constituição de 1933, quando os projetos de revisão, creio, não iam a eleições – e estas não eram democráticas. É triste ver a Constituição, antes de fazer 50 anos, raptada para um estirador de oligarcas, desfigurando a vibrante legitimidade popular de 1975 e das revisões de 1982 e 1989. Se este processo se consuma, com o triunfo da oligarquia, o rapto pode ser para sempre. Nunca mais será diferente, nunca mais será democrático. Com a revisão, são também raptadas a democracia e a liberdade. Não sentem já a claustrofobia? Não veem a ameaça?


José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS

EXPRESSO, 25.Novembro.2022

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