O Menino Jesus



1. Não sei doutra religião em que Deus tenha nascido connosco e caminhado como nós até à morte. Dá-lhe proximidade única e a nós com Ele, como se caminhando lado a lado. Há trechos em que é literalmente assim, como nos discípulos de Emaús. É um dos traços principais que fazem do cristianismo uma religião singular. O que O revela e confirma como Deus não é o Seu nascimento, mas a Sua morte e ressurreição. Se não fosse a ressurreição, o nascimento seria como outro qualquer. Mas, como houve Páscoa, este nascimento é um Natal como nenhum outro: o Natal de Deus Menino.

Tenho andado a ler os evangelhos apócrifos, traduzidos por Frederico Lourenço. Fui ver o trecho do Natal no evangelho de Tiago:

2. E ficaram de pé no lugar da gruta. E eis que uma nuvem luminosa sombreava a gruta. E a parteira disse: «A minha alma foi engrandecida hoje, porque os meus olhos viram coisas milagrosas; porque salvação nasceu para Israel.» E logo a nuvem se afastou da gruta; e apareceu uma luz <tão> grande dentro da gruta que os olhos não aguentavam. E daí a pouco aquela luz afastou-se, até que o bebé apareceu. E veio e tomou o peito de sua mãe, Maria. E a parteira exclamou e disse: «Este é um grande dia para mim, porque vi esta nova maravilha!»

Lendo e ouvindo os quatro Evangelhos canónicos, de Mateus, Marcos, Lucas e João, vemos que houve sinais desde o princípio. No de Tiago também: é a “nuvem luminosa” e a “luz tão grande dentro da gruta que os olhos não aguentavam”. Depois, foi havendo outros sinais ao longo da vida de Jesus, de que uns se aperceberam e só alguns acreditaram. Até os mais próximos dos que O seguiam, duvidaram.

É pela morte e ressurreição que a verdade de quem era se revelou e toda a Sua vida ganhou o significado para O colocar no altar e no centro da religião cristã. Ou seja, chegamos ao Natal retrospectivamente, sabendo que aquele Menino é Deus, por causa do Seu fim e ressurreição. O Natal só é Natal por causa da Páscoa; e a Páscoa é o fim e a razão de ser do Natal. Ele nasceu para morrer e ressuscitar; e é por ter vindo a morrer e ressuscitar que nós sabemos quem é mesmo aquele Menino que nasceu.

Pode parecer cruel dizer assim: o Menino nasceu para morrer – e ressuscitar. Mas todos nós nascemos e morremos. Não nascemos para morrer; nascemos para viver e morremos. Mas aquele Menino, vivendo connosco e morrendo como nós, deu-nos a Páscoa. Comunicou-nos a fé e a esperança da vida eterna. Não tem nada de cruel, absolutamente o contrário. É a porta para onde não há fim, que as artes representam como uma “nuvem luminosa” ou “uma luz tão grande”, tal qual naquele presépio do evangelho apócrifo de Tiago.

Conheço o Menino Jesus desde criança, mas a minha relação com Ele é mais tardia. Nasci no dia 24, véspera de Natal, e o meu pai – que gostava muito de mim e eu dele – dizia até, para aumentar a intensidade do dia, que eu nascera à meia-noite solar. Havia nisto uma coincidência que tias, avós e outros familiares comentavam, por graça, anos a fio, com ternura, como se fosse um choque de datas que me apagasse o dia. Eu, que me sentia bem (nem melhor, nem pior por fazer anos na véspera de Natal), cresci com essas graças e a embirrar com elas. Eu nunca tivera, nem terei outro dia para fazer anos. Só isso.





2. Em casa de meus pais, houve sempre presépio e, com ele, o ritual cuidadoso de o armar e dispor. Muitas vezes, presépios diferentes de ano para ano, sobretudo quando, já com dez anos ou mais, o meu irmão e eu entrámos na inovação construtiva. Sou do tempo de ser fácil encontrar musgo em Lisboa, perto de nossa casa, e irmos os dois apanhá-lo e colhê-lo para atapetar o chão das figuras. Éramos muito imaginosos e, por vezes, um pouco exagerados. Mais tarde, em minha casa, também houve sempre presépio. Às tantas, minha mulher e eu entrámos a fazer colecção. Não muito grande, mas, ainda assim, variada. É um objecto de arte popular, de que gosto muito. Temos Meninos Jesus brancos e negros, índios e orientais. Há alguns que impressionam pela sua beleza pequenina, outros pela talha simples e rudimentar. Lá estão normalmente também os Magos, a vaca e o burro, mas o essencial é a Sagrada Família com o Menino no meio.

Apesar de fazer parte do ambiente do Natal em minha casa, desde que nasci e me lembro, não me recordo de me interrogar sobre o Menino Jesus. Talvez por ele estar lá sempre e ser um menino como eu. Era como um companheiro da infantil e, depois, na escola. Eu crescia e Ele não, porque Ele era uma figura. Nada de estranho. Nunca pensei muito sobre o Menino Jesus. Conheci-O muito antes de saber quem era e ainda mais cedo de entender quem era.

Creio que comecei a interrogar-me mais, depois de ser pai e, mais ainda, depois de ser avô. Foi ao olhar cada um dos meus filhos e filhas e, mais ainda, dos meus netos e netas, ao espreitar cada um deles no seu sono, ao velar seus movimentos, ao acompanhar o seu crescimento, que despertei para o encanto especial do centro do presépio. Quanto mais velho e longe do tempo de menino, dei comigo a procurar entendê-Lo mais. Claro que, diversamente de quanto aos meus filhos e netos, nunca me perguntei, a olhar o Menino Jesus, o que iria Ele ser – isso, sabemos. Mas passei a perguntar-me muitas vezes, e pergunto-me ainda, o que vai Ele fazer por nós – e nós também.

Para muitos, tudo isto são fantasias ou patranhas – no dizer agreste de Marx, “o ópio do povo”. Compreendo. A minha fé foi muitas vezes atravessada pela dúvida. Não é, de facto, fácil acreditar em Deus com tanta desgraça que acontece no mundo e na História. E, por isso, a minha fé teve, várias vezes, que ser confirmada e reconfirmada no caminho que tive de fazer – e que continuo. Mesmo sem o confronto com as trevas da vida e do mundo, mesmo sem ser assaltado pela pergunta da praxe – porquê, meu Deus? -, senti-me muitas vezes como Tomé, que teve de pôr a mão nas chagas de Cristo para acreditar. A minha fé teve de viajar, por vales e montanhas, o meu próprio percurso.





3. O Menino Jesus é das provas mais fortes, poderosas e evidentes da existência de Deus. E do Seu amor. Na minha teologia particular, na história humana onde encaixo e a que pertenço, há três momentos fundamentais de diálogo de Deus connosco. O primeiro é no Génesis, a história da maçã: o podermos fazer tudo, menos comer o fruto da árvore da ciência do bem e do mal – e fizemos o contrário. O segundo é no Êxodo, quando nos dá, por Moisés, os Dez Mandamentos – que às vezes cumprimos e muitas vezes não. E o terceiro é Jesus Cristo, que nos traz o Mandamento Novo: “ama o teu próximo como a ti mesmo; amai-vos uns aos outros como Eu vos amei.”

Quando crio qualquer coisa, que não é apenas um retrato, algo que é suposto funcionar, é natural que registe as instruções e as transmita a outros, para que o façam também funcionar. Qual é o criador que não gosta de ver funcionar aquilo que fez? Qual o canalizador que não gosta de ver que não pinga a torneira que colocou ou reparou? Ou os engenheiros e operários que puseram de pé a enorme ponte sobre o largo rio? Ou os que fizeram o grande avião que levanta do chão e voa, desafiando a gravidade?

A humanidade é uma criação mais complexa, mais rica, mais diversa e mais difícil. Mas a regra para a sua harmonia talvez mais simples e ao alcance de todos. É isso que Jesus Cristo veio trazer à nossa História: uma única regra, ainda hoje, dois mil anos depois, absolutamente desconcertante pela sua simplicidade e acessibilidade – “ama o teu próximo como a ti mesmo; amai-vos uns aos outros como Eu vos amei.”

O Menino Jesus veio crescer e viver connosco para anunciar isto. É o Moisés do Mandamento Novo, profeta e Deus Ele mesmo. Não recebe o mandamento, dá-o. Nasceu para isto, que é o próprio conteúdo da Páscoa. Natal e Páscoa não são só adoração, são conteúdo, são substância. O Mandamento Novo é a sua maior substância, o seu legado permanente.

Só pode vir do Criador. Só Ele podia saber que, se aplicado e cumprido, todos os problemas da Humanidade se resolveriam. Alguém tem dúvida de que a violência, a exploração, a opressão, o abuso, o abandono, o descaso, acabariam, se cada um e todos – isto é, a Humanidade – passássemos a guiar-nos por aquela ideia?

O nosso problema é outro, como, uma vez, estudando Economia Política, encontrei numa ironia certeira e deliciosa de Bernard Shaw, citado por Paul Samuelson, norte-americano que recebeu o Prémio Nobel da Economia. Samuelson estava a explicar, num dos seus livros de ensino, o funcionamento do mercado, o mecanismo dos preços, a livre empresa e a chamada “concorrência perfeita”, bem como os seus limites, quando remata assim: «Um cínico devia dizer da concorrência perfeita o que Bernard Shaw disse do cristianismo: o seu único problema é nunca ter sido tentado na prática.»

O único problema do cristianismo é nunca ter sido tentado na prática. Como costumo comentar, esta é uma ideia muito provocadora: há grandes inspirações que não resultam, não por serem erradas, mas apenas porque não são aplicadas. Mas esse não é o problema da regra, nem de Deus e, muito menos, do Menino Jesus. É o nosso problema e a nossa responsabilidade. É a nós que cabe segui-lo e aplicá-lo na prática.





4. O que o presépio tem de encantador é a Sagrada Família e todos os outros que vêm visitar, focados e centrados naquele bebé, que é o Menino Jesus. Não é muito diferente no nascimento de cada um dos nossos filhos e filhas, netos e netas. Não é também diferente, ao longo da nossa vida, nos nossos dias de aniversário, em que ocupamos o lugar central e revemos espiritualmente todo o tempo desde o nosso nascimento.

Desde o nascimento de Jesus, a Terra já deu 2022 voltas em torno do Sol. Todos os anos, desde que os cristãos passaram a celebrar o Natal (que se foi tornando universal), o Menino Jesus volta de inúmeras maneiras aos nossos dias e à nossa vista. Esse regresso é um novo convite, uma nova oportunidade, um novo chamamento: “ama o teu próximo como a ti mesmo; amai-vos uns aos outros como Eu vos amei.” O chamamento para um mundo melhor.

Tenho sentido que é mais difícil dizer que não ao Menino, se focamos nele o espírito, o sentimento e o olhar. Já referi que sinto a minha experiência de fé é parecida com a de Tomé. Recordo o trecho inteiro, logo a seguir à ressurreição de Cristo, para que me situar:

Tomé, um dos doze, chamado Dídimo, não estava com eles quando veio Jesus. Disseram-lhe os outros discípulos: «Vimos o Senhor!». Mas ele respondeu-lhes: «Se eu não vir o sinal dos cravos nas Suas mãos, se não meter o dedo no lugar dos cravos e não meter a mão no Seu lado, não acreditarei.»

Oito dias depois, estavam os discípulos outra vez em casa, e Tomé estava com eles. Veio Jesus, estando as portas fechadas, apresentou-Se no meio deles e disse: «A paz seja convosco.» Depois disse a Tomé: «Chega aqui o teu dedo e vê as Minhas mãos; aproxima a tua mão e mete-a no Meu lado: e não sejas incrédulo, mas crente.» Respondeu-lhe Tomé: «Meu Senhor e meu Deus!» Disse-lhe Jesus: «Porque Me viste, acreditaste. Bem-aventurados os que, sem terem visto, acreditam!» (Jo 20, 24-29)

A diferença com Tomé é não poder tocar com a mão. Ninguém pode, senão os poucos que foram contemporâneos e estiveram com Ele. Eu estou limitado a ser um daqueles milhões de cristãos, desde o começo do cristianismo, “que, sem terem visto, acreditam”, com o prémio de sermos bem-aventurado se acreditarmos.

Sem entrar em vivências pessoais, impressionam-me factos. Um é a absoluta irrefutabilidade do Mandamento Novo: funciona mesmo – é claro, se o aplicarmos. Funciona, sempre que o pomos em prática. Outro é a própria verdade da vida de Cristo, desde Menino Jesus, que nos é relatada e chega até nós.

Sim, eu sei que pode pôr-se tudo em dúvida, que pode congeminar-se uma conspiração vaticana para enganar os ignaros, que pode configurar-se uma construção de poder, que pode imaginar-se uma gigantesca mentira de manipuladores. E sei também que a nossa fragilidade, os nossos erros, os nossos abusos, a nossa hipocrisia, a nossa duplicidade, as nossas fraquezas, a nossa violência, o nosso pecado, abalam, muitas vezes, a credibilidade da pregação e do testemunho. Mas não somos nós que estamos em causa. Do que se trata é de Deus e da Sua Palavra.

No tempo em que eles viveram e contaram a vida de Cristo, que chega até nós, por que iam mentir? Por que não iam contar a verdade exactamente como a tinham visto, ouvido e vivido? Não tinham qualquer poder, nem o buscavam. Não havia Vaticano de espécie alguma. Não ganhavam nada por o escrever e contar. Pelo contrário, por causa de contarem, muitos foram martirizados e mortos, como Jesus Cristo, ou ainda pior do que Ele. Esses que morreram para nos contar são, para nosso conhecimento e nossa fé, outra vez as mãos de Tomé nas chagas de Cristo. É verdade.

O regresso do Menino Jesus em cada ano, a cada mais uma volta em torno do Sol, é mais uma oportunidade para sermos melhores. Nós precisamos muito disso, de rituais de reencontro e de recomeço. Eu preciso. E – quem sabe? – talvez um dia o mundo inteiro acorde para pôr em prática o Mandamento Novo que tudo resolve: “ama o teu próximo como a ti mesmo; amai-vos uns aos outros como Eu vos amei.”

Até Putin, que fala tanto com o Patriarca de Moscovo, poria fim à guerra, assim num luminoso instante repentino, se lesse com atenção o olhar do Menino Jesus no presépio – e o Patriarca também, para dar bons conselhos e não maus. Zelensky, é claro. também. Mas é Putin que tem de parar e retirar. Não digo que seja provável; digo que seria possível, se seguissem essa inspiração. E digo que essa é a única forma de acabar a guerra, trazendo a paz.

Bom, Feliz e Santo Natal!

Há-os todos os anos. Disfrutemos bem deste. Com alegria, esperança e paz.



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