Autarcas há muitos!...
Há algum tempo que me sinto chamado a escrever este artigo. Justifica-o a necessidade de chamar a atenção para um erro cada vez mais frequente na comunicação social, para o atalhar e o ver corrigido. Infelizmente, contribui para enraizar ignorância no público.
Sobretudo na televisão, oiço cada vez mais jornalistas a referirem-se ao Presidente da Câmara Municipal deste ou daquele concelho como “o autarca”: o autarca daqui, o autarca dali, o autarca dacolá… Não tenho certeza de a prática acontecer em todos os canais. Oiço-o com frequência, sem querer apontar o dedo a ninguém. O mesmo se passa na rádio. E também pela imprensa a praga vai alastrando: “Autarca de Condeixa-a-Nova condenado a quatro anos de pena suspensa”, “Autarca de Valença espera ‘todo o apoio possível’ do Governo para reconstrução da fortaleza”, “Autarca da Guarda veio novamente explicar os motivos que levaram a Câmara a rejeitar o apoio da DGARtes para o TMG”, “Autarca de Viana do Castelo expulsa munícipe de reunião da Câmara”, “Ex-autarca de Bragança acusado de receber por despesas pessoais”, “Incêndios: autarca da Covilhã diz que já arderam cerca de três mil hectares no concelho”, etc. Havendo escândalo, é certo e sabido que, no intenso caudal noticioso, o Presidente da Câmara passa à etiqueta de “o autarca”. Mas o hábito generalizou-se e está instalado, a propósito dos mais variados temas.
Está errado.
Muitas vezes, um exemplo cómico ajuda a enraizar a correcção de um erro, lembrando-a para sempre. Por isso, recorro à famosa cena de Vasco Santana, no filme “Canção de Lisboa”, em visita ao Jardim Zoológico com as tias, em que lhe sai esta tirada: “Chapéus há muitos, seu palerma!” Está no YouTube, para quem não conhece ou quiser rever: https://youtu.be/yWj6Bhutz6s.
No caso deste artigo, podemos dizer, como Vasco Santana, “Autarcas há muitos, seu palerma”, sem ferir a susceptibilidade de quem quer que seja. É a graça do grande actor.
Os Presidentes de Câmara não são os únicos autarcas que há, mas ínfima minoria dos autarcas do país e do seu próprio município. Um Presidente de Câmara é tão autarca do seu concelho quanto os seus Vice-presidentes e vereadores, incluindo os da oposição; e é tão autarca quanto os membros da Assembleia Municipal e os membros das Juntas e Assembleias de Freguesia. Por isso, chamar-lhe “o autarca” é errado, não servindo para o identificar. Ele é “um autarca”, como milhares de outros e, só no seu município, centenas de outros.
O artigo 236.º da Constituição define as autarquias locais: as freguesias, os municípios e, se tivessem sido criadas e constituídas, as regiões administrativas. Por isso, todos os membros dos órgãos das autarquias locais podem ser designados de “autarcas”, embora a lei prefira “eleitos locais” – assim diz a Lei n.º 29/87, de 30 de Junho, que aprova o Estatuto dos Eleitos Locais. Mas a lei também usa, correctamente, a menção genérica “autarcas”, referindo-se a todos “os titulares dos órgãos das autarquias locais” – veja-se o artigo 7.º da Lei n.º 52/2019, de 31 de Julho (Regime do Exercício de Funções por Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos).
Os autarcas são, pelo menos, 38.368 em Portugal: 2.064 membros das Câmaras Municipais (entre os quais os 308 Presidentes), 6.448 membros das Assembleias Municipais, 26.790 membros das Assembleias de Freguesia e 3.066 Presidentes das Juntas de Freguesia. E há mais ainda, pois não consegui obter o número total de membros das Juntas de Freguesia.
Por favor, não chamem “o autarca” a cada Presidente de Câmara. Para designar o Presidente da Câmara Municipal, chamem-lhe isso mesmo, que é o que é: Presidente da Câmara Municipal ou, simplificando, Presidente da Câmara. Querendo fazer variações jornalísticas, sempre poderão usar “líder municipal”, “chefe do executivo” ou outras figuras de estilo, que não sejam erradas, nem desconformes com a Constituição e a lei.
Autarcas são todos os eleitos locais, sem qualquer excepção.
José Ribeiro e Castro
Ex-líder do CDS, advogado
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 12.Janeiro.2023
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