Uma nódoa na nossa democracia: a lei da eutanásia e do suicídio, tentativa de lei a martelo



Uma lei tão dilacerante quanto a que passa de uma longa cultura moral e jurídica de proibição do “homicídio a pedido da vítima” e da “ajuda ao suicídio” (as definições do Código Penal) para uma nova cultura que os autoriza e regulamenta é uma lei que, geralmente, como é natural, desperta debates acalorados e dura confrontação de posições. Nos poucos países que, nas últimas duas décadas, abriram essa porta foi quase sempre assim – são 13 num total de 193 países que há no mundo. Um sinal dessa dureza está, desde logo, em quatro daqueles 13 terem aberto a porta ao suicídio assistido, mas não à eutanásia.

O que nunca aconteceu é o que se tem passado em Portugal: uma maioria política aparentemente favorável à fácil passagem dessa legislação de ruptura no nosso sistema de valores não consegue levá-la avante e acumula fracassos políticos seguidos. Seria difícil haver outro sinal tão evidente de rejeição profunda desta legislação pela consciência portuguesa.

Vale a pena recapitular. Para lembrarmos. Para não nos esquecermos.

Em 2018, em pleno império da geringonça, quando, depois de laborioso cerco por vários debates em circuito fechado, os proponentes do PS, BE e PAN, com algumas ajudas do PSD, esperavam festejar a nova era, eis que foram confrontados com o estrondo da reprovação parlamentar, quando se imaginavam, desde o princípio da legislatura, em 2015, com maioria segura.

Mandaria o bom senso democrático que fizessem uma pausa. Que tomassem alguma distância, que reavaliassem a questão, que deixassem o tempo falar e a sociedade respirar. Nada disso.

Em 2019, os proponentes voltam à carga de imediato, com o Bloco de Esquerda a abrir o desfile logo no primeiro dia da legislatura, como se a administração da morte fosse a prioridade mais premente do país, a necessidade mais urgente e imperativa. Ao projecto do BE viriam a juntar-se os do PAN, do PS, do PEV e da IL. A maioria de esquerda estava reforçada na Assembleia da República, com uma nova ajuda à direita (os liberais). A segunda tentativa de lei seria aprovada na generalidade, em 2020, e na votação final, em 2021. Porém, o Presidente da República decidiu submetê-la à fiscalização preventiva pelo Tribunal Constitucional e este reprova o Decreto parlamentar. O Decreto da Assembleia é inconstitucional.

A maioria parlamentar pela eutanásia não se conforma; e recusa de novo fazer uma pausa, tomar distância, reavaliar a questão. Ao longo de meses, atira-se a um laborioso crochet normativo, procurando, palavrinha aqui, palavrinha acolá, rodear, com um martelinho, os problemas jurídicos suscitados. No final do ano, em plena crise política (que, entretanto, se abrira no país), a maioria faz aprovar um novo texto. Este tem, porém, evidentes erros técnicos. O laborioso crochet normativo, afinal, traduzira-se em esmero desleixado. O resultado foi receber o veto do Presidente da República, que aponta essas deficiências. E, como fomos todos para eleições, o Decreto parlamentar acabaria por caducar.

Depois de três chumbos – o primeiro na Assembleia, o segundo no Tribunal Constitucional, o terceiro no Presidente da República –, seria avisado, em boa consciência democrática, que a militância da causa fizesse pausa, respirando e deixando respirar. Que tomasse alguma distância, reavaliasse a questão, deixasse o tempo e a sociedade respirarem. Uma vez mais, nada disso.

Mal começa a nova legislatura, os proponentes voltam de imediato à carga, com o Bloco de novo a picar o ponto, logo no primeiro dia, não fosse alguém querer disputar ao BE a liderança na administração da morte. Seguiram-se os do costume: PS, PAN e IL. O método foi repescar o Decreto caducado no final da legislatura anterior e encetar novo laborioso crochet para, pensava-se, reparar os erros técnicos que tinham sido postos a nu. Mas, nesse novo cartear das palavras, os proponentes não se ficaram por aí e, à socapa, sem claramente o afirmarem, puxaram do martelo para avançar por novos caminhos, que não estavam nem no texto final de 2018, nem nos dois Decretos votados em 2021. Tendo o benefício de, pela primeira vez em Portugal, disporem da terceira maioria de esquerda consecutiva na Assembleia da República e com o desastre em que a direita continua a afundar-se, não houve dificuldade em a esquerda (com excepção do PCP, mas jeitosas ajudas à direita) aprovar no plenário o novo Decreto da eutanásia e do suicídio.

Porém, como era de esperar por qualquer um que tivesse lido o anterior veto presidencial, o Presidente não promulgou o Decreto parlamentar e remeteu-o, tal como no início de 2021, para fiscalização preventiva pelo Tribunal Constitucional. É onde estamos.

Ninguém sabe com absoluta certeza o que fará o Tribunal Constitucional. Mas, atento o Acórdão anterior e tendo em conta que, de forma atrevida e muito imprudente, a maioria parlamentar resolveu ir muito além do que era o espaço jurídico definido pelo Decreto de 2021, não será nada surpreendente que o Tribunal venha pronunciar-se outra vez pela inconstitucionalidade. Joaquim Pedro Cardoso da Costa escreveu, há dias, no Observador, um artigo muito completo e competente (O Parlamento ouviu mesmo o Tribunal Constitucional?), em que põe em evidência a jurisprudência que, nas matérias, agora, cruciais, resulta do anterior Acórdão. Teríamos, assim, o quarto chumbo consecutivo.

Não conheço outro país onde tenha acontecido um processo tão acidentado. A obstinação febril do núcleo duro dos proponentes não tem sido boa conselheira. E também não é democrática.

Não é só o facto de não se terem imposto a si mesmos uma pausa, a seguir a cada revés, concedendo a todos espaço e tempo para reflectir. Não é só essa febre, um pouco raivosa, de marchar logo contra o “inimigo”, assumindo, com arrogância, este comando mental: “temos maioria, aqui vai disto!”

É ainda a completa falta de respeito pela democracia e pela manifestação da vontade democrática dos cidadãos. Por um lado, neste mesmo período de tempo, reprovaram, por duas vezes, a submissão desta questão a um referendo, ou seja, proibiram os cidadãos de debaterem directamente o tema e emitirem também directamente a expressão do seu pensamento e vontade – uma democracia que sofre de demofobia. Por outro lado, no caso do PS, que tem pilotado este processo desde 2016, tem deliberadamente subtraído esta matéria ao debate eleitoral democrático: o PS, hoje com maioria absoluta, escondeu propositadamente a eutanásia e o suicídio dos seus programas eleitorais em 2015, em 2019 e em 2022. Escondeu, com medo de perder votos. Uma vergonha. Uma nódoa na nossa democracia.

Por último, choca, no plano humano, o desprezo objectivo pelos cuidados paliativos, matéria – essa, sim – verdadeiramente candente nos cuidados de saúde de fim de vida e, em geral, na abordagem médica do sofrimento. Os proponentes daquelas mudanças da lei também batem com a mão no peito em defesa dos cuidados paliativos. Mas, tendo maioria política desde 2015 e tendo este processo legislativo começado em 2016, o que é que fizeram nestes seis anos? Nada! Nada que realmente se veja. A vergonha maior é o Bloco de Esquerda, no primeiro dia das legislaturas iniciadas em 2019 e 2022, a correr para ser o primeiro a apresentar o seu projecto de lei. Um projecto a defender os cuidados paliativos? Não, um projecto a defender a eutanásia e o suicídio. Estas é que são as prioridades. Uma vergonha sintomática. Outra nódoa na nossa democracia.


José Ribeiro e Castro
Advogado e cidadão

TEJO MAG, 9.Janeiro.2023

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