Alexandre Patrício Gouveia, grande português, nosso amigo

 

1. O Alexandre Patrício Gouveia era uma pessoa muito discreta, que fez realizações de grande importância. Era pessoa muito generosa. Ajudou muita gente e diversas entidades ao longo da sua vida. Pôs sobretudo essa generosidade ao serviço das causas que animava e dos valores que defendia.

Era conhecida a sua militância no PSD e o seu sportinguismo. Em ambos os casos, totalmente fiel. Era católico e bom tipo. Acreditava inteiramente em Deus e cresceu a procurar seguir Jesus Cristo, quanto podia e quanto sabia. Era tendencialmente alegre e gostava muito dessa alegria. Gostava particularmente de a manifestar com grande exuberância, sublinhando-a com gargalhadas. Era muito, mesmo muito, entusiasta das causas que abraçava e seguia. E absolutamente determinado na sua prossecução.

Interveio em várias causas, de natureza cívica e política. Subscreveu manifestos e agiu pelo seu partido, no seu clube e em diferentes associações. Desdobrou-se em cidadania. Mas houve duas causas em que mais deixou a sua marca. Tiveram a ver com dois factos da sua vida e da sua alma: por um lado, custou-lhe muito a morte trágica do seu irmão António, em 1980; por outro, gostava muito de Portugal e gostava muito de ser português, disso se alimentando o seu patriotismo.

 

2. Os nossos caminhos aproximaram-se muito nos anos ´80 e ´90, por causa da investigação ao caso Camarate, que vitimou, em 4 de Dezembro de 1980, o primeiro-ministro Francisco de Sá Carneiro, a mulher e o chefe de gabinete, o ministro da Defesa Nacional Adelino Amaro da Costa e sua mulher, o piloto e o co-piloto. O irmão do Alexandre, António Patrício Gouveia, era o chefe de gabinete de Sá Carneiro, uma das sete vítimas mortais do desastre. Eu era próximo de Adelino Amaro da Costa, um dos meus maiores amigos.

A pouco e pouco, fomos fazendo parte de um grupo de familiares das vítimas e seus representantes (onde merece destaque Augusto Cid), que se esforçavam, em especial junto da Assembleia da República, para fazer avançar a descoberta da verdade, que o Estado persistia em deixar na penumbra. Já no final de 1981, antes de passar um ano sobre a tragédia, a tese oficial de acidente perdera qualquer consistência e exigia nova abordagem, que nunca viria a ser feita. Em Março, o inquérito técnico concluíra por um acidente, motivado pela paragem do motor esquerdo à descolagem, conjugada com outras circunstâncias. O motor parara por falta de combustível. Mas, não conseguindo explicar o esgotamento integral do combustível nos depósitos que alimentavam esse motor, o inquérito técnico concluiu que o combustível, numa quantidade um pouco acima de 100 litros, tinha sido furtado. Em Outubro, a Polícia Judiciária, responsável pelo inquérito criminal, veio concluir não ter havido qualquer furto de combustível. Ou seja, a tese do acidente perdera sustentabilidade e haveria, no mínimo, que a rever.

Nos organismos do Estado, ninguém se mexeu nesse sentido. Por isso, as famílias tiveram de avançar. Houve uma primeira comissão parlamentar, que apontou, em 1983, várias fragilidades da investigação oficial. A seguir, a partir de 1984, abriu-se o caminho de comissões parlamentares de inquérito que não se limitavam a fiscalizar, mas avançavam directamente para investigações próprias no plano técnico e na recolha de provas.  O Alexandre Patrício Gouveia teve papel relevante neste esforço, feito sobretudo nas comissões parlamentares, várias até 2015, embora também em sede judicial. Foi dos que correu riscos pessoais e, algumas vezes, enfrentou perigos, na busca incansável dos motivos e dos autores do atentado. Pode ter cometido algum excesso, mas fê-lo com a autenticidade de ser irmão de um dos assassinados em Camarate e com a legitimidade do inconformismo perante a incompetência ou mesmo a abulia da investigação oficial. Se hoje sabemos que Camarate foi um crime (embora sem se ter conseguido provar preto-no-branco exactamente quem e porquê), devemo-lo às comissões parlamentares e, dentro destas, maioritariamente aos familiares das vítimas. Como várias vezes disse e lamentei, tiveram de ser as famílias a explicar ao Estado por que morreram os seus servidores, em lugar de ser o Estado (na investigação oficial) a explicar às famílias por que morreram os seus filhos. Uma nódoa impossível de apagar.

A intervenção do Alexandre foi especialmente decisiva, em 1995, liderando a decisão por parte das famílias das vítimas de não deixar consumar-se a prescrição judicial e reunindo as condições para, face à claudicação do Ministério Público, promover uma acusação particular antes de 4 de Dezembro de 1995. É aí que entra Ricardo Sá Fernandes, que passa a conduzir a actuação judicial dos familiares das vítimas, com intervenção também em diferentes comissões parlamentares e vindo a escrever ainda um importante livro sobre este tema, uma das histórias mais tristes da nossa recente história judiciária.

Alexandre Patrício Gouveia teve intervenção activa sobretudo a partir da comissão parlamentar de inquérito que trabalhou na legislatura 1991/95 e nunca baixaria a intensidade do seu trabalho até à última em 2015. O esforço era muito desigual: apesar da revisão técnica das condições do sinistro e dos embates e da reunião de provas insofismáveis de ocorrência de atentado no avião que se despenhou em Camarate, não se conseguiu demover a inércia corporativa dos corpos do Estado indispensáveis ao apuramento de autorias e outras responsabilidades. Além disso, a passagem do tempo tornava cada vez mais difícil que estas pudessem ser deslindadas. As comissões parlamentares não têm condições para realizar o que apenas está ao alcance de averiguações policiais, feitas no tempo próprio. O Alexandre nunca parou, mesmo diante da indiferença granítica dos que mais deveriam ter feito no aparelho de Estado.

 

3. A área onde Alexandre Patrício Gouveia deixa a sua marca mais forte é no serviço da alma de Portugal e da nossa História. Estivemos várias vezes juntos. Acompanhou-me, desde 2012, no Movimento 1.º de Dezembro, na defesa do feriado nacional, onde foi um dos dirigentes mais entusiastas. Acompanhou-me em diversas ocasiões a Olivença, no trabalho original que aí tem sido desenvolvido e fez amizades com os oliventinos na associação “Além-Guadiana”. E acompanhou-me, desde 2020, na Sociedade Histórica da Independência de Portugal, de que foi um dos mais dedicados dirigentes, deixando, numa área de que detinha o pelouro, valioso legado para o futuro.

Mas a mais brilhante obra de Alexandre Patrício Gouveia é a Fundação Batalha de Aljubarrota, que concebeu, fundou e presidia. É uma realização notável de sociedade civil, rara no seu género e eficácia e ímpar do modelo de iniciativa privada de serviço público. Lembro-me de ter ido, a convite do Alexandre, uma primeira vez, ao Campo de São Jorge, num grupo a que quis mostrar o que planeava fazer. Foi (creio) em 2002, ano em que a Fundação foi instituída. Era um grupo de vários amigos e conhecidos, onde se destacava Cavaco Silva. Vimos um edifício que lá havia, com pouco uso, a Capela e o estado do campo. Vimos o ponto de partida. Hoje, quando lá voltamos é consolador ver tudo o que aí está feito.

O Alexandre partia de grande amor a Portugal, à nossa individualidade e à nossa independência. Era dos portugueses que gostam muito de Portugal e que se revêem na História que nos fez absolutamente singulares. Tinha também imensurável admiração por Nuno Álvares Pereira. Leu e estudou a sua figura em toda a extensão que pôde e tornou-se devoto de São Nuno de Santa Maria, canonizado já em 2009. Dava gosto ouvi-lo falar do heroico Santo Condestável e descrever os seus feitos. O último livro que nos deixou escrito, que apresentaremos na próxima terça-feira, 21 de Março, tem justamente Nuno Álvares como figura de referência, na Batalha dos Atoleiros, um dos seus primeiros grandes êxitos militares ao serviço do nosso Dom João I e em defesa da independência de Portugal, na grave crise de 1383/85.

Alexandre Patrício Gouveia chocava-se com o descuido em que estavam campos históricos da História de Portugal, onde se travaram batalhas fundamentais e decisivas. Neste elenco, destacava-se a Batalha de Aljubarrota, em torno da qual construiu a Fundação, realizando formidável trabalho de recuperação, preservação, classificação, valorização e divulgação deste memorável campo militar, com seu Centro de Interpretação. Mas não ficou por aqui. A Fundação, sob sua liderança, tornou-se o epicentro de um mais vasto trabalho notável de demarcação e classificação de campos de batalha históricos para a liberdade colectiva de Portugal e nossa independência nacional, na Guerra da Independência, no final do século XIV (Atoleiros, Trancoso e Aljubarrota) e na Guerra da Restauração, em meados do século XVI (Linhas de Elvas, Ameixial e Montes Claros). E estendeu ainda, pessoalmente, a sua generosidade e apoio a iniciativas similares como ao Centro Interpretativo da Batalha de Castelo Rodrigo. Se, hoje, esses campos militares se acham todos definidos e demarcados, com classificação como monumentos nacionais, fica a dever-se à acção porfiada de Alexandre Patrício Gouveia e aos apoios que conseguiu despertar. O último em que o conseguiu, pouco antes da sua morte, foi o da Batalha dos Atoleiros, classificado pelo Decreto n.º 3/2023, de 7 de Fevereiro.

São tudo terrenos de sim ou não. Terrenos onde, num só dia de batalha, se jogou, às vezes inteiramente, o nosso destino colectivo: se Portugal continuava, se Portugal morria. Tomemos Aljubarrota, em 1385, por exemplo: se tivéssemos perdido, Portugal perderia a sua independência, talvez de forma irreversível. Não teria havido D. João I, nem a dinastia de Aviz, nem a Ínclita Geração, nem o Infante Dom Henrique, nem provavelmente os Descobrimentos, porque outras seriam as prioridades e linhas estratégicas de um reino só, centrado em Castela. E o mesmo podemos imaginar quanto a Montes Claros, em 1665, a última batalha da Guerra da Restauração: se a tivéssemos perdido, 25 anos depois do 1.º de Dezembro, ao fim de um quarto de século de árduos trabalhos, Filipe IV de Espanha teria retomado o governo de Portugal, que, submetido pelas armas, provavelmente integraria no mesmo reino. E, perdida a independência nesse quadro e nesse tempo, dificilmente a retomaríamos mais tarde – talvez só nas lutas do século XIX, se tivéssemos conseguido preservar identidade e individualidade. O Alexandre considerava estes campos históricos como sagrados. Tinha razão e a isso se dedicou. Aí podemos conhecer e celebrar terrenos decisivos – literalmente decisivos – para a nossa existência nacional. Como disse, são terrenos de sim ou não para Portugal: terrenos de nunca mais ou para sempre, altares formidáveis da nossa existência.

A experiência de Aljubarrota foi um sucesso progressivo, que o animou a replicá-la noutros lugares de natureza similar. Assim nasceu o Centro de Interpretação da Batalha dos Atoleiros e está a caminho, em Borba, o Centro de Interpretação da Batalha de Montes Claros. Uma experiência que mostra o interesse educativo e cultural destes equipamentos: são sem conta as famílias, as escolas e as associações que os procuram para conhecerem melhor ou reverem momentos fundamentais da nossa História. E, confirmando o alto valor turístico da nossa História, são milhares os turistas estrangeiros e nacionais que os procuram, todos os anos, visitando também os respectivos municípios.

A Portaria que, em 2015, lhe atribuiu a Medalha da Defesa Nacional, de 1.ª classe, faz jus ao extraordinário valor nacional do trabalho de Alexandre Patrício Gouveia. Destaca como assumiu e serviu a “importância e necessidade da recuperação e valorização do património histórico nacional, enquanto valor intangível da defesa nacional”. Descreve e exalta o “contributo significativo, não apenas para recuperar e valorizar a paisagem do Campo de Aljubarrota, mas para que este local se tornasse num dos principais pontos de turismo cultural existentes em Portugal, sendo a Batalha de Aljubarrota hoje considerada, do ponto de vista político, militar e diplomático, uma das três batalhas medievais mais importantes em toda a Europa.” Acrescenta como “direcionou a Fundação que dirige no sentido de classificar os seis locais onde se travaram as batalhas mais relevantes para a consolidação de Portugal como país livre e independente”. Destaca o “seu papel na valorização da história e cultura militar” e a forma como exprimiu a “importância inclusiva dos valores da defesa nacional e da necessidade de trabalhar em rede com os diversos atores.” De facto, Alexandre Patrício Gouveia foi exemplar em recusar um modelo ensimesmado, colocando a Fundação ao serviço das várias instituições com que devia articular-se, a nível central e municipal, civil e militar. Acompanhei algumas vezes o seu trabalho com os municípios onde a acção da Fundação se projectava, directa ou indirectamente, e com o Estado-Maior General das Forças Armadas e o Exército, mais frequente interlocutor militar, sendo testemunha da excelência das relações e efectiva cooperação.

Foi certamente por este mesmo reconhecimento que, em Fevereiro, o Presidente da República o condecorou com a Grã-Cruz da Ordem do Infante Dom Henrique. Discretamente, como o Alexandre sempre foi. Uma distinção bem merecida, que, pela parte da Sociedade Histórica da Independência de Portugal, como seu Presidente, aplaudo e agradeço em nome de todos os sócios e dirigentes. Sentimo-nos muito honrados por o termos como um dos nossos.

 

4. No fim, foi a doença, mas não se dava por ela. A forma como viveu a doença, que acabaria por vencer, é ilustração poderosa da discrição do seu carácter e do seu estilo. O Alexandre morreu, domingo passado, daquilo que a imprensa costuma designar assim: “Faleceu Fulano, vítima de doença prolongada”.

A doença, cujo nome quase ninguém pronuncia, foi declarada ao Alexandre há cerca de quatro anos e meio, ainda 2018. Enfrentou-a com coragem e serenidade verdadeiramente impressionantes. E absoluta discrição, alimentada precisamente por essa coragem e serenidade. São muitas as pessoas que, embora próximas dele em envolvimentos cívicos ou sociais, tendo estado com ele diversas vezes ao longo deste período, não faziam a menor ideia de que estava doente. Olhando para trás, revendo o que fizemos com ele desde 2018, as vezes que rimos, as discussões que tivemos, as realizações que concretizámos, parece impossível. Parece impossível que o Alexandre estivesse nesse tempo todo com aquela doença de que não se diz o nome.

Não abandonou nada, não renunciou a solicitações. Não pendurou nenhum sonho ou ambição cívica, não desistiu de nada que estivesse a fazer. Não encostou à berma, quebrado e gemendo. Continuou a fazer planos e a puxar por projectos, em toda a medida que as forças lhe permitiam, mesmo depois de, nos últimos três meses, a morte lhe ter dito estava a chegar.

Sabia. Não combateu a morte, lutou contra a doença. Enfrentou o cancro. Fez tudo o que teve de fazer, sem nunca abandonar responsabilidades, refugiar-se atrás de portas, afundar-se num quarto escuro. Manteve a cara alegre e a capacidade de crença e realização. Não tinha medo. Na penúltima vez que estive com ele, falando do seu último livro que íamos lançar, interrompeu a conversa para, de sorriso aberto, me dizer: “Olha que, quando Deus me quiser chamar, eu estou pronto. Totalmente preparado.” Disse-lhe que sabia. Manteve esta segurança até ao fim, com uma atitude perante a doença de admirável heroicidade.

Está certamente em paz, confirmando tudo em que acreditou. Não é difícil imaginar que, se já se cruzou com Nuno Álvares Pereira, foi para logo lhe perguntar como teve a ideia de fazer cavar aquelas covas de lobo no campo de Aljubarrota e como sabia que tinha de as abrir naqueles sítios e não noutros. E, se obteve a resposta, como ficou contente por saber; e aborrecido por não ter forma de nos transmitir mais um segredo daquela batalha fundamental. Eram outros traços do Alexandre: uma curiosidade teimosa e o prazer de partilhar de imediato a chave dos enigmas. Não era avaro, de guardar segredos que interessassem a outros.

Faz-nos muita falta o Alexandre. Como português, cidadão e nosso amigo.


José Ribeiro e Castro
Advogado e cidadão

OBSERVADOR, 19.Março.2023

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