Vistos gold, a tentação da asneira
1. O PRECONCEITO. Começo por uma declaração de interesses: hoje, como advogado, presto serviços profissionais a titulares de ARI – Autorização de Residência para Investimento, a denominação da lei para os chamados vistos gold. A experiência concreta de três anos ajudou-me, aliás, a vencer algum preconceito que tinha por efeito da predominância de comentários negativos quanto a este instrumento de mobilidade internacional estabelecido em 2012.
Não confirmei o badalado perfil de milionários sem escrúpulos, ou de gente ávida de obter tudo através da corrupção. A amostra do nosso escritório, onde temos casos ARI, mostrou uma realidade bastante normal e dentro do comum, com que todos nos cruzamos nas nossas vidas. São investidores da América do Norte e do Sul, do Norte de África e do Médio Oriente, do Golfo da Guiné. Talvez haja dois que correspondam ao perfil de milionários. Mas não tenho a certeza, pois o programa ARI não exige cláusula milionária: só uma das oito alternativas legais de candidatura atinge esse limiar – a “transferência de capitais no montante igual ou superior a 1,5 milhões de euros” – e nós não temos qualquer investidor por esta porta. Os investimentos exigidos por lei, já depois dos aumentos vigentes desde 2022, são de 500.000 euros para baixo nas outras sete alternativas. Temos empresários e outros como um médico, uma notária, um arquitecto, uma directora administrativa, uma advogada, um gestor...
São quase todos pessoas de classe média, que buscam na ARI ampliar a sua mobilidade internacional, conjugando este objectivo com alguns outros: uns, vivem em países instáveis e buscam rectaguarda segura, se vier a ser necessário; muitos fazem-no pelos filhos, olhando à sua frequência universitária e garantia específica de mobilidade na Europa; outros (residentes em países americanos) encaram mudar-se para aqui ou dividir o tempo entre América e Europa; outros acreditaram na estabilidade de Portugal e apostaram no investimento, que consideraram interessante. Nada de escondido, obscuro ou estranho. Uma investidora gosta tanto de Portugal e da cultura que, em vez de um investimento comercial, decidiu fazer um vultuoso donativo a um museu estatal – ainda não lhe disseram “obrigado”.
2. A CRISE NA HABITAÇÃO. Desde 2012, segundo as estatísticas oficiais do SEF, o programa ARI, até Março, produziu um investimento estrangeiro de 7 mil milhões de euros. Mesmo sendo Portugal um país rico e estando por certo cheio o caixote de lixo do governo, não se deita fora, sem justificações da maior consistência e credibilidade, um programa de políticas públicas que rende em média 650 milhões de euros por ano, sem contar com impostos associados. Para mais, tratando-se de um programa com assinaláveis margens de flexibilidade, que permitem ao governo direccionar o investimento para onde o quer e excluí-lo de onde o não queira.
Isto é, aliás, o mais estapafúrdio no recente pacote de medidas do governo: dá ideia de que o governo não conhece o programa ARI. Anuncia o fim dos vistos gold dentro de um conjunto de medidas para a habitação. Mas os vistos gold incidem também em áreas que nada têm a ver com habitação. E, no tocante a esta, já fora adoptada forte restrição há um ano e três meses. O que tem a ver com a crise na habitação o investimento em produção artística ou no património cultural nacional? E em investigação científica, o que tem a ver com habitação? E em fundos de capital de risco? Ou em criação de postos de trabalho? Dir-se-á que estes não são muitos. Sim, mas são muito relevantes para os que beneficiaram com eles; e, em qualquer caso, em nada beliscaram o sector da habitação.
O governo dispõe dos instrumentos para demonstrar que, na parte relevante (investimento imobiliário) e só nesta, os vistos gold são os responsáveis ou, ao menos, corresponsáveis pela crise na habitação. E tem de o fazer, sob pena de estar a enganar-nos. Se o demonstrar, ninguém no espaço público poderá contestar a validade de uma medida de exclusão integral dos vistos gold para investimentos com incidência no imobiliário e no mercado de arrendamento.
Mas o governo já o tinha feito parcialmente: em 2021, alterou a lei para excluir da elegibilidade para vistos gold o investimento em imóveis para habitação (incluindo por reabilitação urbana) nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto e em todo o litoral. Desde Janeiro de 2022, este investimento apenas serve para ARI nas regiões autónomas de Madeira e Açores e no interior (territórios de baixa densidade). O governo tem de nos dizer que esta exclusão parcial provocou travagem e descida nos preços da habitação nas regiões de Lisboa, Porto e litoral. Se foi assim, o governo encontrou a luz. Se não foi, o governo continua às escuras – e a conduzir-nos pelo caminho das trevas.
Há ainda outra pergunta: mesmo quando o investimento foi em habitação, o que tiveram os vistos gold a ver com a falta de investimento público no sector? O que proibiu o governo de investir na habitação nos últimos sete anos? Nada. Apenas a sua escolha.
A gestão daquele mecanismo de circunscrição geográfica de investimentos elegíveis para vistos gold pode, porém, dar boas ideias para o futuro. Os dados do SEF de 2021 e 2022 permitem concluir que, apesar de o investimento ARI em habitação ter sido concentrado no interior, Açores e Madeira, o investimento imobiliário não baixou, antes aumentou: subiu de 409 para 534 milhões de euros, subindo para o dobro na reabilitação urbana (de 85 para 171 milhões).
Não podemos estar certos de isto se dever inteiramente a desvio de investimento do litoral para o interior e ilhas, como era precisamente o propósito do governo ao mudar a lei. Não pode, em abstracto, excluir-se que parte se deva a investimento imobiliário em comércio e serviços, indústria ou turismo – e, por isso, ainda no litoral. Mas o governo pode, e deve, conhecer os números completos – e deve usar esse conhecimento em benefício e para informação do país.
O que é impossível compreender é que o governo extinga uma linha de políticas públicas ao fim de um ano de aplicação, quando está a atingir exactamente os fins pretendidos: canalizar em benefício do interior e das Regiões Autónomas investimento privado estrangeiro que lhes faz falta. Só pode ser por insensibilidade centralista e egoísmo. O governo, às vezes, é criticado por não mudar políticas que falham. É mais original ser criticado por mudar políticas que acertam.
3. PROGRAMA ARI POR OBJECTIVOS. O governo pode sempre fazer gestão do investimento ARI em função de objectivos de políticas públicas. Pode manter o benefício em favor do interior e das Regiões Autónomas definido a partir de 2022, prolongando-o no tempo para que amadureça e amplie os efeitos em favor destas regiões. Pode até acentuar o incentivo, excluindo da ARI todos os investimentos imobiliários fora daquelas regiões, mesmo os para comércio e serviços, indústria ou turismo. Sendo a reabilitação urbana ainda necessidade aguda das cidades e outras localidades por todo o país, pode abrir a elegibilidade desse investimento específico noutros territórios devidamente identificados. Considerando o seu alto valor imaterial, o governo pode baixar o montante exigido para a opção investigação científica e, sobretudo, procurar aumentar a sua atractividade, em conjunto com a produção artística e recuperação ou manutenção do património cultural nacional. E, olhando de novo ao investimento imobiliário, pode abrir um patamar inferior para ARI – por exemplo, de 400 ou 350 mil euros –, para investimento em imóveis para habitação, desde que colocado em programas de renda acessível apontados pelo governo. Se não resultasse o incentivo, nada se perderia. Se resultasse, obter-se-ia um aliado no combate à crise na habitação – o capitalismo e o mercado costumam ser lestos. Se eu fosse primeiro-ministro, era tudo isto que faria: gerir o programa pelo interesse público.
Decisivo é saber se Portugal quer, ou não quer, o investimento privado estrangeiro, individual, que vem por esta via. Ou saber se, em Portugal, apenas sabemos ou abrir tudo (como em 2012), ou fechar tudo (como agora), em lugar de fazer gestão criteriosa (como em 2021 e totalmente frustrada agora). Há pormenores muito reveladores. Por exemplo: a opção de realizar transferências de capital para produção artística ou o património cultural nacional existe desde 2012; não houve um só exemplo até 2020; a estreia aconteceu em 2021, com duas ARI neste tipo; em 2022, duplicou, passando a quatro ARI. O investimento associado foi de 450 e 950 mil euros, respectivamente, somando 1,4 milhões. Bem sei que não é muito dinheiro. Então para o governo, que é rico, não vale nada. Mas para quem beneficiou destes investimentos, que são donativos benévolos, é muito. Estamos a falar, nos termos da lei, destes beneficiários: “serviços da administração direta central e periférica, institutos públicos, entidades que integram o setor público empresarial, fundações públicas, fundações privadas com estatuto de utilidade pública, entidades intermunicipais, entidades que integram o setor empresarial local, entidades associativas municipais e associações públicas culturais, que prossigam atribuições na área da produção artística, recuperação ou manutenção do património cultural nacional”. Uma cambada de oportunistas deploráveis.
Se calhar, teria bastado mais algum deste investimento cultural para impedir que dois troços da muralha da fortaleza abaluartada de Valença, monumento nacional, candidata a Património Mundial, tivessem ruído com estrondo (e vergonha) neste Inverno. É chocante que a esta linha de investimento ARI, focada na arte e no património nacional, que despertou em 2021 e duplicou em 2022, o governo queira dar-lhe com a tranca em cima em 2023.
4. OS RISCOS. Por falar em cambada, é sabido que o retrato robot frequentemente propalado a respeito dos titulares de ARI é o de indesejáveis envolvidos em branqueamento de capitais e promotores da corrupção. Mas não é preciso ser um especialista em estatística para saber que, se esses casos existem (e ninguém pode excluir que possam existir), serão uma reduzida minoria das 11.921 ARI e 19.433 por reagrupamento familiar concedidas em dez anos. O afluxo de 12.000 delinquentes e seus familiares, num total de 31.000 bandidos, notar-se-ia muito... E não se notou nada, a não ser a animação da actividade económica nalgumas áreas.
Mas, reconhecendo a possibilidade de riscos de corrupção, movimento ilícito de capitais, evasão fiscal ou infiltração por criminalidade organizada, não é difícil aumentar as certificações de segurança e apertar as verificações de legalidade. Se, num canal de investimento estrangeiro todo ele observado, seguido, analisado e verificado, de A a Z, pelos serviços do Estado, como são os vistos gold, o governo não consegue assegurar a licitude dos movimentos de capitais e a idoneidade dos investidores, então devemos ficar muito inquietos quanto às transferências de capitais que acontecem todos os dias, de muitas outras maneiras, em oportunidades livres, não vigiadas em todos os aspectos. O problema não será de perigo, mas de incompetência.
5. A COMISSÃO EUROPEIA. O governo deve também esclarecer se, como consta, esta nova política é imposição da Comissão Europeia, em que termos e com que fundamentos. A questão não pode ficar na obscuridade. É sabido que, quanto a orientações da Comissão Europeia, é possível ter-se a posição contra ou a posição a favor. Em Portugal, o frequente é os decisores terem, perante Bruxelas, a posição de cócoras.
Lesa o Estado de Direito democrático ser escondido o quadro real da eliminação do nosso programa de Autorizações de Residência para Investimento. Por um lado, não poderemos escrutinar em Portugal o acerto e os motivos reais da decisão, nem o governo e os deputados que a tomem. Por outro, não poderemos escrutinar na União Europeia os que tenham expedido uma imposição, os seus termos e fundamentos e se estarão, ou não, a dar cobertura a outros interesses. Por exemplo, não poderemos verificar se haverá, ou não, outra “eurodeputada Kaili” e sua rede a apoiar o programa de vistos gold na Grécia, que está, agora, em expansão. A Comissão Europeia e o governo têm obrigações de ofício de transparência na sua condução, sob pena de agravarem a crescente falta de qualidade da democracia no continente europeu.
6. O ESTADO DE DIREITO. No programa eleitoral do PS, a única ideia que se encontra nesta matéria é o propósito de reforma do SEF, “simplificando e agilizando as tipologias e o processo de obtenção de vistos e autorizações de residência” (sic). Não é o que o governo agora propõe nesta área. Não merece estranheza: na decadência democrática em que caímos, é frequente que o que se faz não esteja no programa e o que está no programa não seja feito.
O governo tem a liberdade política de decidir como queira, incluindo recusar qualquer modulação e tomar a decisão de extinguir o programa ARI. Tem é de o fazer de modo decente, conforme ao Estado de Direito, não pondo de rastos o bom nome de Portugal.
Se fosse primeiro-ministro, faria assim: terminaria o programa de vistos gold a partir da data de entrada em vigor da nova lei, com ressalvas relativas a direitos constituídos e a expectativas legítimas. A primeira diria respeito às candidaturas já concluídas e apresentadas no SEF, que aguardam decisão e teriam de ser decididas normalmente, à luz da legislação que as motivou. A segunda referir-se-ia a salvaguardar os investimentos já definidos e concretizados, admitindo ainda a conclusão das candidaturas ARI, com prova da anterioridade do investimento e da transferência de capitais. No mais, todas as ARI atribuídas (quer as vigentes, quer as últimas a aprovar) completariam o ciclo de vida legal de cinco anos, incluindo as renovações a cada dois anos, em tudo se aplicando a lei que determinou a sua emissão. Para tornar inteiramente clara a lei vigente, retiraria do corpo da lei todas as normas referentes à ARI e deslocá-las-ia para um capítulo final de normas transitórias, como passaria a ser o seu estatuto. Os titulares de ARI guiar-se-iam pelo regime actual, mas só pelo período de cinco anos, como limite.
Isto é o normal num Estado de Direito, como terá sido adoptado na Irlanda. Tendo terminado o programa em Fevereiro, o governo irlandês segundo as notícias publicadas, “garantiu que os 1.500 pedidos de vistos gold já realizados vão continuar a ser considerados”.
O governo, porém, parece não saber o que fazer. Em 16 de Fevereiro, referiu que, aquando da renovação das ARI, os investidores (presume-se que em prédios destinados a habitação) só obteriam a renovação, se fizessem prova de que ou viviam aí, ou os tinham arrendado em certas condições. Isto poderia causar problemas jurídicos. Mas, após o Conselho de Ministros de 30 de Março, as ideias já são outras e ainda mais extravagantes. Além da supressão retroactiva das ARI a partir de 16 de Fevereiro, o governo anunciou a tramitação oficiosa das ARI como “autorização de residência para imigrantes empreendedores” do regime comum. Por outras palavras, derivou para o modo “gato por lebre”, ou seja, uma burla gigantesca, sem tirar nem pôr. A burla em si é de vão de escada, como é frequente na criminalidade do género. Aqui, só seria gigantesca pelas proporções que assumiria. Eu não iria por aí. Não gostaria de ver o primeiro-ministro do meu país visto internacionalmente como um burlão.
Imaginar que pode entregar-se uma autorização comum de residência a um investidor que se candidatou a exigente regime específico, para que mobilizou elevados capitais seus em resposta ao convite do Estado português, é ter perdido por completo a noção do Direito – ou nunca a ter aprendido. A tortuosa ideia só pode ter provindo de um conselheiro certificado em MBAe: mestrado em Burlas e Artes equiparadas.
Além de tudo o mais, cada candidato ARI tem de entregar ao Estado uma declaração ajuramentada em que jura cumprir os requisitos quantitativos e temporais para o investimento, incluindo os cinco anos mínimos. Esta declaração, como é bom de ver, é sinalagmática: implica, na sua recepção e aceitação, compromisso correspondente por parte do Estado português pelos mesmos cinco anos. Um espertalhão poderá dizer que, diversamente da declaração do investidor, não há nenhuma outra entregue e assinada por parte do Estado. Está enganado. Há. E está assinada pelo Presidente da República, pelo Presidente da Assembleia da República e pelo Primeiro-Ministro, nas leis relevantes. A última foi, há menos de um ano, em Agosto 2022, ainda com actualizações do regime ARI. Lá vemos as assinaturas: Marcelo Rebelo de Sousa, Augusto Santos Silva, António Luís Santos da Costa. É certo que nada juraram. Mas não estou a vê-los quebrar a palavra em letra de lei. É inverosímil vê-los enxovalhados por quebra dos compromissos com quem honrou as obrigações financeiras e legais perante o país e o Estado. O imaginoso conselheiro MBAe será certamente arredado e garantida a ordem do Direito.
Creio, em resumo, que o programa ARI ainda pode ser útil ao país, modulando-o para as linhas onde pode ser mais vantajoso e produzir os impactos mais positivos, nomeadamente de descentralização. Acredito que talvez pudesse também ser canalizado para apoiar políticas governamentais de habitação acessível. Sei que o governo pode, e deve, usar os instrumentos do Estado para assegurar a legalidade dos movimentos de capitais e a idoneidade dos investidores. Mas sei também que a decisão é da liberdade política do governo, podendo persistir no termo das ARI. Se assim for, deve esclarecer se o faz por determinação ou pressão da Comissão Europeia, quando, como e porquê. Temos o direito de saber. E tem de terminar o programa com respeito impecável pelas exigências do Estado de Direito.
José Ribeiro e Castro
Advogado e cidadão
OBSERVADOR, 10.Abril.2023
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