O meu discurso do 25 de Abril



Os Presidentes da Câmara Municipal e da Assembleia Municipal de Vale de Cambra, José Pinheiro e Miguel Paiva, desafiaram-me a ser o orador-convidado da habitual sessão solene do Município para comemoração do 25 de Abril, além das intervenções dos dois Presidentes e dos líderes das bancadas partidárias (CDS, PS e PSD) na Assembleia Municipal. Foi este o meu discurso.



1. 25 de Abril e 25 de Novembro. Este é o último 25 de Abril antes daquele em que comemorará os 50 anos. Lembro-me muito bem do 25 de Abril e de tudo o que se passou a seguir. Lembro-me como hoje. Tinha 20 anos. Foram tempos intensos e exigentes. E, ainda quando foram duros, difíceis, perigosos, lembro-os como as dores de parto da democracia. Ninguém ia para a política por interesse pessoal, para capturar uma benesse ou obter um lugarzinho. Nesses meses de política total, soprando pela sociedade em velocidade quantas vezes alucinante, ia-se para a política por algo maior do que cada um, para definir rumos muito para além dos nossos estreitos horizontes. Sou um privilegiado por ter vivido esses tempos.

O 25 de Abril é o 25 de Novembro, assim como o 25 de Novembro é o 25 de Abril: um não existiria sem o outro. O 25 de Abril não é só o golpe político-militar de 1974, que devemos ao Movimento das Forças Armadas. O 25 de Abril é o processo político complexo, de tensão revolucionária e acção democrática, que se desencadeou em 1974 e se concluiu um ano e meio depois. O 25 de Novembro de 1975 parou definitivamente a derrapagem revolucionária do PREC (processo revolucionário em curso) e do “Verão quente” e assegurou a afirmação, também definitivamente, das instituições democráticas. O 25 de Novembro permitiu que nós tenhamos o 25 de Abril para festejar. Impediu que o perdêssemos. Sem o 25 de Novembro, não haveria este 25 de Abril da Liberdade e da Democracia que celebramos. E não haveria 25 de Novembro, se não tivesse havido 25 de Abril e não houvesse que o proteger e reafirmar.

Em 25 Abril de 1977, meses depois de empossado como primeiro Presidente da República eleito no actual regime democrático, coube ao General António Ramalho Eanes presidir, na Assembleia da República, às primeiras cerimónias do 25 de Abril, no modelo que se repete até hoje. Era o quarto 25 de Abril. O primeiro fora a mudança de regime, pela acção do MFA. O segundo, as eleições constituintes em 1975, jornada democrática ímpar: só 8,3% dos eleitores se abstiveram. O terceiro 25 de Abril, o de 1976, foi o das primeiras eleições legislativas, para a Assembleia da República, conformes à nova Constituição, que entrou em vigor nesse mesmo dia.

Tudo visto e ponderado, considero Ramalho Eanes o melhor Presidente da República, por tudo o que fez antes de o ser, enquanto o foi e depois de o ser. Sabemos quão difícil é “ter sido”; mas Ramalho Eanes, ao longo das últimas décadas, tem consolidado a sua autoridade moral, a forte respeitabilidade do seu estatuto e a sabedoria da sua voz, sempre para benefício da seriedade e do bem público.

Fui ler o que disse Ramalho Eanes Presidente, nesse quarto 25 de Abril, o de 1977, em S. Bento, sobre aqueles acontecimentos. Disse isto: “Em Abril de 1974 as Forças Armadas saíram à rua em defesa dos ideais da liberdade e da democracia. Em Novembro de 1975, apoiadas pela Polícia de Segurança Pública e pela Guarda Nacional Republicana, de novo intervieram para assegurar que a liberdade reconquistada não seria traída.” Mais adiante: “As ameaças que o País enfrentou nos últimos anos não chegaram para impedir que o povo português definisse livremente o projecto político da nova sociedade. A disputa política quase levou à confrontação violenta entre as forças empenhadas na democracia pluralista e as forças interessadas em novas ditaduras.” E concluiu: “O 25 de Novembro permitiu que a Constituição da República viesse a definir os objectivos, as metas e os caminhos que hão de guiar o povo português e mobilizar o seu esforço na construção dum País mais rico e mais igual para legar às gerações que despontam nos horizontes da vida.”

É o enunciado fiel dos factos acontecidos e vividos. O General Ramalho Eanes é, ele próprio, um homem do 25 de Abril e do 25 de Novembro. Não são antítese, mas parte um do outro e, sobretudo, pilar fundador da democracia em que pudemos viver a partir de 1976. Agradeço todos os anos em que a vivemos, quer os melhores, quer os piores, porque temos guardado a liberdade de insistir ou corrigir, de prosseguir um rumo ou buscar outro, na base da vontade livre expressa pelos cidadãos e pelo povo.

Quando não se trata de factores exógenos, aquilo em que colectivamente vivemos mal é porque escolhemos mal. A democracia convida-nos a alimentar continuamente a capacidade crítica sobre a realidade para identificarmos o que está mal, conhecermos por que está mal, construirmos a resposta correctiva ou alternativa.

Olhando a estes quase 50 anos, preocupam-me algumas áreas de primeiro relevo, onde estamos muito mal (nalgumas, a piorar ano após ano) e que podem pôr-nos em risco como país e como democracia. Destaco estes cinco problemas: Forças Armadas, Justiça, centralização, crescimento económico, estado da democracia.



2. Valor essencial das Forças Armadas. É deprimente o estado a que vários governos e Parlamento têm feito decair as Forças Armadas. É um processo contínuo desde os anos ’80. As Forças Armadas têm sido fortemente reduzidas em pessoal e em material, abandonou-se o modelo do serviço militar obrigatório em favor de um modelo profissionalizado, a capacidade operacional surge frequentemente fragilizada e o reequipamento tem sido escasso e insuficiente nos três ramos. Somos por vezes confrontados com episódios deprimentes, que só não são mais fustigados, porque os militares, forçados a agir acima das capacidades dos meios, não devem ser cobertos por uma vergonha que pertence principalmente aos dirigentes políticos.

Na Defesa Nacional, o sistema de forças está abaixo das necessidades de segurança do território continental e insular (terrestre, marítimo e aéreo), seja para as missões correntes nacionais, seja nas responsabilidades internacionais no quadro NATO, sendo evidente que as Forças Armadas estão a agir, desde há demasiados anos, em regime de sobre-esforço. Não cumprimos, anos a fio, as obrigações orçamentais no quadro NATO e estamos muito desguarnecidos de meios navais e aéreos modernos, ajustados às características e à extensão do nosso território, a que importa juntar as impostas pela segurança da zona económica exclusiva de Portugal e pelas aspirações relativas ao alargamento da plataforma continental.

Esta é uma crucial questão estratégica para o futuro. A guerra desencadeada pela Rússia contra a Ucrânia chamou a atenção para fragilidades de vários países europeus. É o nosso caso. Os riscos de segurança agravados em que o continente europeu está, hoje, imerso dizem-nos que o tempo da procrastinação acabou. Não podemos continuar a perder tempo na resposta às carências das Forças Armadas. Para sermos seguros, temos de ser mais fortes e robustos.

Os militares, a que devemos o 25 de Abril e o 25 de Novembro, não mereciam de todo que, no regime democrático a que nos abriram as portas, sucessivos governos e o Parlamento lhes quebrassem reconhecimento público e capacidades operacionais, ao ponto de comprometer a própria missão. O poder político tem de mostrar que entende que as Forças Armadas não existem como decoração do Estado, para paradas e embelezamento protocolar. Existem porque precisamos delas, apetrechadas e aptas a assegurar efectivamente a defesa e segurança de Portugal. Os militares, apesar do quadro crítico em que o poder político os mergulhou, continuam a merecer elogios generalizados nas missões internacionais de manutenção de paz a que têm sido chamados. Fazem jus a que as altas aptidões técnicas e de valentia de que dão mostras sejam servidas por organização, sistema de forças e equipamento próprios de Forças Armadas modernas, nacionais e à altura dos riscos e perigos que se mostram no horizonte.

É urgente identificar todas as carências e mobilizar efectivamente os recursos necessários. É imperioso fazê-lo. A defesa nacional é uma das mais importantes funções do Estado.



3. Justiça para julgar, não para empatar. O caso José Sócrates. Passando à Justiça, o balanço não é melhor. Tem atravessado as últimas décadas com mais frequente cotação negativa do que cotação positiva. O que mais se censura é a sua lentidão, a quebra constante do segredo de justiça, o tamanho gigantesco de alguns processos, a forma como ricos e poderosos escapam à justiça. O primeiro problema está ligado com os dois últimos, pois a lentidão da justiça está associada às toneladas de páginas de muitos processos e afunda-os no fosso da prescrição. E o segundo também pode estar ligado ao último problema: as constantes violações do segredo de justiça – incluindo, a escandalosa publicação de escutas – cria repetidamente a ideia de os casos serem maiores do que, depois, surge na acusação (quando se chega lá…) e, enfim, na sentença final. As violações do segredo de justiça são obviamente consentidas e esse vício desacredita a Justiça e enfraquece-a, transformando-a num circo e prejudicando a percepção pública do processo e do seu curso.

Agora, surgem notícias que causam profunda inquietação. Notícias de que o antigo primeiro-ministro José Sócrates não chegará a julgamento, prevendo-se já que os crimes de falsificação, cujas acusações se mantêm, prescreverão no entretanto, a começar em 2024. Há que dizê-lo com clareza: não pode ser. Se José Sócrates não vier a ser julgado pelos crimes de que foi acusado, não será apenas sinal de a justiça estar a apodrecer, mas de que a justiça está podre.

Não está em causa a presunção de inocência, frequentemente mal alegada. Todo o arguido e mesmo o acusado beneficia dessa garantia. Por isso mesmo é que o julgamento é também um direito de arguidos e acusados, que devem poder provar, em julgamento, que são inocentes ou, ao menos, que não há prova da sua culpa. O julgamento é o lugar onde tudo se pesa e decide, em nome do povo, pois é em nome deste que os tribunais julgam. Onde os processos se perdem nas vielas e não chegam ao palco final, é o regime onde não há justiça e reina o arbítrio, o abuso e a impunidade. Se isso viesse a acontecer, seria vergonhoso para o país, vexatório para o Estado de direito democrático, terrível para a sociedade portuguesa. Lembra o título da comédia de Spielberg. “Um dia a casa vem abaixo”. A seguir, seria pior. As sociedades não aguentam um sistema de justiça infiltrado pela manipulação, pela influência, pela corrupção e capturado pela incapacidade de decidir em tempo útil ou mesmo pela falta de vontade de decidir.

Por isso me escandaliza que, quando o juiz Ivo Rosa aplicou a José Sócrates um desconto de 31 para seis crimes ou quando agora se anuncia estarem a chegar os horizontes da prescrição destes seis, não haja um sobressalto nas mais altas instâncias e nos magistrados mais responsáveis, com gestos e palavras, assegurando que, em Portugal, há justiça e a justiça é feita. Precisamos de que o Presidente da República, o primeiro-ministro e a ministra da Justiça, a Procuradora-Geral da República, os magistrados judiciais em geral (é o seu ofício fica posto em causa), actuem, falem e garantam que não somos uma república das bananas do Coronel Tapioca. Não podem ser indiferentes. Nomeadamente, o Presidente da República tem de garantir “o regular funcionamento das instituições democráticas”. Será muito mau se chegarmos ao dia do título do filme de Spielberg. E não será comédia.



4. O paradoxo da “descentralização” que só centraliza. Outra área em que temos vindo a decair é na centralização do País. Há cerca de um ano, a ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa, teve um deslize: afirmou fazer parte de um “dos Governos mais centralistas” que o “país já teve” e que esse centralismo se acentuou “inevitavelmente” com a pandemia. Raramente terá acertado tanto.

É infelizmente verdade. Não se aplica apenas a este governo, mas a outros também. A trajectória da política territorial do país – se é que existe – é globalmente desastrosa desde os anos ’80: não só destruiu a malha territorial da administração, como contribuiu activamente para a desertificação crescente e a criação de um clima de abandono em extensas áreas do continente. Não criou as regiões administrativas – o que, com tanto desconcerto, nem estará mal – e desmantelou os distritos, que era a plataforma que permitia proximidade entre as populações e o Estado-administração. É escandaloso, aliás, como o fez, em rodadas sucessivas, década após década, frontalmente contra o que está escrito na Constituição: “Enquanto as regiões administrativas não estiverem concretamente instituídas, subsistirá a divisão distrital”.

Esta norma do artigo 291.º constitui obviamente uma garantia fundamental dos territórios e das populações que aí vivem e trabalham. É como ter escrito assim: não nos tirem o que temos, antes de nos darem o que nos prometem.

É uma garantia que foi escrita para isso: não pode destruir-se o que existe, enquanto não estiver criado o que fará as suas vezes. Não se cumpriu, violou-se e não passou nada. Somos um país onde é possível violar-se garantias fundamentais, sem que nada aconteça.

Detesto teorias da conspiração, mas o que se passou com os distritos e a regionalização sugere haver uma conspiração surda e transversal de manipulação obscura, operando propositadamente a centralização do país sob a capa da regionalização. Parece impossível, até contraditório. Mas é assim que aconteceu e o véu vai caindo com o tempo. O plano parece ter sido este: demolir os distritos e entregar o senhorio do território às CCDR ou equivalentes.

Basta atentar nisto: os distritos são 18, as CCDR são cinco. Ora, quem de dezoito faz cinco não descentraliza coisa nenhuma. Quando se passa de 18 para cinco, concentra-se, centraliza-se – e não é pouco. Nem é preciso ser grande especialista em matemática ou geometria para perceber que é assim. Basta olhar para o espaço continental português, para perceber o que nos tem sido feito nas últimas décadas – e como se quer calcificar esse desvio e esse erro. As terras e as populações de Viana do Castelo, de Braga, de Aveiro, de Viseu, de Leiria, de Setúbal, perdem alguma coisa nesta deriva. E perdem imenso as de Vila Real, de Bragança, da Guarda, de Castelo Branco, de Beja, votadas ao vazio e ao esquecimento. Só não o entende quem não conhece bem Portugal e não sabe o que ele é. Esse país onde, no Continente, só contam Lisboa, Porto, Coimbra, Évora e Faro, é um país disforme, um país que é o contrário do que a melodia da descentralização procura iludir.

Esse país centralizado não nos convém: é um país mais desigual, mais atrasado, menos dinâmico. É imperioso rectificar a rota, aproximar o Estado das populações e vice-versa, estimular a procura do interior. Para isso, importa regressar aos distritos – a casa da partida – e recomeçar outra vez. É urgente pôr termo ao fracasso territorial.



5. “Crescimento” para o fundo da tabela. Há outro fracasso estratégico em que nos vamos afundando cada vez mais. Nós não estamos condenados a sermos os últimos da União Europeia. Mas é isso que temos feito. E estamos na rota de voltar ao fundo da tabela.

O nosso crescimento económico é medíocre, insuficiente. Empurra-nos continuamente para baixo, degrau a degrau até ao fundo. Em 2001, na União Europeia, éramos o 15.º em 15. Em 2007, quando se concluiu o grande alargamento, éramos o 17.º em 27. Em 2020, já estávamos na 20.ª posição em 27. Em 2022, tendo-nos passado a Hungria, éramos o 21.º em 27. No próximo ano, 2024, está previsto sermos ultrapassados também pela Roménia, que, desde 2007 (quando entrou na EU) até 2017, era o 26.º (o penúltimo). A Roménia começou a subir em 2018. Seis anos depois, vai ultrapassar-nos.

Isto não é uma corrida de ciclismo, são lições de economia comparada. Sermos sempre o lanterna vermelha é a rotina do nosso atraso. Em matéria de fundos comunitários, 150 mil milhões de euros depois (foi isso que já nos deram), continuamos longe da média europeia. Já estivemos nos 80% da média, mas caímos para cerca dos 75% e aí vamos patinando. É um enorme fracasso da coesão: gastamos os fundos comunitários e as contrapartidas nacionais, mas não galgamos para os lugares da frente. Não atingimos aquele patamar de segurança em que já não precisaríamos desses fundos. E, em vez de progredirmos no ranking, vamos sendo ultrapassados, um por um, pelos nossos parceiros mais recentes.

A questão do crescimento económico é vital para o futuro de Portugal. Não conseguiremos as nossas aspirações, se não tivermos crescimento económico anual que nos faça avançar no conjunto da Europa: hoje, 21.º; amanhã, 20º; depois de amanhã, 19.º; a seguir, 18.º; depois, 17.º; depois ainda, 16.º; e, assim sucessivamente, até entrarmos solidamente nos dez primeiros e, a seguir, nos cinco primeiros.

O que temos de querer é atingir, finalmente, em 2036, a média europeia e passarmos para a parte de cima. Não é pedir muito aos que nos governam que o atinjam, 50 anos após a adesão à, então, CEE. Não estamos proibidos de o conseguir. Outros o fizeram antes de nós. O que devemos é proibir-nos de falhar, que é o que mais temos feito nesta frente: falhar, falhar, falhar.

Desde o princípio do século, predominam taxas de crescimento do nosso produto de cerca de 1%, às vezes abaixo (zero vírgula qualquer coisa), outras vezes acima (sem chegar a 2%). Costumo chamar a este crescimento anémico o voo da perdiz: andamos no chão ou esvoaçando baixinho, paralelo ao chão. Está na hora de comer a perdiz e voar mais alto.

O que é um crescimento económico que nos faça crescer no conjunto da Europa? É um crescimento em que os nossos líderes se comprometam a, todos os anos, cumprirmos uma chave tripla: crescer acima da média europeia, crescer acima dos dois à nossa frente e crescer acima dos dois atrás de nós. No debate anual na Assembleia da República, devemos quantificar essas metas (perante os concretos indicadores europeus de cada ano), como o guia referencial das políticas necessárias para as atingir. Crescer mais que a média europeia puxa-nos para diante, rumo à convergência efectiva – a meta nacional para 2036. Crescer mais que os dois Estados-membros à nossa frente, far-nos-á subir no ranking. E mais que os dois atrás de nós, impedirá voltarmos a ser ultrapassados por qualquer um – pelo menos, até estarmos nos cinco primeiros.

Não temos de ter medo desta ambição; temos é de ter medo do alçapão. Temos de ter medo da perdição contínua em que andamos. Não podemos dar folga aos líderes, porque a falta de ambição, o medo em se comprometerem, a falta de ousadia, revertem em nosso prejuízo. Os salários mais altos que queremos, as pensões seguras, uma ferrovia à altura das necessidades do país, Forças Armadas apetrechadas para nos defender, a rede de serviços de saúde a responder bem, a criação de emprego bem remunerado que não empurre os nossos filhos para fora, tudo isso e tanto mais depende dessa necessidade, imperativo prioritário: crescimento económico, contínuo e acentuado. Está na hora de não pouparmos exigência aos nossos líderes.



6. Evolução oligárquica. Enfim, uma última nota sobre o estado da democracia, que não está bem há alguns anos. Curiosamente, hoje mesmo sai, na imprensa, uma sondagem que indica que 43% dos portugueses consideram que a democracia piorou nos últimos 10 anos, contra 33% que acham estar melhor.

É matéria sobre que tenho intervindo nos últimos anos, expondo uma proposta de reforma do sistema eleitoral, aberta pela Constituição em 1997, dentro do projecto que trabalhei na SEDES e na APDQ: um projecto que serve a todos os partidos, serve sobretudo a cidadania e o povo eleitor, restitui e fortalece qualidade à democracia. É chocante e interpela-nos a todos que, feita a revisão constitucional de 1997, tudo continue igual 25 anos depois, a marcar-passo, a marcar-passo, a marcar-passo. Não dá para entender como houve maioria de 2/3 para rever a Constituição e não há maioria para rever a lei eleitoral na linha da Constituição.

Quando eu era criança, havia um jogo infantil – mais jogado por raparigas ou grupos mistos – que era conhecido como o “roda, roda, aos cinco cantinhos, pum!” Não tinha muita graça – era uma espécie de lengalenga em movimento –, mas, no recreio, às vezes gastava-se nisto todo o intervalo das aulas. O Parlamento tem evoluído para aí. Tem mais cantinhos do que os cinco: hoje, são oito e, por isso, “roda, roda, aos oito cantinhos, pum!”

As pessoas vêm-se desgostando deste funcionamento fechado, distante e exclusivo dos deputados. As pessoas gostam da Assembleia da República – os seus programas de relacionamento com a sociedade são muito requisitados e queridos. Mas as pessoas vão-se afastando, com queixas da maneira de agir dos partidos, da pouca intervenção na escolha dos eleitos, da falta de escrutínio, da política-espectáculo. Os cidadãos têm a sensação de que não tocam na bola – e têm razão nessa sensação. Os eleitores vão votando com os pés: afastam-se das urnas, não vão votar, abstêm-se cada vez mais. Em 1997, quando a Constituição abriu a possibilidade de reforma eleitoral, a abstenção já era alta: 33,7%. Agora, está muito pior: nos 48,5% e, em 2019, chegou a ultrapassar, pela primeira vez, os 50% - chegou a 51,5%.

O desinteresse e o afastamento do eleitorado tem a ver com o processo de metamorfose oligárquica por que o Parlamento tem passado. Já não temos só um sistema de listas fechadas, mas um sistema fechado: um sistema de partidos fechados que fazem, entre si, um jogo fechado, reduzindo o povo a público, em vez de sujeito, reservando-lhe o papel de claque. Os próprios deputados, se lhes pedirmos que respondam com sinceridade, dirão que não são representantes do povo, mas representantes dos seus partidos – às vezes, um ou outro desliza-se com esta tese. É “roda, roda, aos oito cantinhos, pum!” São frequentes as matérias em que o Parlamento decide sem, anteriormente, ter havido debate e deliberação democrática propriamente dita. Na voragem das más rotinas estabelecidas, os programas eleitorais são tendencialmente ignorados: faz-se o que lá não está, não se faz o que lá está.

Na verdade, porque é que um eleitor vai votar? – é o que muitos perguntam. Aquelas más rotinas só seriam quebradas, restabelecendo-se a pureza do mandato democrático e o escrutínio efectivo, se a reforma eleitoral fosse feita. Mas, por isso mesmo, não é feita: os costumes oligárquicos que se instalaram não querem perder o seu poder e devolvê-lo aos cidadãos. O roda-roda continua.

Por estes meses, atingiu-se um extremo que nunca esperei que acontecesse: a Assembleia da República iniciou, com o concurso inesperado de todos os partidos parlamentares, um processo de revisão constitucional ordinária para o qual os deputados não têm a menor legitimidade. Estão a meter a foice em seara alheia, sem terem pedido autorização e mandato ao dono da seara – o povo eleitor.

A Assembleia da República tem legitimidade formal para, desde 2009, poder fazer nova revisão constitucional ordinária. Sem dúvida. Mas precisamente nunca a fez, nem quis fazer. Nenhum partido a propôs, nem a sujeitou a debate eleitoral. Ninguém o disse em 2009, em 2011, em 2015, em 2019 – e nada aconteceu, em modo consequente. Ninguém o disse de novo em 2022 e, por isso, todos pensámos que, como anteriormente, não haveria revisão constitucional ordinária. Não foi pedido mandato, não foi dado mandato. Não é matéria de somenos.

O que se está a passar é fruto da cultura oligárquica imperante no Palácio de S. Bento. Não é verdade pensar-se que a democracia são os 230 deputados, que podem fazer tudo sem mandato e sem escrutínio. A democracia são os 10.820.337 cidadãos eleitores, onde tudo começa e de onde tudo dimana. Ignorar, desprezar a fonte de legitimidade é secar a democracia e enfraquecê-la, destruí-la.



7. Olhar a 2024. Gostaria que 2024, o ano dos 50 anos do 25 de Abril, fosse marcado por grandes progressos colectivos na qualidade da política, no desempenho da economia, na solidariedade e coesão da sociedade, nas metas e na confiança no desenvolvimento e não por acontecimentos funestos que gerem descrença, tristeza e desmoralização. Por isso, na linha do que disse faço votos por que:

· Seja abandonada a intenção de, pela primeira vez, rever a Constituição sem legitimidade democrática e, assim, seja respeitado o primado da democracia.

· Seja posta em marcha a estratégia de crescimento económico que nos coloque na trajectória de convergência total com a União Europeia em 2036 e assegure avanço no ranking europeu, evitando o mau sinal da ultrapassagem pela Roménia já em 2024.

· Se retome a malha territorial dos distritos, como determinado pela Constituição, primeira etapa para rever as linhas de desconcentração e descentralização, assegurando a proximidade da Administração aos cidadãos e combatendo a desertificação e o abandono de extensas áreas do país.

· Se impeça que processos em que são acusados poderosos sejam conduzidos por forma a, conscientemente, os subtrair de julgamento, garantindo o direito fundamental dos arguidos e da sociedade a julgamento justo e aberto sobre todos os crimes acusados. E se impeça que, pela abdicação da justiça e pela impunidade, a sociedade portuguesa sofra, em 2024 e depois, choques difíceis de imaginar.

· Se proteja e reforce a capacidade das Forças Armadas para o desempenho das suas missões e, se ponha termo de vez, na condução política do país, ao desinteresse, ao baixo respeito e à irresponsabilidade nacional com que os militares e as Forças Armadas objectivamente têm sido tratados pela política nacional.

Não podemos continuar a adiar. São linhas como estas que nos pedem os três 25 de Abril e o 25 de Novembro: o 25 de Abril do golpe de Estado e da revolução (1974); o 25 de Abril do mandato constituinte (eleições de 1975); e o 25 de Abril da democracia parlamentar (eleições legislativas de 1976). Importa estar à altura das suas promessas.

Viva a democracia! Viva Portugal!



Paços do Concelho, Vale de Cambra, 25 de Abril de 2023

José Ribeiro e Castro
Advogado e cidadão

OBSERVADOR, 27.Abril.2023

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