Requiem pelo artigo 24.º
1. Há
não muitos dias, um amigo recomendou-me uma composição coral recente: “Requiem
pelos Vivos”. Vi, depois, que já tem sido interpretada em Portugal. Desconhecia-a.
Ganhei em conhecê-la. Obra de um compositor jovem, nascido em 1978, o
norte-americano Dan Forrest, Requiem
For The Living, estreada em 2013, é uma peça poderosa, de grande
beleza.
Foi o que me
veio à memória em 12 de Maio, quando a Assembleia da República confirmou o
diploma da eutanásia vetado pelo Presidente da República. Não pela beleza, que
não tem. Mas por essa votação parlamentar, poderosa, me soar a um requiem
pelos vivos, isto é, por nós.
Foi
seguramente o requiem pela talvez mais bela das normas da nossa
Constituição: “A vida humana é inviolável” (artigo 24.º, n.º 1). Foi
atropelada e rasgada, jaz morta. Acabou-se. Foi reduzida a papel de cenário.
2. Este
é um dos grandes vazios deste processo legislativo de cinco anos e três
legislaturas. Como foi possível avançar para uma lei da morte a pedido,
organizando uma máquina do Estado para a administrar, sem enfrentar e vencer o
obstáculo constitucional? A vida humana é inviolável.
Nem a
Assembleia, nem o Presidente, nem o Tribunal nos explicaram como. Seria difícil,
mas por isso mesmo deveria ser esclarecida a quadratura do círculo. Em
seriedade, seria impossível.
É sabido que
a interpretação das leis pode ter grande amplitude, “não deve[ndo] cingir-se
à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo,
tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em
que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”
– a regra estabelecida no art.º 9.º, n.º 1 do Código Civil.
Mas esta
amplitude não é ilimitada, logo dizendo o mesmo artigo 9.º que:
·
“não pode (...) ser considerado pelo
intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de
correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (n.º 2); e
·
“o intérprete presumirá que o legislador
consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em
termos adequados” (n.º 3).
O vazio em
que ficámos é este: como pode concluir-se que, onde o legislador constituinte
escreveu “a vida humana é inviolável”, queria realmente dizer “a vida humana é
violável, desde que …”? Como pôde agir-se como se o legislador constituinte não
tivesse consagrado as soluções mais acertadas? Ou não tivesse sabido exprimir o
seu pensamento em termos adequados?
Como pôde a
lei avançar como se fosse superior à Constituição? Perante a dificuldade,
haveria que enfrentá-la e superá-la de modo racional, aceitável, inteligível.
Não podia ignorar-se, como se não estivesse lá. E, se se revelasse como
insuperável (como creio que é), haveria que rever a Constituição. Nada demais. Se
muito quisessem, teriam de o fazer. Não podia fazer-se de conta e seguir.
Vistas bem as
coisas, não é só requiem pelo artigo 24.º, mas requiem pela
Constituição, que, logo numa das suas normas mais emblemáticas, viu a sua
presença desfeita e o valor reduzido a quase nada. Se, por exemplo, em constitucionalês, “inviolável”
é igual a “violável desde que”, então também podemos entender que, onde a
Constituição escreve “a validade das leis e dos demais actos do Estado, das
regiões autónomas, do poder local e de quaisquer outras entidades públicas
depende da sua conformidade com a Constituição” (artigo 3.º, n.º 3),
realmente quis escrever e diz que a validade de todos esses actos “não
depende da sua conformidade com a Constituição, desde que…”. E assim
sucessivamente, com tudo a poder significar o seu contrário, até todos
constatarmos que transformámos o Direito numa selva, reino da arbitrariedade.
Essa é a
segurança da lei escrita: vale pelo que tem escrito e, também por isso, pode
ser igual para todos. Podemos interpretá-la com as ferramentas da boa
hermenêutica jurídica, mas não podemos fantasiar. Não podemos torcer a lei,
pondo-a a “dizer” o contrário do que tem escrito. Se é isto que queremos, temos
de revê-la primeiro. No Estado de direito, não há volta a dar.
Em Portugal,
os problemas frequentemente postos por uma Constituição muito ideológica
facilitaram o desenvolvimento de uma escola de interpretação evolutiva, tida
por indispensável a adequar a leitura da Constituição a necessidades políticas imediatas.
Este caminho, que sempre existe para ir adaptando a interpretação da
Constituição à mudança dos tempos, comporta perigos de relaxamento quanto à
exigência de clareza normativa. Mas, dito isto, a interpretação evolutiva tem
também os seus limites. Não pode, nomeadamente, sustentar um pensamento que “não
tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal” – não pode
apoiar o contrário do que está escrito, como acontece neste caso da eutanásia.
3. Já
o disse noutras ocasiões: a lei da eutanásia e do suicídio assistido não é uma
lei democrática. É uma lei não-democrática, que foi sempre furtada ao devido pronunciamento
democrático. Tratando-se de uma lei que rompe com a estável e longa tradição
legal do país, que confronta o quadro das concepções prevalecentes a nível
mundial (independentemente de convicções religiosas e orientações políticas), que
abala valores éticos cruciais, que questiona a Constituição e que contende com
a sensibilidade profunda das pessoas, não deveria ter sido assim.
Apesar de ser
tema em debate político ao longo de cinco anos e de três legislaturas, foi
afastado da democracia. O maior partido parlamentar, o PS, que conduziu o
processo sob impulso constante da deputada Isabel Moreira, agiu sempre para que
o povo não se pronunciasse. Sempre que surgiram propostas de referendo, o PS
destacou-se na linha da frente, a opor-se. E, sempre que houve eleições, o PS
escondeu a matéria dos seus programas e propostas eleitorais. Porquê? Porque
queria obter maioria absoluta e receava que a questão prejudicasse essa
ambição. Numa palavra: batota.
Esta lei é um
produto oligárquico – porventura um dos mais sensíveis sinais (não o único) de
mudança de regime. Por um lado, a lei foi aprovada, mas o povo realmente não
teve voto na matéria. Por outro lado, a forma como o óbice do artigo 24.º da Constituição
foi arrumado evidencia a amplitude maior da convergência em oligarquia.
Nas duas
vezes em que o Presidente da República suscitou a pronúncia do Tribunal
Constitucional, nunca colocou a questão do artigo 24.º, n.º 1. Mas, na primeira
vez, no Acórdão de 2021, o Tribunal Constitucional ocupou-se longamente do tema,
nos pontos 23 a 33 da fundamentação. São 20 páginas de densa e cuidada
ponderação jurídica, cuja conclusão não acompanho – creio, aliás, que não foi elevada
ao limite da decisão, uma vez que o Acórdão não passaria por aí. A saída abstracta
para o problema foi encontrada numa das variantes da ideia “direito a viver não
é dever de viver a todo o custo” e no apoio em diversa jurisprudência internacional
– de outros países e do Tribunal Europeu. É sobretudo aqui que me afasto, uma
vez que, se a nossa lei constitucional é tão original e singularmente própria
na formulação escolhida (a vida humana é inviolável), então as jurisprudências
baseadas nas formulações legais comuns do direito à vida não podem servir-nos
de paradigma. Diferentes quadros normativos fundamentais, diferentes
jurisprudências. Não se pode concluir o mesmo quando a norma é acentuadamente
diferente.
Por seu
turno, em nenhum momento a Assembleia da República se ocupou do problema – que
me desse conta, não nos deixou o seu pensamento sobre como legislar em modo
conforme à Constituição. Basicamente, a maioria parlamentar (que fez a lei)
agiu como se o artigo 24.º não estivesse lá. E, agora, quando aprovou a versão
final, nem sequer pode obter quanto a esta questão algum apoio na
jurisprudência constante do Acórdão de 2021. É que a última versão da lei da
eutanásia e do suicídio assistido já pouco ou nada tem a ver com a lei que o
Tribunal apreciou em 2021. Nomeadamente, as 20 páginas que o Tribunal dedicou
ao artigo 24.º da Constituição estão constantemente atravessadas por actos de
“antecipação da morte”, para que se descortinara uma saída, mas a Assembleia da
República, entretanto, abandonou por inteiro a ideia de “antecipação da morte”,
descartando, assim, a jurisprudência do Tribunal Constitucional e deixando
aquele problema outra vez sem porta de saída.
4. O
artigo 24.º, que tem por epígrafe “Direito à vida”, é mais do que apenas um
direito. Sendo um direito fundamental e tratando do mais fundamental dos bens
jurídicos – a própria vida –, é sobretudo uma garantia, o que se acentua ainda
mais pelo modo como está formulado em Portugal: “A vida humana é inviolável.”
O facto de
ser garantia significa que nada se pode fazer contra ela, a vida humana: não é
apenas nada poder fazer-se contra ele, direito; é nada poder fazer-se contra
ela, a vida. Por isso, o Estado, não podendo fazer nada contra a vida, não pode
organizar a morte, nem consentir a organização social da morte. A lei da
eutanásia e do suicídio assistido rebenta com a garantia constitucional.
Entrando-se
num quadro normativo em que as garantias fundamentais foram demolidas, o futuro
guarda apenas a certeza de que será sempre pior, sob o império da maioria na
ocasião. A rampa deslizante já começou a agir ao longo do processo legislativo:
como aludi há pouco, a lei que será publicada nada tem sequer a ver com a
“antecipação da morte” de 2019/20 para que o Tribunal, em 2021, ainda lobrigava
uma possível saída para o problema do artigo 24.º E, noutras áreas, também
ampliou a incidência da lei.
A seguir, será
como se quiser. É o que mostra a experiência dos países do Benelux e do Canadá,
como os casos mais evidentes. É provável que a passagem prévia obrigatória pelo
suicídio assistido acabe por cair. Os menores, incluindo crianças, virão a ser
elegíveis. Surgirão novas causas de justificação, avançando passo a passo. As
doenças mentais e as demências entrarão na lista. O debate abarcará causas
sociais no domínio da pobreza ou, ao menos, da pobreza extrema. Poderá abrir-se
o debate sobre a pílula dos 70 anos, porta mágica para o abismo final.
Haverá, na
população, muita gente a pensar que serão só casos extremamente graves,
terminais, muito dolorosos e sem esperança. Os que fizeram a lei sabem que não
é assim. Esse já não é sequer o ponto de partida da lei. E a prática se
encarregará do resto. Os mais idosos, doentes crónicos severos ou portadores de
deficiência, os mais pobres, serão o campo de incidência principal. A pressão
social irá crescer. Há violência familiar e violência nas instituições – esta
legislação não irá diminuí-la. É possível que alguns sintam medo. A peste
grisalha sentirá o olhar que aponta. O egoísmo social sentir-se-á mais à
vontade.
Esta lei rompe
paradigmas e despedaça um quadro de valores estabelecidos. Em rigor, é uma
revolução moral. Uma vez operada a quebra da garantia fundamental – a vida
humana é inviolável –, opera-se o relaxe moral e ninguém pode antecipar até
onde. A lei não devia ter sido discutida e votada assim.
5. Como
diriam os maoistas, a Constituição “é um tigre de papel”. A maioria oligárquica
passou pelo artigo 24.º como se este não existisse. Depois do aborto e da
eutanásia, o n.º 1 já nada quer dizer. Perdeu todo e qualquer valor de
garantia: “A vida humana é inviolável.”
Só o n.º 2 –
“Em caso algum haverá pena de morte” – ainda sobra para os criminosos. Os
inocentes é que perderam a protecção constitucional.
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