A deputada Ana Paula Bernardo e a reforma do sistema eleitoral
Não conheço a deputada Ana Paula Bernardo do Partido Socialista. Não tenho informações, nem opiniões a seu respeito. Soube que é deputada e conheço-a por ter sido designada relatora da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) à Tutela Política da Gestão da TAP. E, no final, pelo relatório preliminar que apresentou. Creio ser assim na generalidade dos portugueses.
A CPI teve grande controvérsia, em vários dias. O relatório preliminar também. Não exactamente pelas mesmas razões. Perguntarão: mas o que tem isto a ver com a reforma do sistema eleitoral ou, dizendo melhor, a sua não-reforma? Vou explicar.
O Partido Socialista, em 1995, era um partido democrático. Só avançava para uma revisão constitucional, se, nas eleições anteriores, tivesse anunciado aos cidadãos que pretendia fazê-la, enunciando o essencial do que pretendia.
Assim, no Programa Eleitoral para as eleições legislativas de 1995, o PS, no capítulo “Uma Democracia com Mais Qualidade”, prometeu que “uma das tarefas fundamentais da NOVA MAIORIA será a de criar condições para que os cidadãos se reconciliem com o sistema político.” Como medida principal, adiantou “que o sistema eleitoral para a Assembleia da República deverá evoluir para um modelo que, mantendo a matriz essencial de natureza proporcional, permita uma ligação mais estreita dos eleitos perante os eleitores e respectiva responsabilização, através da criação de circunscrições uninominais de candidatura.” No capítulo “Medidas de revisão constitucional e de reforma do sistema político e da maneira de fazer política em Portugal”, comprometeu-se: “Revisão do sistema eleitoral para a Assembleia da República, de modo a aproximar os eleitos e os eleitores, a personalizar o mandato e a reforçar a responsabilidade do eleito, através da criação de círculos uninominais de candidatura, no contexto de círculos plurinominais de apuramento global de votos, isto é, preservando o sistema proporcional.”
Foi assim que, desde a revisão de 1997, o artigo 149.º da Constituição passou a permitir que se defina “a existência de círculos plurinominais e uninominais, bem como a respetiva natureza e complementaridade, por forma a assegurar o sistema de representação proporcional”. É o sistema misto de compensação, de representação proporcional personalizada, em que trabalho desde há anos, na SEDES e na APDQ, justamente para uma Democracia de Qualidade.
Não foi culpa do PS este propósito não se ter concretizado na lei eleitoral, logo em 1998. E a pendência só persiste, porque os outros partidos não têm posto a sua vontade ao serviço dessas ideias, que são do interesse geral da cidadania. Mas o PS tem mantido essa linha.
No Programa eleitoral de 2002, os socialistas, no capítulo “Reformar o Sistema Político”, convocavam “o prestígio das instituições democráticas, a dignificação da actividade política e o aprofundamento das relações de confiança entre cidadãos e seus representantes” e propunham: “A reforma da lei eleitoral para a Assembleia da República, dando lugar a um sistema proporcional personalizado que permita conciliar círculos de um só Deputado com círculos plurinominais territoriais, conceder aos eleitores um duplo voto, para escolha personalizada do candidato e da lista da sua preferência.”
Mais recentemente, no Programa eleitoral de 2015, o PS, no capítulo “Melhorar a qualidade da democracia”, diagnosticou que “existe, hoje, na sociedade portuguesa, uma quebra de confiança dos cidadãos relativamente à política, às instituições democráticas e aos seus responsáveis. O PS reconhece a necessidade e a urgência de inverter esta tendência e, por isso, actuará, de forma decisiva, (…) na valorização da democracia representativa, começando pela reforma do sistema eleitoral.” E reafirmou a proposta: “Reformar o sistema eleitoral para a Assembleia da República, introduzindo círculos uninominais, sem prejuízo da adoção de mecanismos que garantam a proporcionalidade da representação partidária, promovendo o reforço da personalização dos mandatos e da responsabilização dos eleitos, sem qualquer prejuízo do pluralismo”.
Nas eleições de 2019, também no capítulo “Melhorar a qualidade da democracia”, o Programa gabava que “o PS sempre liderou as reformas do sistema político” e prometia “prosseguir este caminho, melhorando a qualidade da democracia”. E, no subcapítulo “Modernizar o processo eleitoral, com maior proximidade e fiabilidade”, apresentava cinco medidas de que a quinta é ipsis verbis a reforma eleitoral prevista em 2015 (em substância, já vinha de 1995 e 2002): “Reformar o sistema eleitoral para a Assembleia da República, introduzindo círculos uninominais”, etc.
Vieram as eleições de 2022. E o PS deixou cair do Programa a proposta de reforma eleitoral. O resto do discurso estava, palavra por palavra, como no Programa de 2019, com excepção do mais importante: reformar o sistema eleitoral, introduzindo os círculos uninominais. No subcapítulo “Modernizar o processo eleitoral, com maior proximidade e fiabilidade”, apresentava quatro medidas, em vez de cinco; a que caiu fora aquela. Por isso, quando lança, na mesma, o auto-elogio “o PS sempre liderou as reformas do sistema político”, a frase perdeu todo o sentido. O PS deixou até de apenas sinalizar, quanto mais de liderar.
O silenciamento da reforma eleitoral tem uma história. O PS está indiscutivelmente ligado à sua ideia. Mas, nas legislaturas de 2015 e 2019 (a da geringonça e a seguinte), teve de deixá-la na gaveta, porque os parceiros PCP e BE eram – a meu ver, muito mal e em erro – totalmente contra ela. E, portanto, o PS não tinha condições políticas para avançar.
O que não quer dizer que não a possa fazer, pois a Constituição continua a prevê-la e a posição histórica do PS é conhecida. O que têm faltado são os outros, uma vez que a revisão da lei eleitoral carece de maioria de 2/3. São esses outros que têm faltado, o que é muito lamentável e diz muito do triste estado actual dos partidos.
Voltando à deputada Ana Paula Bernardo, talvez se intua já a relação com a não-reforma do sistema eleitoral. No programa de 1995, onde tudo começou, o PS afirmou que “a NOVA MAIORIA garantirá que a Assembleia da República ocupará um papel central no sistema político e que os Deputados do PS E DA NOVA MAIORIA exercerão as suas funções de controlo do Governo sem atitudes de subserviência, com espírito crítico e assumindo um protagonismo activo que dignifique a própria instituição parlamentar aos olhos do conjunto dos cidadãos.” Estão a ler, não estão?
O relatório preliminar de Ana Paula Bernardo é um relatório-biombo, um relatório que não mostra o que se passou, mas é feito para esconder partes do que se passou. O seu emblema poderiam ser os três macacos: não ver, não ouvir, não falar. É assim porque a responsabilidade política está completamente subvertida: a deputada depende apenas dos chefes, a quem presta contas; a deputada nada depende dos eleitores, a quem não responde, nem tem de responder. O relatório preliminar balizou o demasiado vazio do relatório final e ditou a forma como, surda, a maioria impôs, autoritária, o poder de calar o que fingiu não ter visto.
Só o facto de não ter sido ainda feita a necessária reforma do sistema eleitoral, aberta desde 1997, permite este triste episódio parlamentar em que deputados do PS afrontam a letra do seu programa de 1995, arrasando “o prestígio das instituições democráticas”, abalando “a dignificação da actividade política” e dissipando as “relações de confiança entre cidadãos e seus representantes”. Quando a reforma eleitoral for feita com círculos uninominais, activando a responsabilidade política perante o eleitorado (de todos os candidatos, uninominais ou de lista), a previsão do PS, no Programa democrático de 1995, poderá cumprir-se: “os Deputados (…) exercerão as suas funções de controlo do Governo sem atitudes de subserviência, com espírito crítico e assumindo um protagonismo activo que dignifique a própria instituição parlamentar aos olhos do conjunto dos cidadãos.” Como estamos, entregues à manipulação, é o que temos quase sempre: atitudes de subserviência, falta de espírito crítico, actos que não dignificam a instituição parlamentar.
Democracia medíocre. Foi isso que o país viu.
José Ribeiro e Castro
Advogado e cidadão
OBSERVADOR, 17.Julho.2023
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