Francisco levantou-se e veio apressadamente


Os sinais mostram como esta Jornada Mundial da Juventude Lisboa 2023 será muito importante para a Europa e para o mundo – para nós, Portugal, também –, ecoando em várias ondas através da sociedade, da juventude e da Igreja. Um extraordinário acontecimento. Um raro acontecimento único.

Vejo-o sob o efeito dos discursos do Papa no primeiro dia entre nós. Um discurso ao Estado, no CCB, outro discurso à Igreja portuguesa, nos Jerónimos. Mas a marca ficara logo na mensagem que deixou no Palácio de Belém. Escreve à mão, na nossa língua portuguesa, com uma bonita letra, sem tremor, nem hesitação, apresentando-se como “peregrino da esperança”.

Francisco é muito simpático para nós, gentil, amável: “que este país de coração jovem continue a fazer-se ao largo rumo a horizontes de fraternidade.” Vistos como país de coração jovem, incitados de novo ao que mais celebramos na nossa história – fazermo-nos ao largo –, de que mais precisávamos para olhar o rumo cristão pelo punho do peregrino da esperança? O rumo proposto são os horizontes da fraternidade. O peregrino da esperança é o próprio Papa.

Na véspera, 1 de Agosto, fora a missa de abertura da Jornada Mundial da Juventude. O Cardeal-Patriarca D. Manuel Clemente, deu as boas-vindas – e são larguíssimos milhares aqueles jovens e outros mais velhos que, respondendo à chamada, de todo o mundo foram chegando a Lisboa. O bispo de Lisboa dissertou especialmente sobre o surpreendente lema da JMJ Lisboa 2023: “Maria levantou-se e partiu apressadamente.”

Qualquer católico, da meia-idade para cima, deve ter ouvido esta frase umas dezenas de vezes, no início do Evangelho da Visitação – e passado os olhos por ela outras tantas ou mais vezes ainda, ao ler esse texto de S. Lucas. E, todavia, a maioria ou quase totalidade nunca terá reparado nela, por parecer circunstancial, até banal. Porém, escolhida para lema desta JMJ, desvendou-se numa riqueza espiritual que poucos descortinariam. A frase abre – e aponta – a forte dimensão do anúncio urgente do cristianismo. Nunca tinha reparado nela, mas, afinal, é a única chamada de Jesus pré-natal. Por quem? Através de Sua mãe. Foi isso que Maria foi fazer quando se levantou e partiu apressadamente. A pressa era por causa de Jesus Cristo, que vinha aí.

O Papa Francisco chegou-nos, agora, a Lisboa, com essa mesma pressa. As reacções que desperta, a admiração que gera, o espanto geral que provoca, a adesão que arrasta, são a resposta espontânea e genuína a essa pressa da palavra, do gesto e do exemplo, essa pressa da ternura, da proximidade e da humildade, essa pressa da amizade, da justiça e da paz, essa pressa de sonho, de infinito e de Deus connosco de que Francisco é a voz e o corpo como mais ninguém. O peregrino da esperança chega-nos na mesma rota e no mesmo propósito de Maria: o anúncio.

O discurso ao Estado, no Centro Cultural de Belém, foi muito rico e forte. Vale a pena lê-lo e relê-lo para reter o seu diagnóstico e a mensagem inspiradora. Voltou a ser muito generoso para connosco, os anfitriões, lisonjeiro, até galanteador com Lisboa: “estou feliz por estar em Lisboa”, “cidade do encontro”, “capital da juventude”, “capital do mundo”, “capital do futuro”, “cidade da esperança”, “abraça vários povos e culturas”, “caráter multiétnico”, “ainda mais universal”. Que mais podíamos pedir?

Viajou pela cultura portuguesa, citando Amália, Camões, Sophia, Pessoa, Saramago, não só para falar de nós ou da estreita relação com o mar, mas também do nosso olhar sobre o mundo e os outros. Foi exigente para a Europa, o ambiente, os oceanos. Mencionou especificamente “as lixeiras de plástico” – e, de facto, surpreende como ainda não se organizou, a nível mundial, a remoção completa das gigantescas ilhas de plástico que se encontram nos oceanos. Condenou a guerra, apelou à paz. Chamou por “rotas corajosas de paz”. Foi muito exigente para a política e os políticos: a erradicação da pobreza, a educação, a saúde, o estado social, “a queda da natalidade e o declínio da vontade de viver” na Europa e no Ocidente, a condenação expressa da “cultura do descarte da vida”. Falou de “tantas crianças não-nascidas e idosos abandonados a si mesmos”, “na dificuldade de acolher, proteger, promover e integrar quem vem de longe e bate às nossas portas”, no “desamparo em que são deixadas muitas famílias com dificuldade para trazer ao mundo e fazer crescer os filhos”. Interpelou a Europa e o Ocidente sobre “o descarte dos idosos, os muros de arame farpado, as mortandades no mar e os berços vazios”. Condenou os “remédios rápidos e errados como o fácil acesso à morte”. Criticou, com actualidade, as “leis sofisticadas sobre a eutanásia”. Neste momento exacto, uma parte do CCB interrompeu em aplausos. Mas, de modo sintomático, nem um só dirigente político o assinalou. Isto mostra bem como larga parte dos portugueses não está representada no Parlamento, nem se vê como e por quem o poderá estar. Uma crise vastíssima e profunda da nossa representação política.

Este discurso merece ser revisitado (assim como outros) depois de a JMJ acabar e as luzes se apagarem. Revisitar para não deixar que se apague a luz da palavra.

À tarde, nos Jerónimos, reunido com a Igreja portuguesa, Francisco traçou um programa: primeiro, “fazer-se ao largo”, cultivar a magnanimidade; segundo, “lançar as redes”, levar (todos juntos) por diante a pastoral; terceiro, “tornar-se pescadores de homens”, não ter medo. Nos primeiros parágrafos, o Papa enfrentara o tema dos abusos sexuais, que tem perturbado a vida da Igreja, em vários países, como Portugal: “a desilusão ou a aversão que alguns nutrem face à Igreja, devido às vezes ao nosso mau testemunho e aos escândalos que desfiguraram o seu rosto e que nos chamam a uma purificação humilde, constante, partindo do grito de sofrimento das vítimas que sempre se devem acolher e escutar.” (O Papa Francisco cuidaria pessoalmente desta mesma chaga, ao encontrar-se, ao fim desse dia, com 13 abusados, no seu jeito testemunhal de pregação pelo exemplo.) Esta homília foi recheada de palavras de incentivo, de ânimo e de coragem: audazes como os jovens; alegres, generosos, transformadores; despertar a ânsia pelo Evangelho. E concluiu, assim, o programa enunciado: “Queremos sonhar a Igreja Portuguesa como um «porto seguro» para quem enfrenta as travessias, os naufrágios e as tempestades da vida.” Com dois apelos mais coloridos: não fazer da missão um emprego; não transformar a Igreja numa alfândega.

Os dias têm sido recheados de ensinamentos, de abordagens novas da palavra de Cristo, de exemplos e testemunhos que interpelam. Os jovens tomaram cada vez mais a palavra, em diálogo directo com o Papa. O encontro na Universidade Católica abriu esta nova fase da Jornada Mundial da Juventude. As palavras de Francisco, que respondeu a quatro jovens que se lhe haviam dirigido (Tomás, Beatriz, Mahoor, Mariana), foram de novo uma comunicação culturalmente muito rica, partindo da lição sobre o que é ser peregrino. Se quisermos perceber como o Papa vê o que é ser o “peregrino da esperança” como se apresentou à chegada, neste discurso encontramos uma parte importante das chaves. Mais uma vez incentivou: “Amigos: procurai e arriscai. Neste momento histórico, os desafios são enormes, os gemidos dolorosos: estamos a viver uma terceira guerra mundial feita aos pedaços. Mas abracemos o risco de pensar que não estamos numa agonia, mas num parto; não no fim, mas no início dum grande espectáculo.”

A mim, tocou-me sobretudo Mahoor, jovem iraniana, estudante de Medicina Dentária, que teve de fugir do Irão para a Ucrânia e, poucos anos depois, em 2022, com a guerra, teve de fugir outra vez. Já sofreu mais do que a sua idade consentiria. Francisco foi especialmente terno para ela: “Acompanhei emocionado o testemunho de Mahoor, quando lembrou o que significa viver com o «sentimento constante de ausência de um lar, da família, dos amigos, (...) de ter ficado sem tecto, sem universidade, sem dinheiro, (...) cansada, exausta e abatida pela dor e pelas perdas». Disse-nos que reencontrou a esperança porque alguém acreditou no impacto transformador da cultura do encontro. Sempre que alguém pratica um gesto de hospitalidade, desencadeia uma transformação.”

Estes dias têm sido de pregação intensa, variada, abundante. Assim continuarão até ao ponto mais alto no domingo.

Têm sido também um banho refrescante da cultura portuguesa. Não são só as várias citações que o Papa faz de nós para explicar à juventude e ao mundo aspectos e ângulos do que quer exprimir. São também, intensamente, sinais extraordinários e admiráveis de comunicação como as excelentes interpretações da orquestra, do coro e da dança, desde terça-feira; toda a construção da recepção ao Papa, na quinta-feira, com as interpretações notáveis de Marisa, do grupo da Aldeia Nova de S. Bento com o cante alentejano e de Tiago Bettencourt com os bombos do Fundão; e, ontem, a belíssima apresentação da Via Sacra, espiritualmente muito rica. Quem, pelo mundo, tenha seguido pela televisão e pelas redes sociais, ganhou certamente mais gosto e viva curiosidade pela nossa cultura.

Teremos muito com que nos maravilhar neste sábado e neste domingo, últimos dias do Papa, peregrino da esperança, entre nós. No domingo, saberemos também onde será a próxima JMJ. Mas Lisboa 2023, é já certo, chegará muito longe e perdurará muito tempo. Com quê? Com o seu essencial: Cristo mais próximo. É isso que encanta estes jovens, que, para escutar e ver o seu Papa, também se levantaram e vieram apressadamente ao encontro mundial de Lisboa.

José Ribeiro e Castro
Advogado e cidadão

OBSERVADOR, 5.Agosto.2023

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