Como a regionalização caiu numa armadilha
Há anos que
chamo a atenção para a derrapagem centralizadora em que entrámos em Portugal,
por causa do erro que vou expor. Ou terá sido fraude? Cada um avaliará e
julgará por si. Desvio foi certamente – e não tem sido pequeno.
A
Constituição, em 1976, escreveu assim no artigo 291.º: “Enquanto as
regiões administrativas não estiverem concretamente instituídas, subsistirá a
divisão distrital no espaço por elas não abrangido.” Embora inscrita nas
“Disposições finais e transitórias”, esta norma é de enorme importância:
tem o propósito e o valor de uma garantia constitucional.
A garantia do artigo 291.º da
Constituição
O artigo
291.º está nas normas transitórias, porque era uma norma de transição: logo que
as regiões administrativas estivessem instituídas, os distritos desapareceriam.
A nenhum deputado constituinte passou pela cabeça que, por causa de uma série
de percalços e peripécias, quase 50 anos depois, as regiões administrativas
ainda não existissem. Porém, o problema maior é que as populações ainda não têm
as regiões administrativas e, na administração pública, já não têm os distritos
– às populações nada lhes foi dado, tudo lhes foi tirado.
Fez-se
precisamente o que o artigo 291.º da Constituição quis impedir e, por isso, o
preceito era (e é) uma garantia. Os constituintes disseram isto ao poder
político futuro: “Vocês vão criar as regiões administrativas e, nessa altura,
acabam os distritos. Mas os distritos têm de continuar, enquanto vocês não
instituírem as regiões administrativas. Sem regiões, os distritos não acabam.”
É esta a palavra da Constituição.
O pensamento
constituinte é claro. Prevê-se uma alteração do patamar intermédio da
administração territorial: os distritos seriam sucedidos pelas regiões
administrativas – nas ilhas, as regiões autónomas, acabando os distritos
autónomos. E impõe a continuação dos distritos até à instituição das regiões,
por uma razão simples: a Constituição não quis que as populações ficassem,
nalgum momento, desprovidas de uma administração de proximidade, acima do
município e mais perto do que o Estado. O mandato ao poder político era claro e
evidente.
Os políticos não cumpriram
Mas o poder
político não cumpriu, com consequências desastrosas para as populações e para o
território. É daqui que provêm, em modo crescente, o abandono do interior e a
desertificação. Porquê? O que aconteceu? O Estado não criou as regiões
administrativas e, entretanto, desmantelou os distritos.
As capitais
de distrito (com excepção das sedes das CCDR) perderam o corpo técnico da
administração desconcentrada do Estado e, por via disso, a capacidade técnica e
administrativa de planear e responder em proximidade às necessidades desses
territórios. Ao mesmo tempo, as populações passaram a ter de deslocar-se mais
longe para serem atendidas.
O panorama piorou
ainda mais, porque aconteceu o normal nestes casos: à partida das unidades do
Estado seguiu-se movimento homólogo em empresas privadas, afectando mais a
qualidade de vida e de atendimento geral.
As famílias e os jovens foram incentivados a largarem as suas terras e a
mudarem-se também. Disparou o círculo vicioso de abandono e desertificação:
partem os serviços porque há menos gente, parte mais gente porque tem menos
serviços. E, baixando a população, baixa também o poder reivindicativo.
Ainda que os
distritos fossem transitórios, a Constituição quis prever, inclusive, um quadro
activo para os distritos, prevenindo qualquer vazio administrativo, tanto na
sua face autárquica, como na de extensão do Estado. Na primeira vertente, o
número 2 do artigo 291.º estabelece: “Haverá em cada distrito, em termos
a definir por lei, uma assembleia deliberativa, composta por representantes dos
municípios.”
E, na segunda
vertente, fixa o número 3 do mesmo artigo: “Compete ao governador civil,
assistido por um conselho, representar o Governo e exercer os poderes de tutela
na área do distrito.” Esta última é uma norma de grande importância,
que, se cumprida, impediria a derrapagem negativa que aconteceu. Em 1976, os
serviços do Estado estavam desconcentrados numa rede distrital, mais ou menos,
uniforme: economia, saúde, educação, segurança social, estradas, etc. Ora, o
governador civil teria não só competências na área de polícia e protecção
civil, mas seria um geral representante do governo, com função de coordenação
horizontal de todos os serviços da administração periférica do Estado. Muitos
problemas se resolveriam aí, sem necessidade de subir “ao Terreiro do Paço.”
Contínua derrapagem centralizadora
desde o fim dos anos 80
Este caminho foi
frustrado até hoje. Não é justo, nem correcto centrar baterias na decisão do
governo PSD/CDS, no difícil período da troika, de acabar com os governadores
civis. Desde logo, não acabou com os governadores civis – não o poderia fazer,
porque seria inconstitucional. Decidiu deixar de nomear os governadores civis. E
o processo é muito mais antigo: vem dos finais dos anos 80 e compromete todos
os governos do PSD e do PS, assim como, infelizmente, também o CDS, nos
períodos em que participou, e, nos anos da “geringonça”, também o BE, o PC, os
Verdes e o PAN.
Aliás, o PS e
a “geringonça” poderiam ter voltado a nomear os governadores civis, em 2016, e
não o fizeram. O que se passa é que, desde o fim dos anos 80, leis orgânicas
dos serviços do Estado, sector a sector, fecharam direcções distritais e
concentraram-nas em direcções ditas “regionais”, coincidentes, em geral, com o
mapa das CCDR, num processo sistemático de centralização, embora apelidado de
“descentralização”.
É assim que
os distritos se foram desvanecendo a pouco e pouco, deixando um deserto
administrativo atrás de si. Eles continuam lá, mas foram esvaziados de conteúdo
e substância. Subsistem nos círculos eleitorais, e pouco mais, mas também
politicamente enfraquecidos: os deputados eleitos já não dispõem, ao seu lado,
daquele patamar distrital da administração do Estado que lhes competiria
fiscalizar e pressionar. Em linguagem futebolística, esta evolução “tirou a
bola dos pés” dos deputados, diminuindo a capacidade de estes servirem bem os
cidadãos.
Por isso é
que eu digo que a regionalização se tornou numa armadilha – e nós caímos nela. A
regionalização não se faz, não deixa fazer e, entretanto, fez-nos cair num terrível
colete de forças. É urgente cumprir e fazer cumprir o artigo 291.º da Constituição.
É preciso.
Um pântano desde 1998
Depois do
referendo de 1998, esta questão ficou num pântano: por um lado, a Constituição
manda fazer a regionalização; por outro, o povo votou contra em referendo. Para
quem quiser avançar com essa agenda, é inevitável ter de convocar um novo
referendo; e não tem havido condições políticas para o repetir. O entusiasmo
para um novo referendo também não é grande, face à experiência de 1998.
O quadro
constitucional vigente nesta área deste 1976 (com a revisão de 1997) tornou-se,
assim, um trambolho: por um lado, a regionalização não se faz; por outro lado, nada
deixa fazer.
Tomemos o
exemplo das Áreas Metropolitanas, tão importantes para a grande Lisboa e o
grande Porto. Estão, em boa parte, encravadas, no quadro da previsão
constitucional das regiões administrativas como único patamar autárquico entre
os municípios e a Administração Central. Põe-se por vezes a questão teórica de
saber se as Áreas Metropolitanas devem ficar acima ou abaixo das regiões
administrativas, em que termos e com que efeitos nas suas competências. (Em
minha opinião, ficariam “ao lado” das regiões administrativas, com território
próprio não integrado em qualquer outra região e correspondendo a regiões
administrativas de regime especial.) E chegou a discutir-se a eleição
democrática dos dirigentes das Áreas Metropolitanas, o que rapidamente foi
atalhado pela alegação de que isso corresponderia a uma “regionalização encapotada”,
pelo que, no quadro constitucional, só poderia ser feito na reorganização administrativa
regional de todo o Continente e também após referendo com resultado positivo.
Tudo parado!
Ultimamente,
o Governo vem dando passos para consolidar, como facto consumado, uma ideia de
regionalização estruturada em cinco “regiões”, correspondentes aos territórios das
cinco CCDR. Sempre considerei este modelo um erro grave, desinserido do
enraizamento das populações. É um modelo tecnocrático e, por vezes, até de
enquadramento estatístico, sempre embrulhado com o desenho das NUTS. Encontra a
sua génese nas antigas regiões-plano. Não tem nada a ver com um quadro de
administração, de resposta e de serviço às populações e corresponde à
consagração da centralização progressiva a que, de forma surda, temos sido
sujeitos nas últimas décadas. O desenho das “regiões” pelo mapa das CCDR
consolida a litoralização do Continente e o abandono e desertificação do Interior.
Mas há outra
dificuldade para conseguir avançar na criação das regiões administrativas: a alta
sensibilidade da definição de territórios e da capital de cada território. Politicamente,
não há matéria mais difícil para discutir e definir democraticamente do que
estas duas. E só o Minho ou é o Entre-Douro-E-Minho? É Trás-os-Montes ou é Trás-os-Montes
e Alto Douro? E, aqui, a capital é Bragança ou Vila Real? E por que não
Mirandela? Ou Lamego.
As discussões
e tensões de interesses são múltiplas e variadas. Não há território regional
que não conheça variantes e alternativas. Estas variantes permitem facilmente
que os adversários do processo incendeiem os bairrismos e envenenem o processo
e o debate, conduzindo-o à zaragata e ao fracasso. Há quem procure fugir ao
problema prevendo várias capitais na mesma região. A meu ver, isso é
desconsiderar o interesse dos cidadãos. O cidadão que não vive na capital
prefere ter de deslocar-se a uma cidade para tratar
de todos os seus assuntos do que ter de andar a saltitar de cidade em cidade apenas
só por causa da política politiqueira.
Romper a armadilha: aproximar a Administração dos cidadãos e
suas terras
Desde 1976,
data da Constituição, até 1998, data do referendo, passaram 22 anos. Foram 22
anos frustrantes, em que fracassaram três tentativas de concretizar a
regionalização: a dos governos da Aliança Democrática (1980/83); a do governo
da primeira maioria absoluta de Cavaco Silva (1987/91); a do primeiro governo
de António Guterres (1995/99). No primeiro caso, a AD acabou e o governo caiu.
No segundo, Cavaco Silva e o seu governo mudaram de ideias da primeira para a
segunda maioria absoluta e pararam o processo. No terceiro, o referendo de 1998
rejeitou o projecto.
De 1998 até
hoje já passaram mais 25 anos. São 25 anos de pântano e de efectiva paralisia
prática, com algumas declarações, mas nenhuma acção consequente. Apenas merece
destaque a tentativa das CIM, as Comunidades Intermunicipais, que fornecem um
mapa interessante, mas conheceram pouco desenvolvimento. As dificuldades
constitucionais são evidentes e reais e as resistências políticas são as do
costume. O único avanço que aconteceu foi o da derrapagem centralizadora, de
modo latente, sibilino, obstinado e progressivo.
Olhando de
2023 para 1998 o que podemos dizer? Que estamos mais centralizados, que o
Continente está mais litoralizado, que o Interior está mais débil e abandonado,
que o território é mais desigual e menos coeso.
Por isso, creio
que é imperioso avançar. Não podemos continuar mais 25 anos neste pântano e, em
2048, encontrarmo-nos ainda pior. E só é possível avançar no quadro da
Constituição e com a Constituição. Por isso, há muito que considero que o
artigo 291.º da Constituição é a única porta que temos para avançar, levando a
Administração de volta para perto das populações.
Essa via é
regressar aos distritos, uma espécie de voltar à casa da partida. É uma via que
não envolve discussões de territórios e de capitais, pois está tudo definido no
que toca aos distritos. É uma via que já tem expressão política e enraizada tradição,
pois os distritos correspondem aos círculos eleitorais que, no Continente,
elegem os deputados. É uma via que exige ao Governo reconstituir e prover os
órgãos dos distritos e fazer coincidir com a divisão distrital toda a malha
territorial da Administração desconcentrada dos organismos do Estado, passando
a ser conforme com a previsão do artigo 291º.
É uma via que
não prejudica outros passos futuros, pois que, se for conveniente agregar dois
ou mais distritos numa mesma região administrativa, os próprios distritos
amadurecerão isso entre si, não deixando que terceiros envenenem o processo.
Ou, se for oportuno, para quebrar o galho e andar para diante, também se pode avançar
para as regiões administrativas, fazendo-as coincidir com os distritos, como, inteligentemente,
propôs o PCP nos anos 80, por duas vezes – mais à frente, algumas regiões
poderiam agregar-se. Isto é, se seguirmos pela porta dos distritos, começaremos
a andar da descentralização, da coesão territorial, do regresso ao Interior, do
serviço a todas as populações.
Enfim, esta é
a única via acessível para recuperar do tempo perdido e quebrarmos a armadilha
centralizadora em que nos colocaram.
Quem quiser
andar bem e depressa é por aqui que tem de vir. Quem não quiser, ou é um
centralista, ou seu aliado e cúmplice. Se continuarem a prevalecer, terão a
responsabilidade de mais umas décadas de atraso de Portugal.
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