Os do 24 de Novembro é que mandam
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nteontem, 4
de Outubro, foi a notícia política do dia. Os títulos não eram uniformes. Na
TSF: Parlamento risca 25 de Novembro das comemorações dos 50 anos do 25 de
Abril. No Público: Nos 50 anos de Abril, Parlamento não decidiu se
comemora o 25 de Novembro. Na Lusa: Operação do 25 de novembro de 1975
fora do programa consensualizado do 25 de Abril. Na Renascença: Excluir
25 de Novembro “é marginalizar uma data particularmente significativa”, defende
Manuel Braga da Cruz. Na RTP: 50 anos do 25 de Abril. Programa
consensualizado exclui 25 de Novembro. No Observador: Santos Silva não
comemora o 25 de Novembro. Ainda não é dado por absolutamente certo, mas os
sinais são claros: o Parlamento quer enterrar o 25 de Novembro. Não é só
esquecer, como têm procurado impor. É enterrar de vez, calar para sempre.
Para quem
viveu esses anos da fundação da democracia, quem sabe o que foi sem necessidade
de ler ou ouvir contar, é muito chocante que, num momento tão marcante como os
50 anos do 25 de Abril, se queira falsificar a história ao ponto do apagamento.
Sempre o método woke do cancelamento, tão lamentavelmente em voga.
Por um lado,
surpreende: passados 50 anos, ainda há sectores agarrados à tentativa de sabotar
o 25 de Abril. Por outro lado, não há surpresa: vemos quem está sentado na
Assembleia da República, com o PS colonizado pela sua extrema-esquerda, como ressalta
em várias áreas ideológicas bem definidoras.
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oje, como se
vê pelas notícias de ontem, quem consegue prevalecer são os do 24 de Novembro,
não os do 25. Recuando a 1975, é fácil ter a chave de leitura. Nessa altura, o
PREC acelerava, enlouquecido. Os rumores eram constantes, frenéticos. Para cada
fim-de-semana, “anunciava-se” que ia haver golpe. A 12 e 13 de Novembro, a
Assembleia Constituinte foi cercada por uma multidão de manifestantes, que
sequestraram em S. Bento os deputados por longas 36 horas. Os deputados do PS,
PPD e CDS começam a considerar reunir no Porto. Na sexta-feira, dia 16, cada um
pelos seus meios, é para o Norte que se deslocam, temendo golpe da esquerda
revolucionária nesse fim-de-semana. A tensão continua a subir.
A 20 de
Novembro, o Almirante Pinheiro de Azevedo, primeiro-ministro, profere declarações
célebres e inesquecíveis, à saída do Palácio de Belém: “Estou farto de
brincadeiras! Já fui sequestrado duas vezes, não gosto de ser sequestrado. É
coisa que me chateia!” O Governo declarara entrar em greve, noutra
originalidade do PREC. Nesse mesmo dia 20, a Assembleia Constituinte aprovou uma
Declaração proposta pelo grupo do PS, apresentada pelo saudoso deputado
José Luís Nunes, em que se deliberou: “A Assembleia Constituinte declara ser
sua intenção reunir, nos termos regimentais, em qualquer momento e em qualquer
lugar, se tanto for necessário, para o integral cumprimento do seu mandato
nacional.”
No dia 25,
forças militares revolucionárias provocaram, tomando a iniciativa da
insurreição; e forças militares democráticas responderam, prevaleceram e venceram.
O poder político-militar ficava, forte e seguro, do lado da democracia, que
faltava construir e consolidar.
Os golpistas
perderam, mas não foi uma brincadeira. Foi duro e de alto risco. Dois militares
do lado democrático foram mortos pelos militares do lado revolucionário, não
muito longe do Palácio de Belém. Em serviço, deram a vida por nós. E poderia
ter sido muito pior, se houvesse desnorte ou incompetência do lado democrático
ou se tudo se descontrolasse.
A maioria
parlamentar de hoje tem como referência a “geringonça”, onde preponderam os derrotados
do 25 de Novembro, defensores da “ordem” do dia 24, que queriam prolongar para
sempre. O PS de hoje tem pouco ou nada a ver com o PS de Mário Soares. Onde esse
PS, sendo o maior partido, encabeçou a resistência democrática civil, o de hoje
está, por dentro e por fora, condicionado pelos do 24 de Novembro. Só assim
pode compreender-se que o PS não exalte (e afaste) a declaração citada de José
Luís Nunes e, no seu contexto dramático, aquilo para que serviu: uma afirmação
clara de rebelião democrática para defesa da democracia e da liberdade. Custa
entender por que motivo, manietado pela ideologia e entremeado com extremistas,
o PS quer apagar os 50 anos daquele bravo PS de Mário Soares, Salgado Zenha e
Manuel Alegre. Mas é o que está a fazer.
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verdade da História,
todos a sabemos – ou podemos saber. Após o 25 de Novembro, os presos políticos
foram libertados. Não logo, mas em fases, depois de identificado cada caso nos
presídios onde estavam. Sim, sob pressão revolucionária, voltara a haver presos
políticos, e muitos: uma primeira vaga a seguir ao 28 de Setembro, uma segunda
a seguir ao 11 de Março e outras levas até Novembro, pelos famosos “mandatos de
captura em branco” e outros instrumentos à mão. Acabaram de vez as sevícias nas
prisões, contra adversários políticos ou militares – há um relatório oficial sobre
os cárceres do PREC. A Assembleia Constituinte pôde prosseguir e concluir os
trabalhos tranquilamente e reconquistar uma margem mais ampla de liberdade pelo
2.º Pacto MFA/Partidos, que a soltou de muitas das amarras do 1.º Pacto. Não
ficou perfeito, mas foi bem melhor do que teria sido. Não aconteceu qualquer
“revanchismo”, diferentemente do pregão fake da esquerda revolucionária.
Ficaram garantidas as primeiras eleições democráticas, fundadoras do regime,
para que todos partimos, entusiasmados e confiantes: as legislativas, em 25 de
Abril de 1976, em que venceu o PS, sem maioria; as presidenciais, em 27 de
Junho, em que foi eleito Ramalho Eanes; e as autárquicas, a 12 de Dezembro,
ganhas por PS e PPD (115 Câmaras para cada), seguidos por FEPU, onde estava o
PCP (37 Câmaras), CDS (36 Câmaras) e PPM (1 Câmara). Implantou-se o Poder Local
democrático.
A democracia
foi fundada em 1976, pela Constituição votada a 2 de Abril e por aquelas três
eleições fulcrais, estruturando o Estado de direito democrático. A democracia
deve-o ao 25 de Novembro. É ponto sobre o qual ninguém pode ter a mais pequena
dúvida. Claro que também o deve ao 25 de Abril. Mas isso é ponto que ninguém
alguma vez pôs em causa. Já aqui, escrevi a esse respeito noutro artigo: 25
de Abril e 25 de Novembro: dois em um.
É experiência
tocante ler, ouvir ou dizer o belíssimo poema de Sophia De Mello Breyner de que
cito só estes versos: «O dia inicial inteiro e limpo/ Em que emergimos da noite
e do silêncio/ E vivos habitamos a substância do tempo». Se não fosse o 25 de
Novembro, tenho quase a certeza de que o 25 de Abril não seria assim recordado.
Teria havido de novo outras noites e silêncios, dias quebrados e sujos. Poderia
passar-se algo como na Rússia de 1917: só sabemos e só falamos da Revolução de
Outubro, que levou Lenine ao poder e, depois, Estaline e muitos outros, no
regime tenebroso que durou mais de 70 anos. E ninguém fala, toda a gente
esqueceu a Revolução de Fevereiro, que depôs o czar Nicolau II e instalou um
regime republicano e democrático de vida curta. Esta revolução libertadora,
assim como Kerensky, líder social-democrata, seria soterrada em Outubro – por
sinal, Novembro no nosso calendário. O 25 de Abril, que brilha na quadra de
Sofia, brilha porque o 25 de Novembro o resgatou e guardou.
Se o 24 de
Novembro continuasse e, quando a tensão explodisse, os revolucionários
triunfassem, podemos ter a certeza de que haveria muitos mais presos políticos.
Voltaríamos a um V Governo Provisório, em versão mais dura e exclusiva de
extrema-esquerda. Mais alguns partidos seriam provavelmente ilegalizados: o CDS,
no processo de salamização a caminho da “democracia popular” ou semelhante, era
a fatia seguinte do salame. A Constituição não sei se seria aprovada – talvez
transferissem a legitimidade de a fazer para a Assembleia do MFA. Não seria
certamente uma Constituição de Estado democrático de direito. Não teria havido
o naipe de eleições democráticas de 1976 – o PCP, a extrema-esquerda e os
militares revolucionários não mais correriam o risco de perder eleições, como nas
constituintes de 25 de Abril de 1975. Tudo isto iria isolar-nos de Espanha e do
resto da Europa, no caminho da “teoria da vacina”, que Henry Kissinger
enunciava. A dinâmica do extremismo político far-nos-ia resvalar do “manicómio
em auto-gestão”, como se dizia no PREC, para um regime concentracionário.
Sairíamos da NATO e nunca entraríamos nas Comunidades Europeias, nem perto. Os
parceiros de Portugal seriam a URSS, a Europa de Leste, a Coreia (a do Norte,
claro), Cuba, repúblicas autoritárias da África do Norte e outros do mesmo
campo. Custa muito imaginar os últimos 48 anos nesse quadro. Parece impossível.
Foi impossível, porque o 25 de Novembro o fez impossível.
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m quase
alegoria, conto uma pequena história. Em 1977, fui à Áustria com Brás de Oliveira, administrador de “O Dia”, comprar
papel. Os jornais privados estavam frequentemente à beira da rotura de papel. Eu
era dirigente nacional do CDS com responsabilidade na área e fui mandado em
missão, dadas as excelentes relações com o ÖVP, os democrata-cristãos austríacos.
A missão correu bem e trouxemos os contratos necessários.
No regresso,
apanhámos em Frankfurt o voo da Aeroflot da rota Moscovo/Havana, uma viagem
cheia de peripécias. Os nossos lugares eram num banco de três: Brás de Oliveira
na coxia, eu no meio e, à janela, um passageiro que vinha já de Moscovo. Depois
de o voo começar, meteu conversa. Falava espanhol. Era cubano. Ainda nos
ofereceu um exemplar do Granma, órgão oficial do Comitê Central do
Partido Comunista de Cuba (PCC). Professor de Química, fora à União Soviética fazer
uma especialização. Eu tinha 23 anos, ele cerca de 40, Brás de Oliveira entre
40 e 50. Simpático e conversador, o cubano estava muito curioso sobre Portugal.
Não passámos das primeiras informações. Ele interrompe, querendo saber o que se
passava com os “militares fascistas”. Não o dizia com fúria ou ódio, mas como
classificação política. Entreolhámo-nos, Brás de Oliveira e eu, e perguntei: “Quais
militares fascistas?” O cubano apontou: “Os fascistas! Melo Antunes, esses
assim”. Conseguimos não rir. Demos uma resposta de circunstância. Ele percebeu
que não estávamos no mesmo comprimento de onda. Não houve mais conversa.
O professor
de Química não tinha forma de saber – Cuba e URSS não primam pela liberdade de
informação. O nosso companheiro cubano dizia isso, porque era o que lhe
contavam. Adivinhem quem… Certamente os mesmos que, ainda hoje, cismam em
ignorar o 25 e agarrar-se ao 24 de Novembro. Melo Antunes, logo a seguir ao 25
de Novembro, segurou o PCP, dizendo que “o PCP é imprescindível à democracia
portuguesa”. Se ele era um biltre fascista, todos ficamos a saber onde
estaríamos se não fosse o 25 de Novembro.
A actual maioria
parlamentar mostra saudades disso, pena da revolução interrompida pelas
eleições. Não lembra tudo o que vivemos para assegurar a construção da
democracia. Está saudosa das tentativas de boicote e de sabotagem que, por um
triz, não a comprometeram por muitos anos ou décadas. A maioria está,
infelizmente, amarrada ao 24 de Novembro. Se não muda, é imperioso mudá-la. Mostra-se
perigosa em valores essenciais e fundadores.
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