Reforma eleitoral – porquê meia reforma, se a podemos ter inteira?
Em 4 de
Outubro passado, a Iniciativa Liberal (IL) veio reanimar o debate sobre o
sistema eleitoral. É o Projeto de Lei n.º 940/XV/2: “Introduz um círculo de
compensação nacional nas eleições legislativas”. É uma iniciativa importante, em
matéria crucial para a qualidade da democracia, a que tenho dedicado muito
trabalho e intervenção cívica nos últimos anos.
A IL faz bem
em pôr o tema na mesa e empurrá-lo para a agenda. Mas lamento que se fique pela
metade – a abertura da revisão constitucional de 1989 –, em fez de a lançar por
inteiro – a abertura constitucional de 1997. Vendo bem, é bastante estrambólico
o regime em que vamos vivendo – e afundando-nos. A Constituição permite, desde
a revisão de 1989, a instituição de um círculo nacional, como foi introduzido
na reforma do, então, artigo 152.º; e, passados 34 anos – sim, 34 anos! – ainda
não o temos. Mas a Constituição permite também, desde a revisão de 1997, pela
reforma do artigo 149.º, a introdução de círculos uninominais, complementares
dos plurinominais e garantindo a representação proporcional; e, passados 26
anos – sim, 26 anos! – ainda não os temos. É difícil encontrar no mundo casos
de tamanha preguiça legislativa. O legislador constituinte abre a porta a
reformas importantes; e o legislador ordinário esquece-se de as levar à
prática. Mais de ¼ de século sem sair da cepa torta! Um esquecimento obstinado…
O nosso
sistema eleitoral tem dois problemas principais, que lhe afectam o
funcionamento e a reputação. Um é a efectiva representação proporcional – o
problema que mais interessa aos partidos. O outro é a efectiva representação
política – o problema que realmente interessa aos cidadãos. Não surpreende,
embora seja pena, que os partidos mostrem preocupar-se mais com o problema do
seu interesse do que com o dos cidadãos, os eleitores. Seria melhor ao
contrário: primeiro, a cidadania.
O problema para
os partidos é a proporcionalidade da representação parlamentar ter vindo a deteriorar-se.
E, como é natural, os partidos mais pequenos (incluindo os que se vão tornando
mais pequenos) queixam-se: têm menos lugares do que deveriam, enquanto os
partidos maiores concentram mais do que lhes caberia. É comum ouvir-se que a
culpa é do método d’Hondt. Não é bem assim: o sr. Hondt terá culpa de muita
coisa, mas não disso. A “culpa” é, por um lado, termos elevado número de
círculos eleitorais pequenos, isto é, que atribuem poucos mandatos, o que faz
subir muito a fasquia a partir da qual se elege alguém. E, por outro lado, o
sistema partidário ter-se fragmentado, o que aumenta, círculo a círculo, o
número de “votos perdidos”. O remédio mais óbvio é o círculo nacional de
compensação. Toda a gente sabe isso. Mais ainda, depois da revisão da lei
eleitoral dos Açores, que, em 2006, introduziu, com efeitos reconhecidamente
positivos, o círculo regional de compensação. Quanto a isto, nada a dizer. Embora
tenha duas observações a fazer à proposta da IL, que tratarei mais à frente.
O problema para
os cidadãos é mais grave: o sistema eleitoral foi de tal modo apoderado pelos
aparelhos partidários que os cidadãos não têm qualquer peso ou influência nas
escolhas em que são forçados a votar. O escrutínio político dos eleitos é também
muito fraco, ou mesmo inexistente, e os cidadãos, na eleição seguinte, não têm a
menor possibilidade de premiar os sancionar aqueles em que anteriormente
votaram. O ambiente político deixou de ser democrático para tornar-se
oligárquico. Toda a gente sente (e sabe) que os deputados não são representantes
do povo, mas realmente delegados dos chefes dos partidos. É aos chefes que
prestam contas, não aos cidadãos. Este é que é o problema candente e crucial da
decadência democrática. Por cada legislatura que passa sem o atender, mais o
problema se agrava e a democracia se afunda.
A reforma que
inclua os círculos uninominais não só nos daria melhores eleições e um melhor
Parlamento, mas também garantiria melhores partidos políticos. Estes mesmos
partidos, que por vezes já nos cansam, tornar-se-iam, de imediato, melhores,
porque o processo de escolha de candidatos, com peso da cidadania, beneficiaria
a própria forma de funcionamento interno dos partidos e a sua capacidade de
respiração aberta com a sociedade. Hoje, o sistema favorece os compartimentos
fechados e os actores pendurados do tecto.
Voltando ao
projecto da Iniciativa Liberal, penso que 40 lugares é uma dotação demasiado
grande para o círculo nacional de compensação. Na proposta que apresentei, com
círculos uninominais e plurinominais, o círculo nacional de compensação tinha
apenas 15 mandatos para atribuir – e, nas simulações feitas, pareceu
suficiente. Poderia ser um pouco maior, mas, na nossa avaliação, não muito
maior. Nos estudos que fiz, admiti que pudesse ir até 20 lugares, o que
corresponderia a uma quota percentual similar à Assembleia Legislativa Regional
dos Açores. Aqui, o círculo regional elege 5 deputados num total de 57. Um
círculo nacional com 20 mandatos num total de 230 corresponderia a peso
similar: 8,8%. É o bastante. É importante assegurar a proporcionalidade da
representação, mas não se deve exagerar, com risco de afectar a
governabilidade. Reformas que dêem representação eleitoral a candidaturas com
menos de 1% de votação nacional seriam mais negativas do que positivas.
Por outro
lado, quanto à atribuição dos mandatos pelo círculo nacional de compensação,
penso que é melhor o sistema da nossa proposta. No método inovador que propomos,
o círculo nacional não teria listas, sendo a atribuição dos respectivos
mandatos feita da seguinte forma: primeiro, são repartidos pelas diferentes
candidaturas na razão proporcional que a cada um couber; segundo, dentro de
cada partido, são atribuídos aos mais votados não eleitos, dando preferência aos
candidatos de círculos em que esse partido ainda não tenha obtido
representação. É uma forma de ir ao encontro da preocupação existente com a
justiça territorial do sistema e de, contrariando o império do “voto útil”,
premiar a fidelidade dos eleitores.
Porém, a
grande falha da proposta da IL é a outra metade que fica a faltar: os círculos
uninominais, que serão, na verdade, o elemento regenerador da nossa democracia.
De facto, a reforma em que tenho trabalhado, lançada pela APDQ e pela SEDES, dá
uma resposta global muito boa, resgatando a democracia e devolvendo-a à
cidadania. Está pronta e à vista. Fá-lo, porque o sistema misto de
representação proporcional personalizada, previsto no artigo 149.º da
Constituição, é, de facto, muito inteligente e muito equilibrado: protege a
proporcionalidade da representação; e confere aos eleitores um poder prático
muito significativo na designação individual dos candidatos e na eleição dos
deputados. Essa reforma seria a grande restauração democrática em Portugal. Por
sinal, muito oportuna para ser adoptada em 2024, nos 50 anos do 25 de Abril.
Que melhor presente para toda a cidadania portuguesa do que a reforma eleitoral
que trouxesse de volta a alegria e a genuinidade da democracia?
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