Esta lei é uma selvajaria
A |
Assembleia da República está prestes a aprovar
uma lei que “estabelece o quadro jurídico para a emissão das medidas
administrativas que as escolas devem adoptar para efeitos da implementação da
Lei n.º 38/2018, de 7 de Agosto” – esta outra lei, descodifiquemos, havia estabelecido
o “direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e o
direito à proteção das características sexuais de cada pessoa”.
Em fase final
de votação, a lei é uma poderosa violência normativo-burocrática, uma laboriosa
selvajaria contra os direitos fundamentais. Não exagero: basta lê-la com vagar,
o que é, aviso, tarefa pesada para quem quiser entender. O texto final resultou
da fusão dos projectos de lei do PS, do BE e do PAN, nesta matéria, contando
também com um contributo do PCP. É uma lei que merece ser combatida com todo o
vigor que a sociedade e a democracia puderem mobilizar.
E, no
entretanto, o Presidente da República deve submeter a constitucionalidade a
fiscalização prévia, para obviar aos efeitos mais gravosos, e o Tribunal
Constitucional – se o Direito, entretanto, não entortou – remetê-la para o
destino merecido: reprovação. Com isso, poupar-nos-iam mais aborrecimentos e
confrontos, a paz nas escolas seria protegida e salvaguardada, pais e famílias
veriam os seus direitos respeitados, afastando novas agressões e inquietações,
e crianças e jovens poderiam continuar a concentrar-se nas tarefas escolares.
P |
rimeira
selvajaria da lei é esta afirmação: “sexo atribuído à
nascença”. Como!? Importa-se de repetir? “Sexo atribuído à nascença” são as
quatro palavrinhas da mentira fundamental, sendo em torno desta que rola toda a
enredada teia do diploma. Surge no artigo 4.º, n.º 1 da lei em votação final,
assim como está em dois artigos da lei de 2018.
Faz-me a
maior das confusões como é que mulheres e homens adultos, pessoas informadas,
na posse das suas faculdades, são capazes de escrever esta barbaridade: “sexo
atribuído à nascença”. Ainda para mais, homens e mulheres investidos de funções
legislativas, que têm o dever acrescido de escreverem apenas a verdade. Mais
ainda, em leis destinadas às escolas, que, espaços de saber e de aprendizagem
do saber, devem ser poupadas à propaganda da mentira e da ignorância e ser delas
protegidas. Pois bem: os nossos deputados, na sua maioria, preparam-se para
rebentar de novo com tudo isto, assim se despedindo desta legislatura.
Toda a gente
sabe que “sexo atribuído à nascença” é coisa que não existe. De todo! Ninguém atribui
o sexo a quem quer que seja, muito menos à nascença. Todos nascemos com ele,
definido. É o nosso sexo natural, não é sexo “atribuído”. Integra a natureza
humana, como de outros animais. E não fica definido à nascença, não tem nada a
ver com a nascença. É definido no momento da concepção. Aí, ainda não podemos
sabê-lo, mas sabemos que a natureza já o definiu, desde o princípio de tudo de
cada um. Hoje, podemos conhecê-lo muito antes do nascimento, como é experiência
comum de todos os pais dos nossos dias. É um dos grandes progressos na minha
geração: as mães e os pais podem conhecer o sexo dos seus filhos umas boas
semanas antes de nascerem. Toda a gente sabe isto.
Por que
esconde e mente a Assembleia da República? Por que quer manipular? Não se
embaraça em mostrar tamanha ignorância? Não cora de vergonha?
E |
sta é a
chave-mestra da ideologia de género: “sexo atribuído à nascença”. Por isso
mesmo é uma ideologia. A natureza não é ideologia. A natureza é o facto tal qual,
a realidade que se vê e toca, o caso objectivo que se estuda, descobre e
conhece: como é. Já a ideologia, seja em que domínio for, permite fantasiar o
que se quiser, até em contraste com a realidade.
A natureza
são as coisas como são. A ideologia é uma certa visão das coisas, um seu
determinado entendimento. A natureza é conhecida pela ciência. As ideologias
podem morar em diferentes áreas do conhecimento e do pensamento, havendo-as de
diferentes tipos, desde as mais sérias (ainda que com grandes divergências e
bulhas) até às não-honestas e charlatãs. A ideologia de género é das que faz
parte do domínio reservado do charlatanismo.
Para um homem
poder ser, afinal, mulher, ou uma mulher, homem – isto é, poder transitar-se de
um sexo para o outro – é fundamental implantar a ideia de que tudo são ideias.
O sexo não existe, é “atribuído”; e, como é “atribuído”, cada um pode atribuir-se
outro. Ao mesmo tempo, é decretado que o género também não existe determinado
por si mesmo, sendo mera construção social. Não será inerente ao respectivo
sexo: tudo são “atribuições”, podendo cada um autoatribuir-se o que quiser ou,
na linguagem da ideologia, aquilo com que se “identificar”. O binómio visível
“sexo mulher, género feminino” e “sexo homem, género masculino” é destruído e
pulverizado, declarando-se que cada sexo pode ser compatível com o género
díspar ou até com múltiplas outras variações possíveis, que o charlatanismo
ideológico não pára de multiplicar e carimbar. Uma espécie de black friday
do sexo e do género.
Ainda estou
para perceber para que servirá a ideologia de género, além de semear desordem
mental, confusão na sociedade. Tendo a olhá-la como vendaval passageiro: um
desvario contra a evidência científica das coisas, a que as pessoas se vão
sujeitando porque a ideologia de género se apoderou do comando social e
mediático, sendo incómodo contrariá-la, porque “parece mal”. Os defensores mais
vocais desferem frequentes ameaças e sonora gritaria, perante o predomínio social
das pessoas que não gostam de “meter-se em sarilhos” – a velha cultura do
respeitinho.
O que este
clima faz lembrar é o velho conto do “rei vai nu”: o soberano que se deixou
convencer por alfaiates que lhe impingiram novos trajes tão requintados que só eram
visíveis por pessoas inteligentes. Vaidoso, passou a passear-se nu, mas sem o
dizer, para não parecer burro; e também ninguém o apontava, ora por medo do rei,
ora para não parecer sem inteligência. O embuste foi quebrado pela criança,
que, na sua inocência, gritou a verdade que estava a ver, provocando admiração,
concordância, aplausos e risos de troça, enquanto o rei fugia de vergonha. Também
chegaremos a este dia triunfal sobre o logro da ideologia de género. Sente-se
isso um pouco por todo o mundo. As pessoas vão perdendo o medo da verdade e
despertando para ela. Mas ainda iremos penar até chegar a criança que,
finalmente, escancara a verdade e, sendo ouvida, nos devolve à simplicidade
objectiva das coisas e à sua natureza.
O |
homem Cro-Magnon e a mulher Cro-Magnon, que
nunca foram à escola, já sabiam, porém, há 50.000 anos, que as coisas são como
são; e, sem dificuldade, detectavam imediatamente, pela observação directa, se
cada nascido era menino ou menina e pertencia ao género macho ou ao género
fêmea, conforme é próprio da nossa condição humana e inerente a ela. Se hoje
pegássemos nos Cro-Magnon e os levássemos às nossas escolas para ouvirem as
teorias destas leis, concluiriam decerto que a escola moderna existe para
mentir sobre a realidade e formar crianças e jovens sobre a falsidade. Perguntar-nos-iam
para que é que servem estas “escolas”. Não conseguiríamos responder-lhes de
forma satisfatória. Na verdade, por que se ensina, mentindo com militância?
A ideologia
de género é mentira do mesmo calibre que o terraplanismo e o geocentrismo, com
a diferença de estar aparelhada com recursos de produção e divulgação muito
poderosos, buscando apoderar-se do poder total para impor a sua tese a cada um
de nós, começando pelas crianças. Uma teoria perversa, sem suporte no real,
manipuladora de abstracções, fantasias e aparências, que deve ser proibida nas
escolas, tal como se faz com essas outras ideias tolas de a Terra ser plana (e
não redonda) e o Sol girar à volta da Terra (em vez de o contrário).
É a segunda
selvajaria desta lei: não só afirma uma mentira, como a prega como doutrina
oficial nas escolas e, mais ainda, quer impô-la a todo o seu espaço vivencial e
circunstancial. As escolas e o seu ambiente dirigido tornam-se numa piscina
mental de falsidade.
D |
isto decorrem
as outras selvajarias da lei. Em primeiro lugar, a espantosa imposição das suas
determinações a todas as escolas, públicas e privadas, sem excepção, do
pré-escolar ao fim do secundário. Se já é problemático imaginar estas
orientações aplicadas a crianças e jovens dos 12 aos 16 anos, é de susto
imaginarmos o que será a sua aplicação a miúdos de tenra idade, até de muito
tenra idade. Perderam a cabeça – só pode ser isso.
Em segundo
lugar, em contravenção frontal do artigo 43.º, n.º 2 da Constituição, a lei
cria um magistério permanente de doutrinação contínua, designada de “acções e
sensibilização” alargadas a toda a comunidade, “sempre que possível em
articulação com organizações de promoção dos direitos das pessoas LGBTI+”. O modelo inspirador é o das célebres campanhas
de “dinamização cultural” do PREC de 1975, por que equipas militares, com uns
pregadores encartados, andaram pelas aldeias do Norte, Centro e Sul do país, a esclarecer
o povo ignaro sobre os conceitos, fundamentos e propósitos da revolução.
Passaríamos serões divertidos, se a RTP extraísse dos arquivos gravações destas
façanhas, que ora lembram Fellini, ora Cantinflas.
Em terceiro
lugar, a lei franqueia, com base no “género autoatribuído”, o acesso irrestrito
a competições desportivas do sexo oposto (assim como quanto a quaisquer
“actividades diferenciadas por sexo”), colocando as nossas escolas na linha da
frente do mais baixo e reles atropelo da ética desportiva e transformando-as,
por decreto, em Academia da Batota.
Em quarto
lugar, a lei desata a gloriosa revolução dos urinóis e balneários, abrindo a
corrida de cada “criança ou jovem, no exercício dos seus direitos e tendo
presente a sua vontade expressa [conforme à sua própria autodeterminação de
género], às casas de banho e balneários” que lhes apetecer. Assusta ver que os
deputados se preparam para carimbar esta enormidade, que, fonte de desordem, paródias
e conflitos nas escolas, representa risco acentuado sobretudo para as
raparigas, que ninguém deve negligenciar.
Em quinto
lugar, por uma linguagem repetitiva, ardilosa, entrelaçada, dando a ideia, por
vezes, de estar a dizer o contrário do que parece escrever, a lei monta um
intrincado aparelho de vigilância e denúncia, bem como de cerco dos pais,
habilitando a escola, nestes domínios sensíveis da formação pessoal de crianças
e jovens, a agir sem o concurso necessário dos pais e até contra estes. Isto,
onde acontece, é obviamente violação das normas constitucionais e de direitos
humanos consagradas internacionalmente que protegem a família e a criança. Mas
nem é por isto que me indigno. Indigno-me por ver a Assembleia da República do
meu país preparar-se para impor de motu proprio uma barbaridade deste
tamanho.
C |
laro que, há
muito, são conhecidos possíveis problemas de disforia de género, que, uma vez clinicamente
identificados, devem ser comunicados pela família à direcção das escolas, para que
tome as medidas indispensáveis ao cuidado e à protecção das crianças e jovens
de que se trate. E é também evidente que qualquer ocorrência de bullying
sobre crianças e jovens nesta situação deve ter resposta rigorosa e firme das
autoridades escolares e, sendo o caso, do sistema judiciário, sem necessidade
de qualquer lei adicional. Já é assim.
Diferente é a
propaganda da ideologia de género, inculcando a ideia de que “tu podes ser o
que quiseres e quando quiseres”, que pode ser fatal para crianças e jovens nas
idades mais sensíveis de formação, atraídas a mudanças – na linguagem
ideológica, “transições sociais de identidade e expressão de género” – que, de
outro modo, não quereriam e nem se lembrariam. A experiência de outros países mostra
o percurso perigoso dos bloqueadores hormonais e de procedimentos cirúrgicos
mutilantes, na onda de mudanças de género ou de sexo. E mostra também a
tragédia de jovens que, depois de reconhecerem o engano, querem voltar para
trás, para a sua natureza, e já não conseguem – de algum modo, ficaram marcados
para sempre.
Penso
convictamente que homem não pode ser mulher e mulher não pode ser homem. Por
muito que queiram e forcem, nunca deixarão por inteiro de ser o homem ou a
mulher que nasceram. Mas não me oponho minimamente a que um adulto que queira
muito mudar o faça, no exercício da sua liberdade, pelas razões que forem as
suas. É matéria da sua liberdade pessoal. Tão integrada na liberdade pessoal de
cada um que só o próprio o pode decidir sobre si mesmo e em quadro de
inquestionável maturidade física e psíquica. Ou seja, a transição e a mudança
não podem consumar-se, por qualquer forma, antes de o próprio ter a idade
mínima de 20 anos, talvez mais. E os pais (ou qualquer outro) não podem decidir
por ele – dada a irreversibilidade da mudança, a lei deve proteger a pessoalidade
e maturidade da escolha. Por fim, sobretudo nestes domínios, a escola não deve
ser campo de treino e de agitação ideológica. Em caso algum.
A |
s sete
selvajarias que nos interpelam ferem princípios constitucionais da maior importância.
Desde logo, a inviolabilidade da integridade física e moral das pessoas, que é
directamente atingida. Indigna, na novilíngua desta legislação, o descaramento
de afirmar a “protecção das características sexuais de cada pessoa” (obviamente
aquelas com que cada um nasce), quando o que se visa é, ao contrário, favorecer
o seu desrespeito e atropelo em favor de processos de “transição” de género e
de sexo. Há também o referido enfrentamento petulante da proibição taxativa de
programar a educação por directrizes filosóficas, políticas ou ideológicas,
como esta lei quer e organiza. Vê-se ainda o ataque às normas protectoras da dignidade
humana, gravemente aviltada naquelas que vêem o seu espaço de competição
próprio ou até lugares íntimos e privados invadidos por quem não pertence a
essas provas desportivas (ou equivalentes), nem a essas casas de banho e
balneários. Enfim, há o conjunto de normas de garantia dos direitos dos pais e do
seu primado na educação dos filhos, bem como de apoio e protecção da família, pisados
e maltratados por este regime jurídico. Tudo justificaria até a activação do
direito de resistência. E, na fórmula de Mário Soares, do direito à indignação.
Se esta é a
forma de a maioria absoluta PS se despedir, com seus compagnons de route,
ficamos a desejar-lhe derrota estrondosa a 10 de Março. Quem quer e faz coisas
destas, merece-a. Mas é tudo tão mau e tão perigoso que o melhor é esta lei
celerada não entrar sequer em aplicação: porque o Presidente da República peça
a fiscalização preventiva da constitucionalidade; e porque, a seguir, o
Tribunal Constitucional aprecie, confirme e declare a inconstitucionalidade
material. Seria um grande dia para as crianças e os jovens, assim como para os
pais, as famílias e as escolas. Nunca foi tão importante uma derrota deste
esquerdalhismo em delírio.
José Ribeiro e Castro
Advogado e cidadão
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