A lei das casas de banho não presta


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m meados de Dezembro, na véspera de a Assembleia da República aprovar a lei da ideologia de género nas escolas, o líder parlamentar do PS, Eurico Brilhante Dias, mostrou-se muito incomodado com as críticas: fustigou de “fanáticos” os que se opõem à lei. Aparentemente, respondia a críticas feitas, dias antes, por um grupo de pais, professores, directores e psicólogos ao texto final dos projetos de PS, PAN e BE, tomando posição sobre a legislação anunciada, “para a qual ninguém mandatou ninguém, não estava no programa de nenhum partido e é abusiva e perigosa”.

Brilhante Dias atalhou que o articulado “não diz em parte alguma casas de banho mistas” e apelou a olhar o tema “com a seriedade necessária”. Porém, a crítica do referido grupo de pais, professores, directores e psicólogos nunca fala de “casas de banho mistas”, nas declarações mais recentes e na petição pública que circula e para que remetem. São, aliás, inúmeras as posições tomadas contra esta lei, como a minha própria, que, em lugar algum, aludem a “casas de banho mistas”. O líder parlamentar do PS desconversou. Esqueceu-se da “seriedade necessária”, até porque a própria simplificação populista das “casas de banho mistas” é fácil de entender.

Do que se trata é de, nas escolas, facultar o acesso às casas de banho do sexo oposto por aluno ou aluna que declare identificar-se com o género oposto ao sexo natural: um rapaz que declara identificar-se com o género feminino acede às casas de banho das raparigas; uma rapariga que declara identificar-se com o género masculino acede às casas de banho dos rapazes. O mesmo se passará com os balneários. Estes caos ou paródia gigantescos são o que consta do artigo (de redacção medíocre) que Brilhante Dias leu e fingiu não entender no seu conteúdo e efeitos: “As escolas devem garantir que a criança ou jovem, no exercício dos seus direitos e tendo presente a sua vontade expressa, aceda às casas de banho e balneários, assegurando o bem-estar de todos, procedendo às adaptações que considere necessárias para o efeito.”

Traduzindo: (1) a lei cria em cada criança ou jovem o direito subjectivo de aceder às casas de banho e balneários que queira, em conformidade com a sua identidade de género autoatribuída, seguindo-se, acima de tudo, a sua vontade expressa; (2) todas as escolas têm de, em posição subordinada, garantir o exercício destes direitos inerentes à autodeterminação de género e desta emergentes; e (3), aberto este imbróglio, caberá às escolas assegurar “o bem-estar de todos” e proceder às “adaptações que considere necessárias”. Os directores de escolas e agrupamentos de escolas, que, como todos sabemos, já tinham pouco que fazer, vão-se defrontar com um problema adicional criado pelo legislador tão “generoso”, quanto lunático. Recordando-nos dessas nossas idades e da dinâmica jovem, não é difícil antecipar choques e abusos, seja por perturbação de género induzida, seja por pândega ou gesto de afirmação. Lembram-se dos Climáxico? Isso são os Climáxico sem lei a favor. Imaginem, agora, os Climáxico a esgrimir a lei do seu lado.

 

O

 líder parlamentar do PS devia entender, espontaneamente, a inquietação e oposição que este cenário provoca em muitos pais, em lugar de os desconsiderar. E intuir rapidamente que isto não pode ser. Se a lei visasse, como Brilhante Dias disse, cuidar de “pessoas, de cidadãos, de famílias que precisam de facto de um tratamento especial, de serem consideradas, sem com isso ferir naturalmente os direitos de outros”, a lei teria feito isso mesmo: cometeria a obrigação de as escolas acomodarem situações especiais dentro das possibilidades existentes, sem criar o direito subjetivo de quem quer que fosse. Mas a lei escolheu fazer desta maneira, porque é isso mesmo que a lei quer, de acordo com o propósito dos seus mentores: afirmar a “autodeterminação de género” e levá-la por diante revolucionariamente, seguindo a metodologia do “aqui vai disto”.

A lei da autodeterminação de identidade de género nas escolas é propícia a gerar conflitos e confusões, porque é isso que os autores querem, como é próprio das leis de confrontação social. Quer substituir o entendimento comum, com base científica irrefutável, da humanidade composta de homem e mulher, segundo o cariótipo natural que o determina, por uma fantasia delirante de cada um ser o que quiser: a tal “autodeterminação”. E olha as escolas, sem excepção, não por causa das crianças que têm problemas (talvez 200) e necessitam de ser cuidadas, mas por causa de todas as outras (1.600.000) a que querem levar a “nova doutrina”, segundo o princípio de que “de pequenino é que se torce o pepino”.   A questão das casas de banho e balneários é um mero pormenor que, pelo pitoresco, se colou como imagem de marca de uma lei má, muito mais ampla e mais perversa, como procurarei mostrar noutro texto.

Procurando “fanáticos”, Brilhante Dias bem podia olhar à sua bancada ou outras da esquerda que promovem esta legislação. No dia da aprovação do texto final, em plenário, a deputada Isabel Moreira, carregou no dramático: “não mais um grupo muito pequeno [de crianças e jovens] que precisa da nossa protecção colectiva para existir, para não morrer, mas jovens e crianças que, imagine-se, querem entrar pelas casas de banho adentro para violarem mulheres.” E disparou ainda: “cá está a extrema-direita pronta para fazer crer à comunidade que os grandes problemas nacionais, dramas colectivos como a crise da banca de 2008 tiveram como culpados imigrantes, negros, gays, lésbicas, ou um jovem trans. Toda a gente sabe.”

Não ouvi a ninguém, a não ser à deputada que assim falou, acusar que, por esta lei, se iria violar mulheres nas escolas. Nem ouvi quem quer que fosse, a não ser também à senhora deputada, culpar “imigrantes, negros, gays, lésbicas, ou um jovem trans” de serem culpados da “crise da banca de 2008”. É o modo estafado da ironia negra, para esconder falta de argumentos sérios e atrair o odioso sobre as opiniões contrárias. Tudo rematado pela habitual “fobização” da conversa, o tique autoritário para trancar o debate: “Em que trevas anda tanta transfobia?” Para os fanáticos da lei, os outros não têm opiniões, mas “fobias”. Se isto não é extremismo…

 

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 sociedade civil tem-se agitado, inquieta, até porque há partidos políticos que têm obrigação de ser mais vigorosos, firmes e claros nesta matéria da ideologia de género, mas têm ficado muito aquém das suas obrigações, possibilidades e responsabilidades. Boa parte da sociedade e da cidadania tem-se sentido abandonada. Por isso, têm circulado várias petições que exprimem directamente o desagrado e a rejeição. Uma delas, que também assinei, “Não queremos que as crianças e jovens sejam obrigados a partilhar os WCs e balneários com pessoas fisicamente do sexo oposto”, foi assinada por 54.062 cidadãos (actualize, aqui, o respectivo número).

Por que não os escutou, nem escuta a Assembleia da República?

O coro de críticas suscitado por esta lei não surpreende. O que é surpreendente é que ainda não tenha subido mais de tom e de vigor, face à surdez e ao facciosismo em que se entrincheiram os seus promotores, recorrendo frequentemente à negação. A negação surte ainda algum efeito, por uma razão simples: são tão excessivas e extremistas as medidas da lei, que custa até acreditar que seja verdade. Os autores não hesitam em faltar sistematicamente à verdade. De novo na questão das “casas de banho e balneários”, a deputada Isabel Moreira afirmou, no plenário: “nada na lei diz que cada criança e jovem entra onde quer.” Não é verdade. É uma falsidade, como já citei acima. A lei, na onda febril do empoderamento, constitui em cada criança ou jovem esse direito subjectivo, prevalecendo “a sua vontade expressa”. Clarinho, clarinho. Se a Assembleia não o queria, não o teria escrito. Se o escreveu é porque o quer. A lei não se importa com perturbar a paz escolar. A lei, na verdade, não presta.


José Ribeiro e Castro
Advogado e cidadão

OBSERVADOR, 6.Janeiro.2024

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