As últimas do género: a lei malandra

 

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ste remate da legislatura, precipitado pela dissolução da Assembleia da República, revelou altíssimo interesse pela legislação em ideologia do género. Para este Parlamento, é alta prioridade nacional à frente de outras que foram preteridas no tempo de atenção política e de debate legislativo e decisão. Pobreza? Não interessa. Seca? Não conhecemos. Injustiças salariais na função pública? Não queremos saber. Abandono do interior? Não estamos a ver.

Só nestes dois meses, com a Assembleia já politicamente dissolvida, os deputados apressaram-se a aprovar três novas leis nas matérias de ideologia do género e orientação sexual. Já tratei de uma, na área da educação, em artigos anteriores: Esta lei é uma selvajaria; A lei das casas de banho não presta; O legado do PS contra a escola e a família. No final de tudo, foram aprovadas mais duas leis: uma, no âmbito do Registo Civil, sobre o regime do nome pessoal (saiu da Assembleia como o Decreto da Assembleia da República n.º 132/XV); outra, nas “terapias de conversão” e sua criminalização (o Decreto da Assembleia da República n.º 133/XV). Abordo, hoje, a primeira. Deixo a segunda, mais grave, para outro artigo.

O que faz a nova lei no Registo Civil? O artigo 1.º diz que (a) “consagra o direito à opção por um nome neutro” e (b) “elimina a exigência de consentimento de terceiros para a realização de averbamentos aos assentos de nascimento e de casamento”. Esta é, sem pudor, a assinatura de uma lei sonsa, porque não é bem isto que faz. E é também tecnicamente deplorável.

 

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 lei é uma lei de alteração do Código do Registo Civil, isto é, introduz modificações neste outro diploma e só lendo tudo, no quadro do Código alterado, podemos perceber o que foi feito. Ora, o que vemos? Vemos que, apesar de a lei de alteração dizer que introduz a “opção por um nome neutro”, em nenhum sítio do Código consta exactamente esta alteração: não há qualquer previsão do tal “nome neutro”, nem definição do regime preciso do seu cabimento. Os interessados e os que lidam profissionalmente com estas matérias não saberão de nada pela leitura do Código; terão de recorrer à lei de alteração para conhecer o que se pretendia – algo que, na prática corrente, ninguém faz e que, por isso, é tecnicamente medíocre.

Referindo-se ao nome a registar, a nova lei limita-se a apagar do texto do Código (artigo 103.º) a expressão “não devendo suscitar dúvidas sobre o sexo do registando” e nada acrescenta sobre o afamado “nome neutro”. Mas, ao agir desta forma, a lei acaba por fazer muito mais do que disse querer fazer. Não só pode ser atribuído um “nome neutro” (se o oficial do registo consultar o artigo 1.º da lei XPTO e fizer essa interpretação), como passa também a poder registar-se um nome feminino em pessoa do sexo masculino e um nome masculino em pessoa do sexo feminino. Tudo isto sem qualquer processo de mudança de género ou de sexo. É ir ao registo e já está. É uma “lei malandra”.

Pior! A lei, tal como é alterada, permite que, logo à nascença, quem regista uma criança lhe atribua o nome que entender, sem qualquer padrão: “Xis”, seja menino ou menina, ou com problemas de definição sexual; e também “Mário” a uma menina ou “Sofia” a um menino. Além da barafunda administrativa e social que estas normas vão gerar, constituem um atentado aviltante aos direitos fundamentais da criança, à sua personalidade e identidade pessoal, ao ver-se atribuída, à força, um nome de género não correspondente ao seu sexo natural, bem definido, anormalidade que terá de carregar por toda a infância e juventude, senão para a vida.

Qualquer pessoa de senso mediano é capaz de entender que uma barbaridade destas atenta, em altíssimo grau, contra o superior interesse da criança, que é o critério supremo de ponderação nestas matérias, antes de se decidir. Não acredito que possa haver, em legisladores, incompetência tão grande para isto acontecer. Por isso, é minha convicção que isto foi assim escrito de propósito. Só surpreende não ter sido já vigorosamente denunciado. Por esta lei, obcecada pela ideologia de género, a criança, na generalidade, é completamente deixada para trás. em matéria dos seus direitos humanos.

Este regime, construído a martelo, cria outras incongruências no regime dos registos. Por exemplo, lendo o artigo 104.º, verificamos que a única causa de alteração do nome que poderia caber num caso destes seria: “A alteração do nome próprio resultante da mudança da menção do sexo.” Ou seja, imaginemos que um rapaz, a quem, à nascença, puseram o nome de “Sofia”, pretendia mudar para um nome masculino. Seguindo a filosofia resultante desta lei, só poderia nome masculino se mudasse de sexo para mulher. Nunca mais acertaria o passo.

 

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utra parte da lei aplica-se a casos de “mudança de sexo e a consequente mudança de nome próprio”. O texto é habilidoso. É construído para maltratar e desconsiderar titulares principais de direitos de personalidade. Como referi, a lei anuncia eliminar a “exigência de consentimento de terceiros” para averbamentos a “assentos de nascimento e de casamento”. Quem serão esses “terceiros” abelhudos que tinham de dar consentimento?

Não encontramos nenhum terceiro. Só encontramos nada mais, nada menos do que os próprios titulares dos assentos de nascimento e de casamento, a que se quer fazer um averbamento da mudança de sexo e de nome de outra pessoa. Trata-se, por exemplo, de um pai que quer averbar na certidão de nascimento dos filhos que passou a ser “mulher” e a ter outro nome; e que quer averbar os mesmos factos na certidão de casamento comum com a, provavelmente, ex-mulher.

A lei de 2011, que introduziu o regime aplicável aos casos de mudança de sexo, fixou a necessidade de consentimento dos titulares dos assentos, o que bem se justifica. Se estão de acordo, não há problema com o averbamento. Se não estão de acordo, só não há problema, se for respeitada a vontade do titular que não quer. Nem se percebe, diga-se de passagem, qualquer utilidade relevante para quem mudou de sexo e nome teimar em agir à força contra a sensibilidade e a vontade do filho ou do ex-cônjuge. Só pode ser uma pirraça ideológica, ou proteção de uma qualquer hostilidade pessoal. Não conheci quaisquer queixas relevantes na prática do regime de 2011. E a mudança do sexo e do nome de alguém releva para o presente e para o futuro, não releva para o passado. É uma insustentável mudança de regime jurídico.

Aqui, aliás, a lei faz outra malandrice. Parece coisa insignificante, mas tem um alcance que não foi anunciado e é escondido. Opera pela simples mudança de local da palavra “maiores” na frase da lei. Para fazer averbamentos da mudança de sexo e do nome do pai ou da mãe no assento de nascimento do filho, a lei, hoje, diz: aos “assentos de nascimento dos filhos maiores da pessoa que mudou de sexo, a requerimento daqueles”. A nova lei fixa: aos “assentos de nascimento dos filhos da pessoa que mudou de sexo, a requerimento daqueles, quando maiores, ou do próprio”.

No regime em vigor, o averbamento só pode ser feito, quando o filho seja já maior – tem de concordar e é ele próprio que requer o averbamento ao seu registo de nascimento. No regime da nova lei, o averbamento passa a poder ser feito, enquanto os filhos são menores. É de novo uma “lei malandra”. E, maiores ou menores, não são tidos, nem achados; e o outro progenitor também não.

Aquele que mudou de sexo (ou, melhor dito, de menção de sexo) e de nome passa a ter livre-trânsito, dado por esta lei, para abusar do poder paternal e entrar pelo registo a impor um averbamento ao assento de nascimento do filho, sem curar da sua sensibilidade e vontade. Pura prepotência. A nova lei tem, aliás, um deslize de linguagem ao usar a expressão “ou do próprio”. O verdadeiro “próprio” é o titular do assento, o filho; não é o “próprio” da mudança de sexo. O uso da palavra “próprio” confirma onde os deputados querem colocar o poder total: naquele que muda de sexo e de nome.

Nesta alteração ficaram para trás – e são arredados pelo legislador de matéria que lhes interessa pessoalmente – os filhos e os ex-cônjuges de quem mudou de sexo e de nome. Pode não só modificar os seus próprios documentos (o que está certo), mas também os de filhos, maiores ou menores, e ex-cônjuges (o que está errado e constitui uma violência inconstitucional).

Esta lei danifica seriamente a nossa ordem jurídica. Tem de ir para estudo. Importa voltar para trás.


José Ribeiro e Castro
Advogado e cidadão

OBSERVADOR, 18.Janeiro.2024

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