Os pupilos de Pedro Nuno

 

E

stava escrito, desde a noite eleitoral nos Açores, domingo passado. Pedro Nuno Santos disse e mandou dizer. Vasco Cordeiro acatou: o PS vai votar contra o governo Bolieiro saído destas últimas eleições regionais. Este voto é sinal do sentimento que, domingo, era evidente em rostos socialistas: ressabiados. Quatro dias até à quinta-feira da decisão política não chegaram para o PS digerir a derrota. Por isso, mobilizou-se para impedir o novo governo regional de poder sequer começar o mandato.

O mesmo voto de preconceito e reprovação é sinal da dependência e fidelidade dos dirigentes socialistas açorianos ao reitor no Largo do Rato, em Lisboa. No seu anúncio, fugiu a boca para a verdade a Vasco Cordeiro, quando disse que «há política nacional a mais e Açores a menos na gestão da situação resultante das eleições de 4 de fevereiro.» Foi tímido, porém, e falso, ao imputar a “política nacional a mais” à coligação PSD/CDS/PPM. Certamente pensava na actuação do PS e do Chega: política nacional a mais, Açores a menos. A unanimidade anunciada é a inconfundível assinatura da obediência – obediência férrea à reitoria nacional.

O mesmo voto contra o novo Governo Bolieiro é, ainda, a confirmação pública que faltava da objectiva concertação estratégica que existe entre PS e Chega, no país. O Chega dá jeito ao PS para criar problemas ao centro e à direita, dificultando-lhe a formação e sustentação de governos e perturbando-lhe o campo de acção. E o PS, na forma por que escolhe governar e ao deslocar-se para a esquerda radical, também dá jeito ao Chega: facilita a vida ao populismo.

Esta aliança objectiva é fenómeno conhecido, analisado desde há muitos anos em França, com Mitterand no PSF e o Front National de Jean Marie Le Pen. Depois, viu-se noutros países, após a nova maré dos populismos emergir. Em Portugal, a dança PS/Chega tem momentos notórios. Não é uma valsa; mais um tango, com requebros bruscos e, às vezes, aquela sonoridade dramática. Faz lembrar um clássico – La Cumparcita –, soando à relação entre comparsas. Em 22 de Março de 2023, surgiu muito evidente num debate parlamentar com o primeiro-ministro António Costa, na interpelação que o deputado André Ventura lhe fez. Neste pequeno vídeo de dois momentos (https://youtu.be/fLIcsJCzQo0), identificarão por certo o mesmo que eu vi: cumplicidade. Não está ali a relação de dois políticos que se diabolizam ou rejeitam. Mas cumplicidade humana, genuína, transparente. O marco que faltava é este, agora, nos Açores. Pedro Nuno encomendou, Vasco Cordeiro entregou. O Chega logo inchou, a seguir, para querer chegar onde nunca estivera.

 

V

asco Cordeiro mostra continuar infectado pelo erro de leitura (à direita) das eleições nacionais de 2015 (como várias vezes tenho chamado a atenção) e que ele também cometeu nas regionais de 2020 – e insiste. É o vírus da confusão de eleições legislativas com eleições municipais – nestas, ganha o mais votado; naquelas, não necessariamente.

Disse, agora, o secretário-geral dos socialistas açorianos: «quando o PS-Açores vence as eleições, como aconteceu em 2020, o Chega serve ao PSD-Açores para tomar o poder.» São vários erros de palmatória: o PS-Açores foi o mais votado em 2020, mas não venceu as eleições. Nessa eleição, formou-se uma maioria parlamentar à direita, que, em caso algum, permitiria ao PS governar. PSD, CDS e PPM, nesse contexto, formaram uma coligação de governo, que, por outros acordos parlamentares, teve o apoio para governar até recentemente.

Isto é muito comum nos regimes de governo com responsabilidade parlamentar. Em Portugal, aconteceu em circunstâncias diferentes, a nível nacional e nas Regiões Autónomas. Foi logo o I Governo Constitucional, de Mário Soares, em 1976/77. Foi o X Governo Constitucional, de Cavaco Silva, em 1985/87, que governou enquanto dispôs da tolerância do PRD. Foi o XIII Governo Constitucional, de António Guterres, em 1995/99, que governou toda a legislatura em minoria, com tolerância de CDS e PSD. E foi o XVIII Governo Constitucional, de José Sócrates, em 2009/11, que governou em minoria até ao chumbo parlamentar do chamado “PEC 4”. Na Madeira, há o ainda actual Governo, viabilizado por um acordo parlamentar. E, nos Açores, foi o Governo Regional, de Carlos César, que governou em minoria toda a legislatura de 1996/2000, graças sobretudo ao favorecimento parlamentar do CDS.

Vasco Cordeiro sabe-o muito bem. Só finge que não sabe. Por isso, é a si mesmo que cabem inteiramente as palavras que disparou contra o PSD: é a posição dos socialistas que «é não só politicamente ridícula, como intelectualmente obtusa, desonesta e insultuosa.»

Treslê ainda a realidade, quando acusa o PSD de «arrogância, ao não querer ceder à chantagem do Chega, mas considerar que o PS-Açores está obrigado a ceder à chantagem do PSD-Açores.» Não é assim. A “chantagem” apenas fez brilhar os olhos dos socialistas, azedos com a derrota. Por isso, foi o PS que decidiu ceder e aderir à chantagem do Chega, procurando dar-lhe a potência política que, sozinha, não tem. Só o PS podia fazê-lo – e foi isso que escolheu fazer: dar força ao Chega. As palavras que Vasco Cordeiro usa não podiam ser mais claras do pensamento que esconde: o seu compincha e instrumento é o Chega.

 

C

ordeiro justificou, ainda, que viabilizar o governo AD significaria que «o principal partido da oposição seria o Chega e o PS seria a muleta da coligação», levando à «subversão total e absoluta da vontade dos açorianos». Cordeiro só pode estar a brincar connosco. Ecoa todas as linhas da cartilha de Pedro Nuno Santos, que, nem de propósito, as repetiu no debate com Rui Tavares, anteontem, exibindo de quem é o senhorio da cartilha açoriana.

Viabilizar pela abstenção a investidura de um governo sem maioria absoluta não significa deixar de ser oposição. Nem sequer impede quem se absteve de liderar a oposição, se o quiser e sempre que o quiser. Há mil e um instrumentos para assinalar oposição e liderança da oposição, sem com isso derrubar o governo. Com a abstenção apenas se protege a democracia, deixando governar quem ficou em melhor posição. Todos os exemplos que dei acima de governos com maioria relativa são exemplos disso mesmo.

Vasco Cordeiro finge ser um menino aprendiz: acrescentou que viabilizar o governo Bolieiro criaria a «obrigação política de viabilizar igualmente os orçamentos anuais e os planos de investimento do governo.» Isto não é mesmo verdade, não há quem o não saiba. A cada orçamento e plano abre-se nova oportunidade política, novo momento definidor, em que tudo depende da capacidade negocial do governo e das circunstâncias políticas gerais. Todos guardam a sua liberdade. Foi sempre assim. É sempre assim.

O que é invulgar, Vasco Cordeiro sabe-o bem, é inviabilizar uma legislatura inteira ou incliná-la para os extremos. Isso é que corresponde à subversão total e absoluta da vontade dos açorianos. Ninguém pode levar a sério o líder do PS-Açores, que não tem argumentos. O seu único argumento não é açoriano; é Pedro Nuno.

 

A

queles que querem defender a democracia do populismo radical ficaram a saber, de uma vez por todas, que não podem contar com este PS. Este PS só se afasta dos populistas se for ele a governar; e governa tão mal, tão mal que, afinal, os alimenta.

A posição de Pedro Nuno Santos é o que este movimento “açoriano” mostra: a deliberada liquidação do Centro político, espaço aberto. O PS, em 2015, derrubara o “muro mental” à sua esquerda. Agora, o PS faz mais: agarra nesse muro que estava à esquerda e coloca-o em cima do Centro. O Centro, no nosso sistema político, deixa, assim, de ser um espaço de relação, de diálogo, de possível concertação; passa a ser fractura, muro de antagonismo radical, um fosso em que tudo é feito impossível e se afunda. Foi isso que Pedro Nuno Santos mandou Vasco Cordeiro fazer; e este, qual cordeiro, fez.

Terá imensas consequências para o regime. Enquanto assim for, o PS não será mais aquele “partido da democracia” que concitava ampla simpatia, mesmo fora dos seus partidários. O PS será apenas o partido dos seus interesses, em que já se vinha transformando. Diversamente daquele partido na linha da frente contra todos os extremismos, que marcou o prestígio nacional consolidado em 1975, servir-se-á dos extremismos sempre que lhe convenha. 50 anos depois, Pedro Nuno Santos destruiu o PS de Mário Soares, na imagem e na memória que tínhamos dele. Agora, é o tempo dos flibusteiros. Morreu a passada grandeza e foi a enterrar.

 

S

e eu estivesse na posição da coligação PSD/CDS/PPM nos Açores, não estaria muito preocupado. Continuaria na linha que José Manuel Bolieiro anunciou na noite eleitoral: a AD apresenta-se na Assembleia com um governo e um programa, para governar durante a nova legislatura em maioria relativa. É esse mandato que recebeu; é esse mandato que deve cumprir. Se houver partidos da oposição que queiram sabotar e derrubar logo o governo, terão de assumir essas responsabilidades. Normalmente, os eleitores não gostam. Punem.

A AD não tem de atacar o PS, nem o Chega. A AD não tem de atacar ninguém. Tem de seguir o seu mandato, apresentar suas ideias e executar suas propostas. Só deverá responder a ataques que lhe façam, mas a sua agenda não é a zaragata. A sua agenda é o seu programa e o trabalho pelos Açores e com os açorianos. A AD tem de ser diligente no cumprimento e na solicitude.

Ouvimos o PS, veremos o seu voto na Assembleia. Do Chega já escutámos de tudo: que sim, que não, que talvez. Do líder regional, ouvimos desde «conversas informais» (desmentidas) à exigência de entrar no governo com simultâneo afastamento dos membros do CDS e do PPM (sem dúvida, o sinal de “maturidade” e “credibilidade”); e do líder nacional, a garantia peremptória ao Expresso: «O Chega nunca se juntará ao PS.» Já sabemos: do Chega só é verdade o que faz. Se, na hora de votar o programa, PS e Chega, de braço dado, chumbarem o governo, este seguirá em gestão. Vasco Cordeiro e José Pacheco talvez se abracem, juntos com o BE. Será um momento marcante para todos vermos: PS/Chega/BE, unidos venceremos.

Quando chegarem as próximas eleições, agora ou mais tarde, serão os açorianos a ajustar contas. Desde 2012, o PS-Açores tem vindo sempre a descer: 31 deputados… 30… 25… 23. Talvez venha a ganhar 21 ou, quem sabe, 19. A glória da parceria com Chega e BE frutificará.


José Ribeiro e Castro
Advogado e cidadão

OBSERVADOR, 11.Fevereiro.2024

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