Sim, uma confusão de que não precisamos
O |
artigo “Uma
confusão de que não precisávamos”, publicado, ontem, no OBSERVADOR, impeliu-me
a trocar ideias com Rui Ramos, autor por quem tenho estima, admiração e
respeito. Mas não concordo com a opinião que manifestou.
Concordo com
o “lead” do artigo: «se Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos acreditam
mesmo nas ideias que expuseram (…), não faz sentido um apoiar o governo do
outro.» Porém, o artigo contribui para a confusão entre “apoiar” e
“viabilizar” e deixa na sombra outra confusão entre “maioria absoluta” e
“maioria relativa”. Concordo com o título, ao verberar «uma confusão de que
não precisávamos», mas não posso deixar de notar que o texto contribui para
ela.
O raciocínio
subjacente ao quadro apresentado por Rui Ramos estaria certo se o regime
constitucional exigisse aos governos disporem sempre de apoio parlamentar
maioritário. Exigisse, por exemplo, que o Presidente da República só nomeasse
primeiro-ministro quem tivesse endosso de uma maioria parlamentar absoluta. Ou
exigisse que, na Assembleia da República, o Programa de Governo fosse sempre
votado e aprovado por maioria absoluta. Bem sabemos que não é assim. E não é,
por boas razões do nosso sistema democrático: uma, o sistema eleitoral não ser
maioritário, mas proporcional; outra, além disso, o sistema consentir tanto
governos com maioria absoluta, como governos com maioria relativa.
Não há qualquer
novidade a este respeito nestas eleições. O que se passa é o que sempre se
passou desde 1976. Tivemos governos maioritários, quer de um só partido, quer
de coligação (pré-eleitoral ou pós-eleitoral) e de acordos parlamentares
alargados. Tivemos governos minoritários do PS e do PSD. E tivemos três
governos de iniciativa presidencial.
O que mostra
e ensina este quadro? Isto: quando não há maioria absoluta parlamentar
resultante das eleições ou de acordo pós-eleitoral, os partidos ou coligações com
maioria relativa podem formar governo e governar, desde que, no concreto quadro
político parlamentar, exista maioria de consentimento ou de tolerância. Basta
isto. Se houver obstrução total no resto do Parlamento, não poderá haver
governo e ir-se-á para novas eleições. Mas, havendo de parte da oposição apenas
oposição e não obstrução, o governo inicia funções e pode governar enquanto as
condições políticas se mantiverem. Sabemos que estes governos têm condições
teoricamente mais frágeis. Mas, sendo expressão democrática das eleições, devem
poder governar. Há casos de governos de maioria relativa a durar toda a legislatura
(António Guterres, em 1995/99). Assim como há governos de maioria absoluta,
eleitoral ou só parlamentar, que, por factores vários, não concluíram o mandato
todo (Balsemão, Durão Barroso, Santana Lopes e, em 2022/24, António Costa).
Nesta
ponderação política, sobretudo se há bipolarização aguda, entra em conta o
facto de a maioria parlamentar ser à esquerda ou à direita. O nosso sistema
democrático, desde 1976, fala claro como um relógio suíço: se há maioria de
esquerda, governa o líder do maior partido à esquerda (PS); se há maioria de direita,
governa o líder do maior partido à direita (PSD). E houve dois casos que
poderiam também ser lidos como de maioria ao centro.
Só se abriu
confusão nos espíritos pelo erro de leitura (à direita) dos resultados
eleitorais de 2015. Ainda hoje me custa entender como foi possível teimar que o
facto de ser o mais votado nas urnas poderia impor um governo minoritário à
direita em cima de um Parlamento com maioria de esquerda. A ideia esbarrava na
realidade e, como contrassenso democrático, não vingou. Mas a confusão nunca
desapareceu por inteiro. Ainda anda por aí. Porém, a realidade é a realidade. E
desenrola-se como sempre foi.
C |
abe ver,
agora, outra questão essencial: a diferença entre apoiar e viabilizar
um governo não é uma nuance; é diferença política substancial. Quem apoia vota
a favor. Quem viabiliza não vota contra, nem a favor: normalmente, abstém-se.
Esta
manifestação tem dois tempos: primeiro, na investidura parlamentar do governo;
segundo, noutras votações fundamentais que ocorram ao longo da legislatura, com
destaque para o Orçamento de Estado. Na investidura, a Constituição não exige a
votação do Programa de Governo, pelo que a abstenção pode começar por aqueles
que não obstruem e viabilizam não apresentarem moção de rejeição; e, depois,
caso outros a apresentem, absterem-se na votação. Chegados ao teste anual do
Orçamento, o quadro é variado, pois os debates orçamentais são mercado aberto para
inúmeras propostas. Mesmo governos com maioria absoluta negoceiam os
orçamentos, sem afectar linhas fundamentais, mas dando sinais de abertura e
diálogo, onde possível e importante. No momento das votações na generalidade e
global final, o teste da viabilidade surge de novo; e, nas oposições, o voto que
permite a continuidade do governo não tem de ser a favor, mas somente a
abstenção. Afinal, o que quer dizer a abstenção? Quer dizer isso mesmo: que não
se apoia o governo, mas que também não se quer derrubá-lo.
Rui Ramos
escreve que, do debate entre Pedro Nuno e Montenegro, sobrou «uma pergunta
que deve parecer bizarra: saber se um deles está disposto a apoiar o governo do
outro.» Podemos todos estar descansados: nenhum vai apoiar o governo do
outro. A questão é tão-só “viabilizar”. Rui Ramos acrescenta: «se Montenegro
e Santos querem sinceramente governar segundo as ideias que expuseram, não faz
sentido para nenhum deles viabilizar o governo do outro.» Ora, isto não
corresponde à verdade da política. Já aconteceu vezes sem conta em Portugal (e
no mundo inteiro, em sistemas de governo semelhantes) e continuará a acontecer.
Muitas vezes,
a viabilização não envolve sequer qualquer acordo político; antes traduz o
próprio interesse dos partidos que se abstêm. Foi assim com o arranque do primeiro
governo Soares, em 1976. E até 2015, os partidos à direita do PS que viabilizavam os
governos deste, abstendo-se, exerciam o interesse próprio de não deixar o PS
refém da sua esquerda (PCP e BE). E, por vezes, eram também partidos à esquerda
do PS que se abstinham, porque não queriam empurrá-lo para a direita.
A
viabilização de um governo por abstenção não envolve parceria. Quem se abstém
não faz necessariamente um favor ao governo, mas interpreta e aplica o seu
próprio interesse. Afirma como quer conduzir a sua oposição. De bota-abaixo? Ou
com responsabilidade?
V |
amos, agora,
directos ao assunto. Haverá tabu de Luís Montenegro? Não, não há qualquer tabu.
Não quer responder; e não o deve fazer, porque a questão em que há dúvidas não
é realmente para si. Em abstracto, só haveria uma circunstância, em que a AD
poderia ponderar reconhecer um governo PS: este, como em 2015, ser o mais
votado dentro da maioria de esquerda. Mas, neste caso, a imaginada viabilização
pela AD não faz o menor sentido: nem político, nem matemático. A maioria de
esquerda trata da maioria sozinha, sem mais ninguém fazer falta.
Sejamos,
portanto, claros: no estado do problema, não é Luís Montenegro que tem de
esclarecer o que quer que seja. Quem tem de falar claro, são outros dois
actores de que o artigo de Rui Ramos, por sinal, esquece um: Pedro Nuno Santos
e André Ventura.
Sobre o líder
do PS e suas piruetas, gincanas, cambalhotas, curvas e contracurvas, já tudo
foi dito. Idem, quanto a Vasco Cordeiro nos Açores. E, quanto a André Ventura e
Chega, tem sido igual: na questão do
governo AD, já disse tudo e o seu contrário, mais o diferente e o contrário do
diferente. Já disse que exigiria acordo, assim como que não exigiria acordo. Já
disse que só com participação no governo, assim como que não exigiria ministros.
Já disse mais isto, e mais aquilo, e mais aqueloutro. Nos Açores, tem sido
igual, com o líder regional do Chega a acrescentar a ideia de estar no governo
com o PSD, excluindo membros do CDS e do PPM. Em suma, o tabu é de PS e Chega: tabu
imerso em densíssimo nevoeiro. Ambos falam sobre o tema, mas não têm, nem revelam
real posição política. É só falatório.
Há apenas
duas questões de que fazem falta as respostas que fazem faltam. De Pedro Nuno
Santos, importa saber isto: havendo maioria à direita e estando a AD em posição
de formar governo, sozinha ou com a IL, vai o PS abster-se, viabilizando esse
governo, ou vai deitar-se na trincheira de tiro com o Chega, para o obstruir e
abater? E de André Ventura, é fundamental saber isto: havendo maioria à direita
e estando a AD em posição de formar governo, sozinha ou com a IL, vai o Chega
abster-se, viabilizando esse governo, ou vai deitar-se na trincheira de tiro junto
com o PS e toda a geringonça, para o impedir e derrubar?
A pergunta não
é um peditório. Cada um deve decidir sempre de acordo com o seu critério e a
sua natureza, ponderando o interesse próprio – e também, é claro, o interesse
nacional, que a todos julga. Se decidirem bem, a AD nem lhes fica a dever nada,
mas o país provavelmente. Se decidirem mal, é o país que cobrará, não será a AD.
Em democracia, é sempre assim. Não é preciso confundir.
Nada destes
assuntos é demasiado dramático. A consequência de obstruir e derrubar governos legítimos
é ir para eleições dirimir a questão. E, aí, cada um levará prémio ou castigo, na
dose e justa medida que lhe couber, no juízo dos cidadãos.
José Ribeiro e Castro
Advogado e cidadão
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