Aquela terça-feira louca em S. Bento
O dia de ontem, na Assembleia da República, ficará provavelmente
conhecido, na história parlamentar, pelo título que escrevo. Já houve, no
passado, outras eleições difíceis para Presidente ou para a Mesa, mas nunca um
circo de comédia e malabarismos como o que o país seguiu com espanto,
perplexidade e troça.
Ontem de manhã, estive por acaso na Rádio Observador, comentando no “Contra-Corrente”,
a prevista eleição da Mesa. Lidas e ouvidas as notícias, tudo levava a crer que
fosse assunto pacífico. Estava a causar desconforto no PS e noutras bancadas à
esquerda, o que era compreensível: é sempre difícil passar da maioria absoluta
a minoria. Mas é a vida…
Sintetizei, à rádio, que a maioria à direita iria devolver a instituição
parlamentar às regras da Constituição e do Regimento e à longa praxe
parlamentar que a maioria de esquerda tinha violado e quebrado desde 2015. Ou
seja, a direita parlamentar iria repor a democracia e o institucionalismo, como
definidos desde 1976, porque as regras e a praxe tradicional definem a
composição da Mesa como espelho natural dos resultados das eleições legislativas
e não pela arbitrariedade de arranjos de ocasião.
Por isso, à tarde, senti-me perplexo e vexado, quando não aconteceu assim
e fui seguindo, a espaços, aquela longa tragicomédia. Que vergonha! Não
aconteceu o que era previsível, porque o Chega, agindo furtivamente, pela
calada, a coberto do voto secreto, decidiu romper a maioria à direita, impedir
a eleição do Presidente e abrir um conflito que ninguém sabe até onde poderá
conduzir. Foi gesto premeditado, como se lê do tweet de um deputado do
Chega que, mal conhecidos o resultado da primeira votação, pelas 17:00 horas, escreveu:
“Não é não? Então?” Podia ter acrescentado: “nã-nã-nã-nã-nhããaaa…
nã-nã-nã-nã-nhããaaa…” Depois, o circo durou quase até à meia-noite.
Não fosse a imprevisível e irresponsável actuação do Chega e de André
Ventura, teríamos, ontem, ao fim da tarde, uma Mesa da Assembleia da República tranquilamente
eleita, composta por um Presidente do PSD (partido mais votado) e os outros
níveis, Vice-presidentes, Secretários e Vice-secretários, preenchidos por deputados
propostos por PSD, PS, Chega e IL, por esta ordem em cada um dos níveis. Os 138
deputados à direita tinham maioria suficiente para, sem dramas, devolver a
eleição da Mesa à normalidade parlamentar e seguir-se-ia calmamente para a nova
Legislatura. André Ventura teria, na Mesa, três membros da sua bancada, como
expressão natural dos resultados eleitorais. Agora, nada se sabe, porque foi
desatada a desordem, o regime sem-lei e sem-palavra.
O Chega resolveu estragar tudo: a direita que averbaria no seu currículo
a reposição da democracia no institucionalismo parlamentar, carregou para o
cadastro a palhaçada de ontem e a tentativa de imposição, na eleição da Mesa,
da arbitrariedade e do arranjismo ao pior modo do PS e da esquerda.
Não conheço outra Constituição, no mundo, que vá ao pormenor de indicar como
são escolhidos o Presidente e os Vice-presidentes da Mesa. A nossa fá-lo no
artigo 175.º, que marca a longa prática iniciada desde 25 de Abril de 1976, dia
das primeiras eleições legislativas e de entrada em vigor da Constituição. O
mesmo espírito guiou os Regimentos da Assembleia da República, quando completaram
as regras para composição da Mesa – hoje, nos artigos 13.º e 23.º.
A Mesa, diz a Constituição, é integrada pelos “quatro maiores grupos
parlamentares”. O que quer isto dizer? Quer dizer que os quatro maiores
partidos parlamentares devem integrar a Mesa pela respectiva ordem de grandeza,
eleitoralmente definida. Por isso, a praxe foi sempre a de o Presidente ser
indicado pelo maior grupo, os quatro Vice-presidentes serem designados pelos quatro
maiores grupos, por ordem do primeiro ao quarto, e assim similarmente para os demais
níveis. Em 2015, o PS e a geringonça romperam a praxe para o Presidente,
apoderando-se deste. E, em 2022, a maioria de esquerda voltaram a violá-la,
impedindo a eleição de membros do Chega e da IL. Ontem, tudo seria reposto na normal ordem democrática
constitucional. O Chega não deixou.
Os deputados constituintes quiseram a Mesa como tradução das eleições,
integrando as maiores famílias políticas pela ordem definida pelos eleitores. Estão
na Mesa, porque o povo votou, não por pactos de partidos. Quis um regime
inclusivo, pelos maiores, não um regime exclusivo, de cúmplices ou aliados. Quis
que os membros da Mesa estivessem lá por direito próprio, emergente das
eleições; e, embora mediados por eleição parlamentar, retirassem a sua
legitimidade do próprio voto popular. Os deputados, é claro, podem, no momento
da eleição, votar a favor ou contra, mas: votando a favor, aceitam o espírito
da Constituição; votando contra, rompem com ela. Quem vota não tem de concordar
como se estivesse num acordo político de coligação. Quem vota reconhece a
legitimidade dos eleitos pela ordem da eleição. E isto porquê? Porque o
Parlamento é a Casa de todos. A Mesa também tem de espelhar essa básica noção
democrática.
Depois da esquerda, em 2015 e 2022, o Chega, ontem – contra os seus
próprios interesses, creio eu –, rompeu também a institucionalidade democrática
da Assembleia da República. Se isto continua, acabará por matar o
parlamentarismo português, que ficará cada vez mais cativo do sectarismo de
maiorias de ocasião, afectando a composição da Mesa e de outros cargos
parlamentares, em ruptura crescente com o espírito constitucional.
Ao fim do dia de ontem, André Ventura conseguiu três proezas
inimagináveis:
1)
Uma:
em vez de ter contribuído para a eleição de uma Mesa, onde teria um
Vice-presidente e mais dois membros, armou um pandemónio que pôs tudo em crise
e não se sabe como acabará.
2)
Duas:
havendo uma maioria à direita do PS de 138 deputados, deu suporte (e evidência
pública, provada em três sucessivas votações secretas) à tese abstrusa de Rui
Tavares, do Livre, de que não há maioria à direita e minoria de esquerda, mas,
afinal, três blocos: a esquerda, a direita democrática e a extrema-direita.
3)
Três:
mostrou que, afinal, terá sido a esquerda a ganhar as eleições de 10 de Março e
que a direita as perdeu.
4)
Quarta:
como num golpe de Estado, colocou os 92 deputados da esquerda à frente no
Parlamento.
Pior era impossível.
José Ribeiro e Castro
Advogado e cidadão
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