1.º assalto: no princípio, era o logotipo

  

P

ara compreendermos o caso do logotipo, é preciso recorrer a uma velha anedota. Um indivíduo comprou uma casa, no bairro histórico do Castelo. E quis aproveitar o sótão, abrindo uma janela de onde teria bela vista. O arquitecto disse-lhe para nem pensar nisso: “É zona histórica, classificada, não permitem alterações. Se apresentar projecto, chumbam-no. E se fizer a obra e, depois, quiser aprovar, ordenam a reposição.”

O comprador não desistiu: de noite, período de férias, havendo pouca gente no bairro, chamou um pedreiro amigo, que rasgou um buraco na empena, onde logo aplicou caixilhos e janela. Estava catita. No dia seguinte, fotografou e apresentou requerimento à câmara municipal, para esta autorizar a remoção da janela e fechar a parede inteira. Os serviços responderam: “Não pode retirar a janela. Trata-se de zona protegida. Não pode alterar o edificado. Deve manter-se como se encontra.” E ameaçaram multa pesada se tirasse a janela e emparedasse a empena. Radiante com a proeza, o comprador apresentou-se ao arquitecto a mostrar como conseguira legalizar a nova janela na vizinhança do Castelo.

O governo socialista seguiu a mesma estratégia para tentar consolidar a nova identidade visual que ficou conhecida como a do ovo estrelado. Introduziu-a à sorrelfa e manteve-a como se fosse de sempre, para a reposição da anterior parecer agressão e não retoma.

 

O

 aviso foi lançado pelo Director de Informação da SIC, Ricardo Costa, logo no dia em que foram anunciados os ministros do novo Governo (28 de Março). Desafiou: “Espero que Luís Montenegro reverta a decisão, que anunciou no dia 2 de Dezembro de 2023, de mudar o novo logotipo do governo, porque seria uma decisão bacoca e seria uma concessão às guerras culturais que estão a destruir as democracias em todo o Ocidente.” Foi paternalista para o primeiro-ministro: “O atual símbolo do governo é um excelente símbolo, desenhado por um dos melhores designers portugueses. Se o Luís Montenegro não souber, a Dalila Rodrigues [a nova ministra da Cultura] explica-lhe: chama-se Eduardo Aires.” E reduziu tudo a uma caricatura: “aquela guerra cultural, de que nós só devemos ter símbolos com castelos, quinas, chagas, etc., é uma bacoquice que foi prometida pelo Luís Montenegro e que eu espero que ele agora se esqueça.”

O Governo, logo no dia em que tomou posse (2 de Abril), fez o evidente: repôs o símbolo anterior. Era a decisão de Montenegro, em 2 de Dezembro: “nós no nosso projeto não fazemos sucumbir as nossas referências históricas e identitárias a uma ideia de ser mais sofisticados. Connosco não há disso. Já chega de política de plástico.” O que consolidou no Twitter.

Poder-se-ia esperar que Montenegro fosse saudado por não perder tempo e começar logo a cumprir promessas feitas. Era bom agoiro. Foi ao invés: a generalidade da comunicação social quis pôr a ridículo que começasse por aqui. Em 4 de Abril, Ricardo Costa, de novo na antena da SIC-Notícias, apontou como “absurdo” e “impensável” que “a primeira medida fosse cosmética ou estética”. E a bateria de comentadores, nos canais por cabo, seguiu, em geral, a mesma linha. Não sei se lhes terão escapado dois aspetos essenciais: primeiro, se o Governo não aceitava o contestado novo logotipo e queria repor o anterior, então tinha mesmo de o fazer desde o primeiro minuto, sob pena de associar-se à imagem que rejeitava; segundo, não há por certo outro compromisso eleitoral que pudesse ser integralmente cumprido de forma tão directa, simples e pronta.

Ricardo Costa, principal porta-voz contra a decisão do Governo, acusou-o, no mesmo dia, de ter criado “um ornitorrinco gráfico”, para abrir a linha de justificação do governo socialista: a mudança de símbolo nada tivera a ver com abandono de símbolos nacionais, mas fora imposição da “utilização digital”. Por isso, no clássico virar o bico ao prego, acusou “o primeiro grande movimento de cultura de cancelamento feita pelo movimento conservador, que se pegou ao PSD e fez uma manobra de ‘wokismo’ ao contrário”. E, ao mesmo tempo que desgraduava o relevo simbólico, narrou o alegado calendário de entrada em uso da nova imagem do governo PS: “Quando este logo mudou, em Maio do ano passado, ninguém ligou pevide. Depois começou a ser aplicado em Julho, ninguém ligou nada. Depois foi utilizado durante todo o Verão. Em Outubro, começou a nascer nas redes sociais uma questão, como se a bandeira tivesse sido mudada… Não, não, isto é um símbolo administrativo da República. Não há nenhum problema identitário nesta matéria.”

Neste último grito da identidade visual em mudança, não vi nenhum político da oposição. Na tentativa de vendaval político da oposição, em cima do arranque do Governo, só recordo jornalistas e comentadores a animá-lo. E foi lançada uma petição pública, “Contra a Reversão da Nova Identidade Visual do Governo de Portugal”, promovida na comunicação social – ouvi na SIC e na TSF. Esta alcançou 7.538 subscritores. Por sinal, outra petição em sentido oposto, “Contra a alteração do símbolo institucional do governo português”, lançada no final de 2023, aquando da principal contestação à alteração feita pelo governo António Costa, alcançou 12.329 adesões, sem promoção pela comunicação social.

 

A

qui chegados, tenho de pegar no importante artigo de João Cepeda, saído no Público, de 5 de Abril. Começo por dizer que, em nenhum momento, pus (ou ponho) em causa a competência técnica e profissional do Director de Comunicação do anterior Governo, assim como o não fiz (nem faço) quanto à aptidão técnica e artística de Eduardo Aires, o designer. João Cepeda assume a responsabilidade pela mudança em 2023, que procura explicar. E tenta reduzir a contestação à “venturização” do problema; Ricardo Costa e outros fizeram o mesmo. Não é verdade. A onda crítica cresceu em fim de Novembro, princípio de Dezembro, envolvendo nomes como Luís Montenegro, Nuno Melo, Paulo Portas, José Miguel Júdice, Manuela Ferreira Leite, Durão Barroso, eu também; e, fora da política, João Bernardo Galvão Teles, Guta Moura Guedes, Diniz de Abreu ou, em Abril, Beatriz Casais. É preciso entender as críticas. E responder – não desqualificar os autores.

Parece haver erro geral de comunicação. Desde logo, é difícil entender este fogo de barragem, em Abril, contra a concretização da promessa de Montenegro e o quase completo silêncio, em Dezembro, quando o logotipo enfrentou as mais fortes contestações e a promessa foi gerada. Se havia tanto a dizer, por que não foi digo logo?

Isto soma-se a outra bizarria comunicacional. Normalmente, estas mudanças de imagem institucional são anunciadas, proclamadas, explicadas. É assim, porque se acredita muito nelas e nas suas virtualidades; e também porque, tratando-se de “identidade visual”, a sua função é dar nas vistas. O caminho escolhido precisa de ser explicado. Ao que parece, a decisão é de Maio; e começou-se em Julho, às pinguinhas e de modo quase furtivo. O governo PS foi, portanto, o único responsável por a polémica ter rebentado como rebentou, naquele modo e naquele tempo. Não pode deixar de pensar-se que se quis evitar que desse muito nas vistas algo cuja função é dar nas vistas. Se isso foi porque os responsáveis tinham receio de a escolha causar controvérsia, vê-se que o receio estava certo.

Na bateria de argumentos contra Montenegro e os críticos do logotipo abandonado, nada foi dito para explicar, quanto a este, algumas justificações oficiais exóticas: ser determinado “por uma consciência ecológica reforçada”; e a nova imagem afirmar-se “inclusiva, plural e laica”. O artigo de João Cepeda volta a não dizer nada de útil, na linha de afirmar “mentiras” que, afinal, se fica a ver que são verdades. No seu texto, esta seria a “segunda mentira”, mas acaba a confirmar que a expressão tem fonte oficial (não tinha como o negar): seria um “documento interno” e as palavras “descontextualizadas”. Como assim? A frase exacta é: “Através da síntese formal, a nova imagem afirma-se também inclusiva, plural e laica.” Porquê “inclusiva”? Porquê “plural”? Porquê “laica”?

A “terceira mentira” seria que “tirar as quinas, os castelos e as chagas pretende desvalorizar a bandeira e até a nossa História”. Segundo João Cepeda, o propósito, ao contrário, seria reagir contra “o abandalhamento total dos símbolos nacionais” que se vê por aí: “rótulos de cerveja”, “emblemas de discotecas”, “cuecas de merchandising turístico”, todo o tipo de produtos, sem controlo. Ora, como é bom de ver, o uso das quinas ou do escudo nacional no estacionário do Governo ou na imagem institucional não é comparável a rótulos, emblemas ou cuecas.

Já a “primeira mentira” é bem conhecida no argumentário do anterior governo, procurando dar-nos vários nós nas meninges: consiste em afirmar, com aparente convicção, um facto, ao mesmo tempo que se faz o contrário do que se diz; ou em negar uma evidência que se está a ver, dizendo-nos não ser o que é e vemos. É uma arma de propaganda. João Cepeda escreve: “Primeira mentira, foram mudados os símbolos nacionais. É absurdo. Os símbolos nacionais, entre os quais a bandeira, estão consagrados na Constituição da República e nenhum governo os pode mudar. O símbolo do governo, por outro lado, representa o poder executivo e nada mais do que isso.” Sim, é claro que os símbolos nacionais estão fixados na Constituição. Mas essa é precisamente a discussão: foram mudados para símbolo do governo, que representa o Poder Executivo, um dos três poderes do Estado. E deve a imagem do Estado e dos seus mais altos órgãos ser fracturada e tão acentuadamente contrastante? Ainda para mais, usando a legenda “República Portuguesa”.

Um dos exemplos usados nos documentos de suporte do logotipo agora abandonado mostra a evolução gráfica que o originou:



Como pode sustentar-se não ser o que é?

Recorro, enfim, ao mesmo “documento interno” identificado por João Cepeda numa das suas respostas, para citar um trecho que poderia ser inspirado em René Magritte, célebre artista belga, grande referência do surrealismo, autor do célebre quadro que mostra um cachimbo, com a legenda “Ceci n’est pas une pipe” (Isto não é um cachimbo):

«A referência matricial da nova imagem do Governo da República Portuguesa é a bandeira nacional. Nas suas cores dominantes e na sua geometria elementar são encontrados os argumentos visuais identitários que se articulam agora de forma mais sintética, diferenciada e adaptável às condições da comunicação digital.

O que se propõe não constitui o redesenho da bandeira, instaurada pela Revolução de 5 de Outubro de 1910 e devidamente consagrada na Constituição da República Portuguesa como símbolo de soberania, independência, unidade e integridade. Não interfere, portanto, com o seu estatuto, dignidade ou representatividade.

O que se apresenta no contexto desta orientação estratégica é um símbolo novo e distinto, representativo do Governo da República Portuguesa, que responde de forma mais eficaz aos novos contextos, determinados pela sofisticação da comunicação digital e dinâmica e por uma consciência ecológica reforçada.»

Em resumo, podemos concluir. Em 2023, a identidade visual do governo foi elaborada de acordo com metodologia magrittiana, como ilustro, a terminar. Só me faltou assinar com um ornitorrinco, com a legenda “Isto não é um ornitorrinco bacoco.”

 



José Ribeiro e Castro
Advogado e cidadão

OBSERVADOR, 29.Abril.2024

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