2.º assalto: o livro e Pedro Passos Coelho
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esta fase
totalmente nova em que a oposição é liderada a partir da comunicação social, o
2.º assalto tinha sido o livro “Identidade e Família”, apresentado por Pedro
Passos Coelho, em 8 de Abril: um festival de distorção e manipulação, sobre um
e outro. Do livro pouco ficou a saber-se. E, de Passos Coelho, “soube-se” o que
ele não disse, em vez do que realmente disse. A transcrição integral está publicada
pela CNN Portugal, não editada e não deixando, portanto, margem para
dúvidas.
Pela manhã, o
diapasão foi dado numa peça
de David Dinis, no Expresso, intitulada «Passos Coelho apresenta um
'manifesto' contra “os adversários da família”», descrito, em destaque, como «um livro que
reúne 22 contributos da direita mais conservadora, contra a “destruição da
família” tradicional.» Tudo seguiu nesta onda hostil, imediatamente ampliada
pelo velho Twitter (hoje, X).
O |
livro foi alvo premeditado de “guerra
cultural”. Pela técnica de virar o bico ao prego, acusado de a promover. Amplo
e variado, o livro reúne 22 textos de 22 pessoas diferentes, com opiniões
próprias e abordagens específicas. Foi amassado num pseudo-manifesto (que não é)
para linchar todos em bloco e de uma só vez.
Nas
televisões, eclodiram comentários de autoridade contra o “manifesto”, sem sequer
o terem lido. Mesmo em textos escritos, o tom, em geral, não teve sombra de seriedade.
Rolou uma enxurrada extremista de chavões, insultos e desqualificações: “ultraconservador”,
“revanchista”, “medieval”, “retrógrado”, “direita ultramontana”, “ideias
regressivas”, “francamente reacionários”. Evidência de como, em oito anos, o
olhar “geringôncico” ocupou palco, frisas e camarotes – e quer manter-se
pensamento único.
O livro é um
acto de liberdade de consciência e de liberdade de expressão dos autores, cada
qual com as suas preocupações, a sua visão e as suas ideias. Já os ataques parecem
eco de uma voz coordenada: “afirmam estar a fazer uma defesa, mas fazem na
verdade um ataque à liberdade de todos os que não vivem de acordo com os seus
princípios e valores” (Carmo
Afonso); “impondo aos outros todos a sua visão retrógrada sobre a sociedade”
(São
José Almeida); “o projeto é obrigarem todos e todas nós a vivermos de
acordo com os seus princípios” (Susana
Peralta). Surgem também inquietações exóticas: “desconstrução da
heteronormatividade, binarismo e cisgenderidade; historização do patriarcado,
do racismo e da interseccionalidade” (Cristina
Roldão). E, claro, lá vem o tique proibicionista: “ameaça [real] que todos
eles representam a quem constituiu família fora do molde patriarcal e a quem
não se coaduna com um modelo familiar. Isto não é admissível” (Carmo Afonso).
Uma dose
concentrada e violenta de radicalismo e, por vezes, de extremismo pertenceu a Manuel
Carvalho. Contra os autores: “a apologia das famílias que os autores do
livro fazem é a clássica família tradicional, binária, ungida pelo sacramento
divino, tecida para a vida, orientada para a procriação e para a reprodução dos
valores tradicionais.” Contra o livro: “um modelo salazarento da Pátria e da
Família”, “ideologia castradora dos ‘portugueses de bem’”, “doutrina
contaminada pelo saudosismo autoritário”. E contra Pedro Passos Coelho: “prócere
do arcaísmo da direita radical”, “fantasma movido pelo calculismo, pelo
cinismo, pela reacção”, “apoio à falange conservadora e católica dos moralistas
da família tradicional”, “reflexo da direita videirinha e arcaica”, “periferia
do radicalismo”.
Carmo
Afonso confessou: “Nasci numa família a que todos chamariam tradicional.
Tenho um pai e uma mãe que se casaram e que vivem juntos há mais de 55 anos.” (Ficou
a dúvida sobre se seria o modelo zurzido por Manuel Carvalho.) E também surpreendeu:
“Compareci à apresentação do livro ‘Identidade e Família’, por Pedro Passos
Coelho.” Presumo que foi bem tratada na sala, se não teríamos sabido. Ou talvez
nem lá tenha estado. Escreve: “Passos Coelho falou pouco sobre o livro e fez da
apresentação um comício político no qual (…) deu destaque à defesa de um
entendimento com o Chega, expondo publicamente uma exuberante rota de colisão
com Luís Montenegro.” Afinal, Carmo
Afonso esteve certamente noutro sítio. Eu estive lá e o que ouvi foi Passos
Coelho falar muito do livro e nada sobre o Chega.
A |
quela foi a
narrativa imposta pela comunicação social: Passos pressiona Montenegro a
entender-se com o Chega. Assim queriam, assim fizeram. Sigamos, por exemplo, o
guião da SIC-Notícias, em peças de Diogo Teixeira Pereira.
Numa, aludindo
a um isco de André Ventura na campanha eleitoral, o jornalista abriu
logo a apontar Passos Coelho como “força viva” do PSD que quer Montenegro a
repensar o “não é não”. O oráculo apoia: “Ex-PM pressiona PSD a entender-se com
Chega”. As frases de Passos a seguir, sobre pessoas desiludidas, são genéricas
e passíveis de interpretações várias. Usadas em separado e vestidas com aquele
colete, dão para pintar a narrativa.
A citação
seguinte – “Quando nós dizemos que respeitamos as pessoas, mas não respeitamos
as suas opções, as suas decisões, isso é um bocadinho um insulto às pessoas” – é
exibida com recurso a sugestiva arte técnica: as imagens de Passos Coelho são
intercaladas por um plano de corte (minuto 09:45), mostrando brevemente Ventura
a ouvi-lo e a acenar com a cabeça. A montagem sugere que Passos estava a falar para
o líder do Chega e este concordou. Ora, não só a frase é genérica, como aquele
plano resulta de filmagens de Ventura na assistência noutro momento. O mesmo
plano de corte é usado na peça seguinte do mesmo jornal, para sugerir a mesma
interacção Passos/Ventura noutro trecho sobre família e educação (minuto
12:57). E ainda noutra peça. Nada disto é real. Mas a narrativa foi embelezada
a jeito. O telespectador pode dizer: “Eu bem vi o Passos a falar p’ra ele e o Ventura
a dizer que sim.” Estará enganado. É montagem. É “fake”.
A outra peça é
bastante pictórica, coligindo
imagens e ditos de vários momentos. Começa em 2017 com a candidatura de
Ventura a Loures pelo PSD, sendo líder Passos Coelho. Daqui, voa para a
Livraria Bucholz, em 2024, para a apresentação do livro. Volta a ser usado aquele
plano de corte, agora para pintar um trecho da narração: “Ambos voltaram a
perceber que é muito mais o que os une do que o que os separa”. Posto o que, sem
que se perceba em que se apoia, o jornalista assevera que “o novo
Primeiro-Ministro [Montenegro] confirma uma suspeita que eventualmente já tinha:
Passos não gosta do cordão sanitário ao Chega.” Recuamos, então, ao Campus da
Justiça, em Dezembro de 2023, para afirmações de Passos Coelho, a que o jornalista
contrapõe que, “se [hoje] fosse o tempo de Passos, o Chega não ficava a agitar
bandeiras sozinho”, saltando a peça do Campus para o comício de Faro, em
Fevereiro, para, com bandeiras da AD a agitar-se, Passos falar de imigração e
de segurança. Novembro de 2023 é a nova escala: em texto, Passos Coelho diz que
o Chega não é antidemocrático. E, seguindo às arrecuas, aterramos em Agosto de
2022, na Festa do Pontal, com Montenegro a brincar com o “papão do passismo” e
a elogiar Passos Coelho primeiro-ministro. Depois de andar para trás e para
diante, a peça termina em avancismo acentuado: “O grande Primeiro-Ministro que
já inspirou Montenegro, tem agora um apoio prometido pelo Chega para uma
eventual corrida presidencial, mas talvez Passos Coelho ainda sonhe com o
regresso a São Bento.”
A comunicação
social foi, em geral, assim: inventiva quanto baste. A RTP pareceu-me ser mais
objectiva e factual. Já a TVI e a CNN alinharam pelo enviesamento. Cito a
entrada de José Alberto Carvalho no “Jornal Nacional” de 9 de Abril: “Numa
intervenção de 45 minutos, o antigo Primeiro-Ministro disse que não percebe a
falta de diálogo à direita. Daí, o apelo à conversação e negociação com o Chega.
E considera que o “não é não” de Montenegro pode acabar
por maçar os portugueses.” Três frases, três ideias falsas: não falou de
diálogo à direita; não falou de negociação com o Chega; não falou do “não é
não”.
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orrendo o mesmo
risco, é a minha vez de fazer citações de Passos Coelho, na livraria. Primeiro,
um trecho que foi enviesado como favorável ao Chega e crítico para Montenegro:
“Eu acho, sinceramente, percebendo que isso aconteça, que era preferível que
oferecêssemos às pessoas uma imagem diferente. Há muitas pessoas que se começam
a cansar desse teatro, porque se trata de uma teatralização, porque não é
genuína, não é autêntica, é posicional, é táctica. Fazem-se discursos para a
bancada, para agradar, para mobilizar certos apoiantes, para condicionar os
outros.” Estas são, como se vê, considerações genéricas. Mas, quer na altura,
quer agora, pareceu-me que, a vesti-las a alguém, caberiam ao Chega como uma
luva: crítica clara à forma como abrira a nova Assembleia da República e ao espalhafatoso
teatro armado em torno da eleição da Mesa.
Depois,
palavras ditas à chegada à sala: “Hoje, a família não só nem sempre é
considerada nas políticas públicas, como as políticas públicas muitas vezes
desconsideram a família, em qualquer das suas visões ou idealizações. E isso
não é bom. Quando nós queremos discutir as coisas com seriedade, temos de tomar
as diversas visões e discuti-las, com o espírito aberto e o espírito tolerante
que devemos ter. A mim, impressiona-me um bocadinho que o espaço público esteja
demasiado dominado por caricaturas.” E mais à frente: “Acho muito importante
que as sociedades mantenham espaços de racionalidade, que saibam caldeá-los com
a emotividade com que às vezes certas coisas se discutem, mas sem os
exacerbamentos que prejudicam uma análise séria e, sobretudo, muitas vezes
prejudicam que haja uma integração dessas visões numa visão comum da sociedade.”
Enfim, as últimas
palavras do discurso, na Livraria Bucholz: “Os motivos que reúnem esta
associação são muito nobres, eu neles me revejo nesse sentido, mesmo que possa
não subscrever todas as opiniões que são expressas - e ainda bem. Julgo que
ninguém se revê em todos os pensamentos que existem. Mas devemos respeitá-los
de uma forma íntegra e é isso que eu espero que os próximos anos possam
devolver ao espaço público português.”
Manuel
Carvalho, naquele
seu texto escrito com a vergasta, citou Passos Coelho em 2008: "Sou um
liberal, sou um homem que acredita na democracia liberal, sou um reformista
porque sou contra o imobilismo, sou solidário acredito que a sociedade não pode
ser uma selva com a lei do mais forte." E fechou o parágrafo, perguntando:
“Onde está esse Pedro Passos Coelho?”
A resposta parece simples. Quanto a esta substância, está no mesmo sítio: nada disse ou fez que o contradiga. Só ele pode dizer e explicar se houve alguma evolução. Há que perguntar-lhe. Mas, depois, contar o que ele disser. “Fake news”, “fake words”, “fake pictures” – não presta. Usar o bornal de insultos e chavões também não.
José Ribeiro e Castro
Advogado e cidadão
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