3.º assalto: enganei-me no IRS, mas o culpado és tu
Estamos numa
fase totalmente nova em Portugal: a liderança da oposição está na comunicação
social. Sem imparcialidade, nem isenção, sem independência, nem objectividade,
punhos levantados e trombetas sempre assestadas.
No ringue do
boxe político e mediático, os assaltos sucedem-se a ritmo intenso. 1.º assalto:
o logotipo – o combate partiu de um primeiro desafio de Ricardo Costa, no palco
da SIC. 2.º assalto: o livro – a “guerra cultural” foi aberta por uma peça
matinal no Expresso, ampliada, ao fim do dia, pela grosseira distorção das
palavras de Pedro Passos Coelho, nas “reportagens” das televisões. 3.º assalto:
enganei-me no IRS, mas o culpado és tu – um caso que agita o Parlamento, mas
tem fonte na imprensa.
Este último é
o mais pitoresco. No seu discurso de abertura do debate do Programa de Governo,
o primeiro-ministro, entre muitas outras medidas, anunciou “uma descida das
taxas de IRS sobre todos os rendimentos até ao 8.º escalão”, apontando para a “diminuição
global de cerca de 1.500 milhões de euros nos impostos sobre os rendimentos do
trabalho dos portugueses face ao ano passado”.
Quem
acompanha os trabalhos parlamentares não teve dificuldade em entender esta
medida como reforço do que já está no Orçamento, consolidando-o e levando-o
mais longe. O mesmo se diga de quem estivesse a par do que consta quer do
Programa Eleitoral da AD, quer do Programa de Governo, que estava, ali mesmo, precisamente
a ser discutido. Mas a jornalista do Expresso terá entendido mal, gerando uma
notícia que fez sensação: “Montenegro duplica alívio de IRS este ano”. E faria
a manchete de capa, na manhã seguinte: “Montenegro duplica descida do IRS até
ao Verão”.
Estes títulos
embateram contra a realidade – o debate do Programa de Governo prosseguia em S.
Bento. E o director do Expresso publicou uma nota a justificar-se perante os
leitores. Um pedido de “desculpas” em modo original: “Nota do diretor: O
Expresso errou. Pior, publicou uma notícia falsa. Pelo facto pedimos desculpa
aos nossos leitores. A publicação desta notícia seguiu as regras e
procedimentos que exigimos antes da publicação de uma notícia. Não contávamos
era com o facto de o primeiro-ministro ter, no Parlamento, ludibriado os
portugueses.” O título carregava: “É mais do que um embuste. É enganar os
portugueses.” O director do Expresso podia estar aborrecido, mas este processo
é um pouco infantil. Como nas desculpas de criança, apanhada com um erro
grosseiro numa prova: “Ó Senhor Professor, a culpa é daquele menino, que me
passou uma cábula errada.”
Entre os
deputados, ninguém poderia ter-se equivocado. Esta discussão no regime do IRS é
antiga entre PS e PSD. A medida que Montenegro anunciou no debate parlamentar
é, em substância, a mesma que propusera no Verão do ano passado. O PS reprovou-a
em S. Bento, na votação de uma Resolução apresentada pelo PSD, ainda antes do
Orçamento. A diferença entre os dois partidos, nesta medida relativa ao IRS,
estava sobretudo no nível de redução nas taxas e no número de escalões a que se
aplicaria: para o PS só até ao 5.º escalão; para o PSD, até ao 8.º escalão. Por
isso, no OE2024, o PS fez aprovar a medida até ao 5.º escalão – e o PSD votou a
favor, por ser uma parte do que defendia. Agora, que é governo, o PSD, em AD, completa
a medida, aditando a parte que faltava na sua visão. No OE2024, a medida valia
cerca de 1,3 mil milhões de euros; agora, passará a cerca de 1,5 mil milhões de
euros. Foi exactamente o que Luís Montenegro afirmou: “diminuição global de
cerca de 1.500 milhões de euros nos impostos face ao ano passado”. A palavra
“global” é clara. E é inteiramente despropositado jornalistas e políticos da
oposição tentarem a troça com o “choque fiscal”. É mais uma burla de linguagem.
O primeiro-ministro, o governo e a AD nunca falaram num “choque fiscal”, nunca
o apresentaram como ideia ou proposta. É expressão que, depois de 2002, só se
ouve na boca do PS e demais esquerda, além de em jornalistas e comentadores
alinhados.
De resto, a
declaração do primeiro-ministro não provocou no debate parlamentar a menor
celeuma – e logo a provocaria, se mal-entendida. Todas as bancadas e muitos dos
deputados viveram a tramitação política desta medida, desde que o PSD a lançou
para a arena parlamentar no Verão passado. E, por certo, anteciparam que o
governo da AD iria voltar à carga, para a alargar mais do que ficara no OE.
Tinham até essa certeza, depois de lerem os programas eleitoral e de governo
dos vencedores das eleições. Por isso mesmo, nas dezenas de perguntas e
intervenções que logo foram feitas ao primeiro-ministro, ninguém o confrontou:
“Onde é que vai buscar esses 1.500 milhões de euros a mais? Descobriu
petróleo?” Todos sabiam do histórico da medida que não era assim.
Diversamente
do ataque do Expresso, Montenegro não fez qualquer embuste. Nem aos
jornalistas, nem aos portugueses. Limitou-se a concluir um processo político
com cerca de oito meses e cumprir compromissos expressos nos programas
eleitoral e de governo.
O primeiro-ministro
também não tinha o menor interesse em ludibriar. O Expresso, por exemplo,
anuncia – como a generalidade da comunicação social – que o desenho técnico
definitivo desta medida relativa ao IRS está a ser ultimado, para ser
apresentado nesta semana. Então, o governo ia enganar, no debate, para se
auto-desmascarar na semana seguinte?... Não faz sentido nenhum. Têm de inventar
outra.
Quem andou muito
mal, além dos deputados de populismo encartado, foi Alexandra Leitão e a
bancada do PS que lidera. Se há alguém que, pelo lado de lá, sabe tudo desta
medida e do seu histórico parlamentar, são os socialistas. Foram o interlocutor
do PSD e da AD neste específico debate político. Estão cansados de saber que
não houve fraude, senão tê-la-iam logo suscitado. Tudo não passa de um aproveitamento
sem razão de factos conhecidos. Porventura um jogo cruzado das “fontes”: “sim,
sim, diz que foi embuste, que nós também dizemos”. Da líder parlamentar do PS
espera-se mais estatura.
Este quadro
em que a comunicação social se envolve, ela mesma, no jogo tem muito que se lhe
diga. Quem nos dá as notícias, se a imprensa é parte da notícia? Quem medeia,
se estão todos comprometidos? Vale mais o Expresso ou o Tik-Tok? Quem
garante contra as fake news, se todos veiculam fake news? Quem
defende contra o populismo, se todos molham a sopa no populismo? Onde fica a
independência e a isenção, se todos tomam partido sobre tudo? Onde sobra a
imparcialidade, se todos são partidários?
Neste começo
de ciclo, os três assaltos consecutivos – logotipo, livro e falso embuste – falam
por si. Não é bonito de ver. Não nos “populistas”. Mas nos doutores de
sapiência.
José Ribeiro e Castro
Advogado e cidadão
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