Da liberdade de expressão e da democracia
U |
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intervenção de André Ventura, na Assembleia da República, a propósito do novo
aeroporto, gerou,
de salto em salto, uma tempestade política que ainda rola por aí. O tema é
realmente liberdade de expressão ou censura. E puxou-se como seu alegado
objecto “racismo e xenofobia”. Porquê? Porque o líder do Chega, ao questionar
que o novo aeroporto demorasse dez anos a ser construído, disse isto: “O aeroporto de Istambul foi
construído e operacionalizado em cinco anos, os turcos não são propriamente
conhecidos por ser o povo mais trabalhador do mundo”. Acrescentando: “Podemos
ser muito melhores que os turcos, que os chineses, que os albaneses, vamos ter
um aeroporto em cinco anos”.
Tanto bastou para que se armasse, a
partir da esquerda parlamentar, um enorme charivari, exigindo à Mesa admoestar Ventura
e fazê-lo calar, em nome dos direitos humanos. O presidente explicou, com
calma, pormenor e clareza, a posição de não intervir, afirmando a liberdade e
rejeitando a censura. Mas a esquerda insistiu, pondo no vértice do debate não o
líder do Chega e suas opiniões, mas o presidente da Assembleia, a sua acção e a
sua própria liberdade. À noite, a SOS Racismo, disparatando, sentenciou que “o
presidente da Assembleia da República não tem condições para continuar no cargo”.
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ara começo de conversa, convém termos
presente, antes de tudo o mais, que a liberdade de expressão é um direito
humano, dos principais. E que a liberdade de expressão dos deputados é não só a
liberdade do cidadão (que também é), mas o instrumento imprescindível da própria
democracia pelo qual, como deputado, diz o que pensa e quer e nós o podemos
conhecer, apreciar e julgar.
Na mesma linha dos textos fundamentais
da revolução americana de 1776, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
proclamada no quadro da revolução francesa de 1789, enuncia nos artigos 10.º e
11.º: “Ninguém pode ser molestado por suas opiniões”; “A livre comunicação
das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem”; “todo
o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente”. Quem agir
contra isto age contra os direitos humanos. Mas não se pense que estes direitos
são ilimitados. Têm, como quaisquer outros direitos, limites, que constam
também dos mesmos artigos 10.º e 11.º: “desde que sua manifestação não
perturbe a ordem pública estabelecida pela lei”; “respondendo, todavia,
pelos abusos dessa liberdade nos termos previstos na lei”. Para o calibrar,
podemos, ainda hoje, recorrer à filosofia clássica do artigo 4.º, quanto às
liberdades e seus limites: “A liberdade consiste em poder fazer tudo o que
não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada
homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da
sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites só podem ser determinados
pela lei”.
Este enunciado matricial consta em
todas as Constituições que são tributárias das traves axiais do
constitucionalismo moderno e das democracias liberais, fixadas no final do
século XVIII. Vem até à recente Carta Europeia dos Direitos Fundamentais,
curiosamente também nos artigos 10.º e 11.º: “Todas as pessoas têm direito à
liberdade de pensamento, de consciência e de religião”; “Qualquer pessoa
tem direito à liberdade de expressão”. E vem também até à nossa
Constituição, sobretudo nos artigos 37.º e 41.º: “Todos têm o direito de
exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou
por qualquer outro meio”; “A liberdade de consciência, de religião e de
culto é inviolável”.
Por isso, o presidente da Assembleia esteve
muito bem ao apoiar-se directamente na Constituição para decidir e agir como
fez – segunda figura do Estado, também ele tem o dever de respeitar e fazer
respeitar a Constituição. Esta é muito clara, no artigo 37.º, ao remeter para os
tribunais quaisquer ofensas cometidas no exercício desta liberdade: “as
infrações cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos
princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social”.
E, em simultâneo, ao proibir categoricamente a censura: “O exercício destes
direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de
censura”. Claro como água límpida.
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drama
encenado por estes dias deve-se ao tique em que a esquerda se tem especializado
a vociferar e esbracejar: o tique da escandalização. A uma opinião de que
discorda não manifesta oposição ou contraponto; é logo posta pressão para que essa
opinião seja encurralada e impedida de ser expressa.
Os pretextos podem ser vários: desde
sexismo, racismo, xenofobia e similares a temas do tempo como animais, clima e
género. O tique é sempre o mesmo: “Oooh! Ouviste?”; “Aaah! Escutaste?”;
“Viram? Viram bem?”; “Leste o que escreveu?”; “Como pode ser?”;
“Tem de ser proibido”. A agitação é escandalizar quanto a tudo o que fuja
ao diapasão da esquerda. As redes sociais enchem-se deste rodopio, com destaque
para o X (antigo Twitter), cujo formato é especialmente propenso ao
metralhar contínuo de tiro curto e rápido. O objectivo é condicionar em
absoluto o espaço público: cercar e amordaçar adversários, gerar intimidação
geral, impor pensamento único, afirmar uma reitoria vigilante e uniforme.
Em S. Bento, foi o Bloco a abrir o
cortejo, logo seguido pelo PS e pelo Livre. Todas as tintas foram carregadas e
o tom exagerado a preceito. A líder da bancada do PS, por exemplo, foi ao ponto de apontar
a Aguiar Branco a criminalização do “discurso de ódio”. Ora, apagadas as luzes
das câmaras e desligados os microfones, a deputada Alexandra Leitão, jurista
qualificada, reconhecerá facilmente que ninguém consegue enquadrar na moldura
do artigo 240.º do Código Penal aquilo que Ventura dissera – nem de
perto, nem de longe.
O enredo da escandalização, alvejando o presidente da Assembleia da República, não o Chega, rolou para o fim-de-semana. Chegou Paulo Raimundo, líder do PCP: “Esteve mal o presidente da Assembleia, em permitir vulgarizar estas afirmações e estas declarações”. Mas, provando estar a leste dos factos, saiu-se com esta: “Não aceitamos declarações racistas e xenófobas que promovem o ódio, que querem branquear esse passado triste colonial, que querem branquear o fascismo”. Como? Onde ouviu isto? Insistiu o Bloco, pela líder Mariana Mortágua: “A Assembleia da República é fundada em regras de democracia e em regras de respeito, desde logo de respeito pelos Direitos Humanos. Da mesma forma que não insultamos o presidente da Assembleia da República, nem outro deputado, também não insultamos outra nacionalidade, porque isso é racismo, é injurioso e o Regimento não o permite”. Do PS, cada vez mais parecido com o Bloco, juntaram-se mais vozes ao coro, com a notável excepção de Sérgio Sousa Pinto. O líder, Pedro Nuno Santos, pôs-se na trincheira: “Ao discurso racista, ao discurso xenófobo, temos de dar combate diário. Esperávamos muito mais do senhor presidente da Assembleia da República”. E, em campanha europeia, Marta Temido afirmou-se em “perplexidade e choque” e fixou doutrina: “Todos nós partilhamos da ideia de que a liberdade de expressão é um valor em si próprio, mas também entendemos que a liberdade de expressão tem um limite, que é o limite do insulto. Além de que determinados tipos de verbalização podem constituir crime”.
Algumas destas afirmações estão certas.
Só que não se aplicam aos factos ocorridos. Às tantas, na escalada de
escandalização consecutiva, políticos e comentadores houve que entraram a
comentar o comentário do comentário do comentário… O delírio.
T |
odo este tiroteio não conseguiu
responder à posição espontaneamente enunciada pelo presidente da Assembleia da
República, no próprio momento do debate. Apesar do coro a várias vozes, dos
adjectivos e das proclamações sonoras para servir a técnica do escândalo, não
conseguiram vencer, nem convencer.
Para o entender, é preciso conhecer a
norma regimental a que a líder do BE se referiu. Diz isto: “O orador é
advertido pelo Presidente da Assembleia da República quando se desvie do
assunto em discussão ou quando o discurso se torne injurioso ou ofensivo,
podendo retirar-lhe a palavra” (artigo 89.º, 3). Como é bom de ver, quem
interpreta é o próprio presidente: é ele que julga se o orador se desvia da
agenda, ou não; é ele que avalia se há injúria ou ofensa, ao ponto de advertir
e cortar a palavra. No mais, é como sabemos: há casos em que todos achamos que
há ofensa ou insulto, e outros casos em que todos cremos que não há; no meio, há
a imensidão de casos em que é duvidoso. O presidente é soberano quanto ao seu
desempenho e aos seus critérios.
É também essencial focar-nos no
discurso do deputado André Ventura: “O aeroporto de Istambul foi construído
e operacionalizado em cinco anos, os turcos não são propriamente conhecidos por
ser o povo mais trabalhador do mundo.” Esta afirmação pode ser discutida. Mas
é racista e xenófoba? Mesmo com várias camadas de exagero e distorção, não é. Não
é uma frase sobre que todos digamos espontaneamente ser ofensa ou insulto. E
querer enquadrá-la no chamado “discurso de ódio” é perder por completo a noção
do que estamos a tratar.
E o que disse o presidente Aguiar
Branco, quando interpelado para admoestar? Disse respeitar a liberdade de
expressão e não fazer censura, como manda a Constituição. Fez bem. Insistiu
que, havendo posições diferentes, deveriam confrontar o orador e não instar o presidente
a ser censor ou polícia. Realçou que a democracia é todos vermos como fala cada
qual e julgarmos por nós mesmos. Outra vez bem. Acrescentou aceitar plenamente a
discordância, devendo, aí, recorrer-se para o plenário; e, se o plenário decidisse
diferente, aplicar-se-ia esta decisão, mas ele não faria censura contra a sua
consciência. Muito bem de novo. E, interpelado sobre poder haver crime, disse
que quem o pensasse deveria denunciá-lo para o julgamento ser feito em sede
judicial. Não podia dizer melhor.
H |
á umas últimas notas que têm de ser
feitas. No confronto entre direitos fundamentais e seus limites, importa fazer sempre
interpretação restritiva dos limites. A norma é a liberdade de expressão, não
são os limites que são a regra. Estes só devem aplicar-se, quando perante situações
de ofensa grave e patente, que não possam ser protegidas doutra forma. Além
disso, as normas legais a aplicar, de ordem regimental ou de direito penal, têm
sempre, sob pena de inconstitucionalidade, de interpretar-se em conformidade
com as normas da Constituição, que são de estatuto superior. E, nos casos de
aplicação de limites à liberdade, a via para o apreciar e decidir é a via
judicial, com o rigor, a ponderação e a objectividade que lhe são inerentes –
não o berreiro politiqueiro de ocasião, para servir paixões ou repentismos.
A conclusão que deste debate devemos
tirar é, portanto, outra. A esquerda, a continuar assim, como vem galopando há
pelo menos uma década, torna-se num perigo para a democracia. Não quer decidir
apenas das suas opiniões, mas impor opiniões aos outros. Dita as opiniões que
acha certas ou, quando menos, aceitáveis e arvora a reitoria geral do mando
sobre a palavra permitida. Afirma e expande uma cultura de censura.
O discurso que a esquerda mais maneja é
já esse: proíba-se, cale-se, censure-se. Está sempre pronta a inventar um
motivo, mais um pretexto para acenar com a mordaça. Nem se diga que é “combate
ao extremismo”, pois a esquerda vulgarizou o critério: quase tudo é já “extremismo”
ou assim pode ser vestido. A esquerda mostra querer construir uma democracia de perímetro limitado, cada vez mais
circunscrito. Ora, uma democracia de perímetro limitado é, no mínimo, iliberal e,
provavelmente, nem sequer democracia.
Precisamos em S. Bento de um presidente
da Assembleia da República democrata, de sólidas convicções democráticas. José
Pedro Aguiar Branco mostrou estar no lugar certo, na altura certa, com a
posição certa. O que mais me impressionou foi exprimir uma posição definida espontaneamente,
num incidente inesperado e debaixo de interpelações consecutivas. Isto é, não
foi uma engenharia planeada, mas convicções sólidas, enraizadas e amadurecidas.
Isso transmite muita confiança. A liberdade de direcção parlamentar está em
boas mãos. E é um belo exemplo para a sociedade.
José Ribeiro e Castro
Advogado e cidadão
OBSERVADOR, 21.Maio.2024
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