O mar – fonte, desígnio e destino de Portugal

 

Este artigo é a adaptação da apresentação do livro “Marinha Mercante Portuguesa”, feita pelo Presidente da Direcção da Sociedade Histórica da Independência de Portugal, José Ribeiro e Castro, em 29 de Maio de 2024, no auditório da Escola Náutica Infante Dom Henrique (ENIDH), em Paço de Arcos, no quadro das comemorações do Centenário da ENIDH.

 

Foi com muito gosto que aceitei, como Presidente da Sociedade Histórica da Independência de Portugal, o convite, formulado pelos autores, Luís Miguel Correia e Rui Reis, e pelo Presidente da Escola Náutica, Prof. Vítor Franco, para apresentar esta magnífica obra: “Marinha Mercante Portuguesa”. E é muita honra – quer pessoal, quer pela Sociedade Histórica – que apresento este livro. Disse magnífica? É pouco. Devemos dizer obra excelentíssima e verdadeiramente notável: é um novo monumento bibliográfico. E é um precioso livro de História.

Além de aos autores e à Escola Náutica Infante Dom Henrique, bem como a todos os que apoiaram e contribuíram para as múltiplas tarefas que desaguam numa edição, são devidas destacadas felicitações aos CTT e à sua área de filatelia. Muito da qualidade gráfica desta obra é devida à marca editorial dos CTT, que conheço bem: no ano passado, participei na apresentação e lançamento, na Sociedade Histórica, de outra obra extraordinária do seu plano editorial – “Castelos e Fortalezas na Raia Luso-Espanhola”, de Augusto Moutinho Borges. Os CTT, que não são uma editora, não publicam muito, publicam até pouco; mas publicam bom, publicam muito bom. Esta obra, “Marinha Mercante Portuguesa”, é também bilingue, “Portuguese Merchant Navy”, facilitando o acesso ao seu conteúdo por leitores que não partilham e não conhecem a nossa língua. O conteúdo desta obra orgulha-nos muito e envaidece-nos; e não queremos fazer segredo nem do orgulho e da vaidade, nem do seu objeto: a nossa Marinha, 200 anos da nossa Marinha Mercante. É matéria para todos conhecerem e admirarem.

Há dias, exatamente a 20 de maio, o United States Naval Institute, publicou no seu Facebook, uma bela fotografia da nossa Sagres, navegando a todo o pano, com esta legenda (em inglês, claro): “Hoje é o Dia da Marinha Portuguesa. Fundada em 1317, a Marinha Portuguesa é a mais antiga marinha a servir continuamente a nível mundial. 20 de maio foi estabelecido como Dia da Marinha para homenagear a data em que Vasco da Gama chegou à Índia em 1498 para ligar a Europa e a Ásia por mar.” Nós temos de nos orgulhar deste passado. O que não podemos é ficar apenas a ver navios, como basbaques, vaidosos tolos, pomposos inúteis. Antes devemos ter a humildade, a curiosidade e a vontade determinada de fazer igual ou melhor.

 

200 anos da nossa Marinha Mercante.

Este livro conta-nos uma parte muito relevante da nossa navegação, da nossa marinha: os 200 anos da marinha mercante, da marinha de comércio. Não é toda a marinha, nem toda a história da nossa marinha. Mas é aquela parte que mostra o lado de observação mais relevante para aferir da sua consistência, da sua robustez, da sua saúde e sustentabilidade: a economia.

O mar é só poesia, se os povos que com ele lidam não são capazes de estruturar atividades marítimas prósperas e duradouras. Isto vale para muitos setores e para os transportes marítimos também, isto é, para a marinha de comércio. Creio não falhar, se formular este axioma: está doente o país marítimo que não é capaz de desenvolver uma economia do mar abrangente, dinâmica e próspera e que não desenvolve, de forma articulada, todos os respetivos sectores, com destaque para a marinha mercante. Dizendo de outro modo, mais aplicado ainda ao caso de Portugal: um país marítimo, com muito mar, que não navega muito, é porque está doente; se calhar, muito doente. Essa doença chama-se incompetência. É um caso sério de incompetência coletiva, de incompetência geral da sociedade portuguesa e da política nacional, salvo honrosas e teimosas exceções.

Este livro, cobrindo os dois séculos da nossa marinha mercante, é a narrativa apaixonada pelos seus autores – e também apaixonante para quem lê, sobretudo, estou certo, para aqueles que andaram embarcados e são os atores desta história. É sempre uma sensação única lermos a história que vivemos e a que pertencemos.

O livro conta-nos o nascimento da nossa marinha mercante em 1820; depois, o desenvolvimento e o crescimento, atravessados pelas duas guerras mundiais; e, a seguir, o pico e o brilhante apogeu; a que se seguiu um prolongado declínio. Conta-nos também as novidades que surgiram recentemente no sector. Mas é cedo para saber se é já o renascimento que desponta, ou é apenas o declínio que parou e estamos ainda estagnados num patamar baixo. Creio – posso estar enganado – que não haverá renascimento sem um safanão visível da vontade coletiva, que, por um lado, mostre nitidamente o despertar e, por outro, aponte um futuro com ousadia e solidez. Este livro também mostra como foi feito o crescimento até chegar ao apogeu, quer por iniciativas empresariais consecutivas, quer por políticas públicas encorajadoras e até visionárias. E não havia o El Dorado dos fundos europeus… Para repetirmos a rota do sucesso, basta fazer igual ou muito parecido, em modelos adaptados às novas circunstâncias. A história é útil para isso: ensinar os erros para não repetir, explicar o bem para retomar e continuar.

 

A minha experiência pessoal.

Voltemos a esta vossa obra tão rica. Logo nas primeiras páginas, surge uma bela série filatélica, que me atraiu, levando-me de volta à minha infância e juventude. Por acaso, viajei em dois daqueles selos. Viajei no selo de 0,65 €, o Santa Maria, da Companhia Colonial de Navegação. E viajei no selo de 0,90 €, o Príncipe Perfeito, da Companhia Nacional de Navegação. A primeira foi a minha estreia no mar, em 1963, tinha nove anos de idade. Foi uma viagem com os meus pais e o meu irmão até ao Funchal (o meu pai era madeirense), fazendo o troço inicial Lisboa/Vigo/Funchal da carreira regular do Santa Maria até La Guaira, na Venezuela. A primeira viagem Lisboa/Vigo, de sul para norte, enfrentando a nortada e a respetiva pancada, foi o meu batismo de mar, devidamente comemorado com o heroico enjoo correspondente – foi o meu primeiro (e quase único) enjoo. O regresso seria no Funchal, da Empresa Insulana de Navegação, da Madeira para Tenerife, nas Ilhas Canárias, regresso ao Funchal e, de seguida, para Lisboa. A segunda viagem, no Príncipe Perfeito, foi uma viagem de longo curso de Luanda para Lisboa, no Verão ou “cacimbo” de 1970, com escalas em Las Palmas e Funchal: salvo erro, nove dias de navegação. Foi uma viagem inesquecível – como, aliás, são todas. Sem enjoos e com muitas novidades, sobretudo aqueles dias seguidos de mar, sem tocar em terra. Em 1971, viajei com os meus pais no Infante Dom Henrique, de Lisboa para o Funchal.

O que aqueles selos me fizeram também lembrar foi uma coleção de cromos, Navios e Navegadores, que o meu irmão e eu fizemos com grande empenho, creio que em 1960, tendo o nosso pai como guia.

Lembro-me de essa coleção ser muito popular nesse tempo: havia muita procura pelas suas carteiras de cromos, nas tabacarias onde as comprávamos. A coleção não era só sobre a nossa marinha mercante, mas mais alargada, e continha também navegadores. Mas, ao ver as imagens que ilustram este livro, o meu espírito voou para a memória desses cromos, onde figuravam muitos navios que eram estrelas do Despacho 100. Creio que a primeira vez que ouvi falar do Despacho 100 foi ao nosso pai, justamente quando organizava connosco a caderneta de cromos.

Essa caderneta de cromos prova outra realidade: a sociedade portuguesa desse tempo (era 1960) estava desperta para a marinha de comércio portuguesa. E considerava-a objeto de admiração e de cultivo. Se não fosse assim, a coleção teria sido um fracasso – e não foi. Pergunto: seria possível, hoje, um editor lançar de novo cromos de navios para colecionar? E será necessário fazer esta pergunta? Hoje, não estou tão atento às cadernetas, mas só me apercebo de cromos de jogadores de futebol – que também havia quando era criança: os “bonecos da bola”.

Dos cromos passámos para os postais. As companhias de navegação costumavam editar postais representativos dos seus navios, para uso a bordo de cada um, mas que podiam obter-se no exterior – ou os conseguimos todos, ou quase todos. Também esta coleção estava sob orientação do meu pai. E lá estavam de novo as grandes estrelas do Despacho 100, belos navios da CNN (a Nacional) e da CCN (a Colonial), da Empresa Insulana de Navegação e da Sociedade Geral. Foi nesses postais que aprendi e registei a diferença dos gémeos Vera Cruz e Santa Maria: o primeiro tinha quatro janelas na frente do deck principal, o segundo apenas três. Que ninguém diga que os postais não educam.

O meu pai, como já perceberam, tinha enorme paixão pelo mar, pelos navios, pela marinha. Era ilhéu, madeirense, nascido no Funchal. Com três meses, foi viver para S. Tomé e Príncipe – e foi de navio, é claro. E com três anos foi para Angola, onde viveu em Moçâmedes, em Benguela, no Lobito e em Luanda, mudando sempre de navio, exceto entre Benguela e Lobito. O meu avô era diretor de Alfândegas. Nessas cidades angolanas, vivia defronte para os navios e acompanhando o seu movimento. E, nesses anos de Angola, fez várias viagens para reencontros familiares na Madeira e de regresso a África – viagens que demoravam um pouco do que a que fiz no Príncipe Perfeito. Veio daí a sua paixão, que quis muito explicar e transmitir ao meu irmão e a mim.

Foi servidor de Estado toda a sua vida, com exceção de um período de dois anos de atividade privada, em que foi – estava escrito… – administrador executivo da Empresa Insulana de Navegação. Não direi que foi o trabalho de que mais gostou de fazer, porque ele gostava muito do que fazia e tinha de fazer. Mas, na Insulana, havia qualquer coisa de especial: o mar, os navios. Adorava a estrela da companhia, o paquete Funchal, em que já tínhamos navegado no regresso daquela viagem no Santa Maria, em 1963, como referi. Recuando mentalmente à sua juventude, admirava, deliciava-se com os velhos Carvalho Araújo e Lima, nomes que pronunciava sempre com carregado sotaque madeirense. No Lima, viajámos uma vez, em 1968, num original cruzeiro às Berlengas, antes de seguir para abate. No Carvalho Araújo, sempre adornado, nunca viajámos, embora o visitássemos algumas vezes. Foi o meu pai que tratou da compra do Angra do Heroísmo, salvo erro, a Israel; nele fizemos em 1967, uma viagem aos Açores, maravilhosas ilhas (São Miguel, Terceira e Faial). Mas a nossa coroa de glória, do meu irmão e minha, foi a bordo do Terceirense, um pequeno cargueiro muito usado no transporte de gado vivo dos Açores para o Continente, a aventurosa viagem que fizemos, em 1968, do porto de Aveiro para Leixões. Uma proeza ao jeito de Vasco da Gama! Porém, o cheiro intenso do combustível, misturado com o cheiro daquelas substâncias que as vacas deixam atrás, conjugados com a forte nortada frontal que agitava a navegação e, zelosa, assegurava que os cheiros atingiam com intensidade as nossas narinas. Resultado: um glorioso enjoo, este, sim, o último da minha curta carreira náutica. Lembro-me que era noite de S. João, dia grande no Porto, mas lembro-me pouco do João e muito mais do Gregório. Não é muito brilhante numa viagem de cerca de 38 milhas!... (O Terceirense afundar-se-ia no ano seguinte, sem danos pessoais.)

Perdoem-me estas deambulações pela minha história pessoal, que aqui deixo confiado em que a 2.ª edição do livro não deixará certamente de ser enriquecida com estes valiosos testemunhos. Mas – agora a sério – quis partilhá-las para que situem melhor qual é o meu tempo de conhecimento cruzado com a larga história narrada nesta obra.

 

Começo, apogeu e declínio. A crise prolongada.

O tempo do nosso pai, que dele ouvimos contar inúmeras vezes e, no fim, partilhámos, corresponde aos capítulos “Marinha Mercante Nacional” e “Os Anos de Ouro” deste livro – um tempo sempre a subir, dos anos 20 aos anos 70 do século XX.  O meu tempo (como o do meu irmão) é o dos capítulos “Os Anos de Ouro” e “Marinha Mercante em Democracia” – um tempo de queda, começado em maré alta, mas tombado no declínio que se iniciou na segunda metade dos anos 70.

Este livro ajuda-nos a compreender as diferentes fases destes 200 anos. Arranca com a chegada do Conde de Palmella, em 1820, e o início da operação do Restaurador Lusitano, em 1824, há exatamente dois séculos. (Gostei muito deste nome, com tonalidades do 1.º de Dezembro: Restaurador Lusitano!) O marco que inicia o tempo desta história bicentenária é a estreia da navegação a vapor em Portugal, que se alarga às rotas de longo curso, servindo o Brasil e África. Mais para o fim do século, aparecem empresas que chegaram até nós – a Insulana (1871) e a Nacional (1880) – e uma que fracassou, a Mala Real, entre outras mais efémeras. O novo século começa com o aparecimento de novos armadores, como a SG (Sociedade Geral, 1919), do grupo CUF, os Carregadores Açorianos (1920), e a Colonial (1922), fundada no Lobito, além da reformulação da Nacional.

É também aqui, que é fundada a Escola Náutica, em 1924, separada da Escola Naval, mas com que manteve e mantém relacionamento estreito. A Escola Superior Náutica Infante Dom Henrique justifica todo um capítulo próprio do livro, refletindo a rica experiência de um século. Interpreto historicamente a criação da ENIDH como sinal e expressão da consciência de que o mar não é um acaso circunstancial, mas vocação permanente do país, uma sua tarefa intemporal e perpétua, para que é preciso preparar continuamente recursos humanos qualificados. Não tenho a certeza de que todos os dirigentes em Portugal tenham esta consciência.

Voltando ao fio cronológico, é também naquela primeira metade do século XX que a nossa marinha se confronta com os efeitos das duas guerras mundiais. Houve navios atingidos e afundados, mas também beneficiámos de navios confiscados ou adquiridos em condições favoráveis. E os nossos navios foram chamados a transportar refugiados para as Américas e para a Palestina, num enorme serviço humanitário.

Terminada a guerra em 1945, o célebre Despacho 100 do Almirante Américo Tomás, então ministro da Marinha, vem revolucionar o sector, lançando e apoiando a extensa renovação da nossa marinha mercante: 70 novos navios, entre os quais nove paquetes de passageiros (construídos com grande esmero no conforto e na decoração), 45 cargueiros e quatro petroleiros. Este memorável Despacho, que privilegiava os estaleiros portugueses, estendeu os seus efeitos até aos anos 60, impulsionando a construção de navios para servirem em todas as rotas nacionais: Europa, América do Sul, Ilhas Adjacentes, África, Índia e Oriente. Grande mérito e larga visão do Estado, mas é claro que o Despacho 100 só foi possível, porque, desde finais do século XIX, havia-se desenvolvido em Portugal uma sólida e larga infraestrutura empresarial de armadores nacionais. Em 1947, juntou-se outra empresa: a Soponata, dedicada ao transporte de combustíveis.

Este livro também regista, nos seus tempos próprios, outros usos de navios mercantes, no período do Estado Novo: o transporte militar, quer logo nos anos 30, para enfrentar a revolta da Madeira, quer a partir dos anos 60, para os três cenários da guerra do Ultramar; o transporte de presos, para presídios em África; e as visitas presidenciais também aos territórios ultramarinos. E, a seguir ao 25 de Abril, o envolvimento de novo em tarefas humanitárias de socorro em situações de crise e na retirada dos que ficaram conhecidos por “retornados” e de alguns seus haveres, no contexto da descolonização.

É também neste período que a nossa marinha mercante entra em fase prolongada de crise. Na minha análise, a descolonização teve decisiva influência: como costumo dizer, para abreviar, “foi-se o ultramar… e o mar também”. Digo-o sem qualquer espécie de saudosismo, mas apenas para notar que, como esta obra bem retrata e relata, a nossa relação com o mar estava estreitamente ligada com a nossa expansão marítima e a economia das atividades marítimas principais estava muito associada às relações permanentes com os territórios ultramarinos. Por isso, seria inevitável que o sector se ressentisse do abalo que foi a descolonização. E era imperativo que fosse capaz de se reajustar rapidamente. O que o abalo escusava era de ser tão grande, quanto foi. E também não era obrigatório que o país não fosse capaz para se reajustar rapidamente.

Os autores relatam o fator que provavelmente foi o responsável por agravar o abalo e minar as condições de reajuste: as nacionalizações. Estas, indiretamente, abalaram a infraestrutura empresarial do sector, pondo-a em crise e em prolongada instabilidade. Das boas marcas de armadores nacionais que a história fizera, sobraram, em reorganização dos seus restos, a Portline e a Transinsular, e quase nenhuns navios. Foram-se os anéis e muitos dedos também.

Houve também, é claro, convém não esquecer, a concorrência crescente do transporte aéreo, que se desenvolveu muito a partir do início da década de 70, afetando significativamente o mercado.

Entretanto, parece que, a partir do fim dos anos 90 e do princípio deste século, o país voltou a lembrar-se de que tem mar e de que ele não fugiu com o ultramar – afinal, continua no mesmo sítio, para nós o navegarmos. Apareceu mais gente e novas iniciativas a interessarem-se pelo mar. Nas iniciativas empresariais, que é o que faz realmente a diferença, lembro-me apenas do Grupo Sousa (sedeado no Funchal), e das Douro Azul/Mystic Cruises (sedeadas no Porto), bem como do trabalho feito na recuperação dos estaleiros de Viana do Castelo. (Peço desculpa se omito alguém, mas levem-no à conta de desconhecimento.) Há coisas novas a surgir, já não estamos a descair, mas é pouco. Há coisas boas e prometedoras, mas não chega. Basta comparar, neste livro, as páginas dos nossos dias de hoje, com as páginas do final do século XIX e as do princípio do século XX, tudo antes do Despacho 100, para sentirmos uma estranha perplexidade que embaraça. Estamos menos pior, mas ainda não aconteceu nada de verdadeiramente muito relevante, potente e transformador.

Às vezes, penso que as políticas do mar são a nossa nova Bela Adormecida. Falta o gesto que as desperte e as ponha de novo ao serviço do desenvolvimento de Portugal e da nossa economia. Tanto que temos para fazer e continuamos encalhados!

 

O imperativo de despertar. A ideia da Comissão Parlamentar para as Políticas do Mar.

O meu envolvimento com os assuntos do mar começou pouco depois do ano 2000. Alguns éramos amigos, carolas; outros amigos ficámos por reunirmos à volta do mar e do inconformismo. Cedo notámos e sempre nos fomos dando conta de que, quanto ao mar, era preciso tratar tudo em conjunto: cantinho por cantinho, não ia dar – nunca dera, não ia dar. Era preciso pentear de novo as ideias, os interesses, as visões das pessoas quanto ao mar. Era preciso educar de novo uma visão global, como acontece quando chegamos ao cabo e, dali, vemos tudo. Não olhamos apenas o petroleiro no horizonte, ou a traineira ali à esquerda, ou o surfista lá em baixo, ou os banhistas na praia, ou o paquete de cruzeiros a partir para longe. Temos de abarcar tudo junto; e tirar desse conjunto o máximo de energia para despertar a Bela Adormecida.

Chegámos a ter a ideia de organizar um Congresso do Mar. Mas, ao fim de meses de tentativas, tivemos de nos render à evidência de ser empresa acima das nossas possibilidades. Quem for capaz de o fazer deve fazê-lo: um Congresso p’rá frente. E marcar logo outro a seguir, talvez três anos depois. Estou em crer que, com quatro Congressos do Mar, em 12 anos dávamos a volta a isto. E, depois, se tivesse funcionado, deveríamos mantê-los, de três em três anos, para a sorte não nos abandonar e nos afundarmos outra vez. Congressos com sonho, com entusiasmo e com ambição. Congressos sem dedos espetados, nem culpas assacadas, apenas com iniciativas, propostas e caminhos. Congressos de visão tão larga quanto a do mar oceano. Congressos para toda a gente, desde o Senhor Vitalino do restaurante de peixe na praia do Furadouro até ao maior armador nacional, desde o Quim banheiro na praia da Fuzeta ao Almirante CEMA. Quem for capaz de o fazer deve fazê-lo. O Congresso do Mar pode ser a alavanca que faz falta.

Nestas reflexões, ocorreu-me também outra ideia, em 2011: é preciso criar a Comissão Parlamentar para as Políticas do Mar, como uma das comissões permanentes na Assembleia da República. Eu, que já fui deputado e sei como o sistema parlamentar funciona, não tenho a mais pequena dúvida de que é a solução para o entorpecimento e a inconsequência em que muitas questões do mar acabam a patinhar, aí se arrastando anos e anos a fio. O meu irmão, oficial de Marinha, engenheiro construtor naval, secretário-geral do Forum para a Economia do Mar nos últimos anos da sua vida, ainda participou na defesa desta ideia e também acreditava muito nela.

Eu acredito em sistemas, acredito muito em sistemas. Não há eficiência sem um bom sistema, eficiente. Os sistemas são essenciais; e é preciso compreender como funcionam, para, depois, conseguir manejá-los ou agir dentro deles. Um bom sistema não resolve tudo; é preciso agir nele. Mas um mau sistema ou a ausência de sistema, mesmo que atuemos muito bem, são eficazes no mal: impedem decisões oportunas e empatam as questões. Num mau sistema, as coisas não funcionam.

O que se passa, então?

Os governos estão organizados por sectores: a economia, os transportes, a justiça, a administração interna, os negócios estrangeiros, etc. Ora, o mar não é um sector, o mar é transversal. O mar, se calhar, toca a todos as áreas governamentais: não são só a marinha de guerra e a de comércio, as pescas, os portos, mas também a educação para o mar, o desporto náutico, as indústrias navais, a aquicultura, o turismo náutico e costeiro, a investigação científica do mar, o ensino superior náutico, a fiscal

dade das atividades marítimas, etc. Por isso, o Ministério do Mar não resolve o problema. Não é que esteja errado; até pode estar muitíssimo certo e ter um ministro formidável. Mas não resolve o problema e o próprio ministro formidável vai acabar frustrado. O ministro não manda nos seus colegas e vai ter a maior dificuldade em conseguir que os seus colegas tomem, nas suas áreas, as decisões que, por causa do mar, o ministro quer que eles tomem. A razão mais inocente para o arrastamento ou o bloqueio pelos colegas é esta: a questão muito importante para o ministro do Mar, por exemplo, na área da Educação está no 18.º grau da escala de prioridades do ministro da Educação. E até pode ser que o colega nem esteja de acordo; pode dizer que sim, que vai fazer, mas, no seu íntimo, não o fará, porque não está de acordo, o seu ministério não está de acordo. Estes desconcertos acontecem em todas as áreas. Resultado: tudo anda empatado.

Com a comissão parlamentar o caso muda de figura. A Assembleia da República é o órgão do Estado que melhor organiza a transversalidade: fá-lo quanto a todo o território e todas as correntes políticas e fá-lo também quanto a todas as matérias – ali, trata-se de tudo em permanência. Se se criar uma Comissão para as Políticas do Mar, ela abarcará todas as questões, todas as valências, todos os problemas, todas as oportunidades do mar. Os assuntos do mar que têm tratamento sectorial próprio devem continuar afetos à respetiva comissão: por exemplo, a Marinha de guerra na Comissão de Defesa Nacional. Mas a Marinha também irá à Comissão do Mar, quanto a tudo o que releve para o tratamento integrado das políticas do mar e não seja matéria estritamente militar.

A Comissão Parlamentar para as Políticas do Mar é o sítio, no Estado português, onde o mar se senta. É o sítio onde, através dos seus vários actores, o mar se senta para ter com o Estado, em permanência, uma conversa séria. Dir-se-á: ah! mas a comissão não governa, a comissão não tem poder. Não é assim. A comissão tem poder: tem o poder de fiscalização do governo, pressionando-o e obrigando-o a responder, sempre que necessário. E, através deste poder, condiciona-o e força-o a agir.

A Comissão pode chamar todos os ministros, pode chamar qualquer ministro ou secretário de Estado a prestas contas e impeli-lo a agir. É aqui que tem mais poder do que o ministro do Mar. Recordemos, há pouco, o exemplo do ministro da Educação, que não cuidava com a celeridade devida de um dado assunto do mar, porque estava apenas no 18.º grau do seu interesse. A comissão chama-o e esse assunto passa logo a estar no topo da sua agenda, no 1.º grau do seu interesse. Impasse resolvido! E, se o atraso da questão se devia à discordância escondida do ministro da Educação, a comissão pode expor a contradição política entre os dois ministros, que ou será logo resolvida pelos efeitos do jogo parlamentar, ou o primeiro-ministro terá de intervir. Impasse resolvido! Ou seja, em síntese, esta comissão é a melhor aliada do ministro do Mar ou do secretário de Estado, se existirem: garante que nada fica esquecido, garante que tudo é tratado em conjunto, de forma coerente e permanente.

A Comissão Parlamentar para as Políticas do Mar será, na verdade, um elemento transformador fundamental. E traz outros benefícios: aproxima as políticas do mar das direções de todos os partidos com assento parlamentar e a relativa estabilidade dos deputados, seus membros, de legislatura em legislatura, garante a continuidade dos eixos principais e das grandes prioridades nacionais nas políticas do mar, independentemente de quem está no governo e na oposição. É um estabilizador do médio e longo prazo.

Por isso, é tão importante consegui-la. O renascimento poderoso da nossa marinha mercante e de tudo o que lhe está associado também pode depender dela. Ela pode gerar o clima favorável a um Despacho 200 no século XXI, para renovação da nossa frota mercante. Pode ser a câmara que constrói e afirma essa reivindicação, no momento em que a experiência mostre que estamos maduros para isso e a necessidade continuar a existir e a chamar. Repito o que disse há pouco: a Comissão Parlamentar para as Políticas do Mar é o lugar, no Estado português, onde o mar se senta, para dialogar, contar-se, propor e exigir. É, no plano político, o guichet único do mar.

Para conseguirmos essa nossa comissão, temos de continuar a pregar e a insistir. E, no momento das decisões orgânicas na Assembleia, não descansarmos no lobby bem dirigido e persistente. É por uma boa causa. É por uma causa essencial. Mas, para isso acontecer, é também indispensável que todos os sectores do mar chamem regularmente pela comissão. Em cada problema – e são tantos – que está atrasado, que está entupido, que não anda, os profissionais e os dirigentes dos vários sectores náuticos, devem dizer isto, publicamente e muitas vezes: “Pois… se a Comissão Parlamentar para as Políticas do Mar existisse, isto já estava resolvido.” Noutro problema, noutro sector do mar, o mesmo estribilho: “se a Comissão existisse, já estava resolvido”. E assim sucessivamente: dizer e ser bem ouvido. É indispensável habituar bem os ouvidos dos deputados e dos dirigentes partidários que é mesmo isto que os sectores do mar querem. Para não terem dúvidas. É também uma etapa decisiva de afirmação de poder. O mar pode ou não pode? O mar pode ou não pode? Claro que pode.

 

 

Um acicate para navegar de novo à descoberta do futuro.

Este livro, de Luís Miguel Correia e Rui Reis, constitui também um poderoso acicate. Não é um livro de história náutica apenas para nos deleitarmos com ele e irmos dormir: que bom que foi. É uma chamada. Mostra-nos que, noutro contexto, noutras circunstâncias, já fomos bem melhores do que somos hoje. Sabemos, aliás, que é assim noutros sectores do mar: nas pescas, na Marinha de guerra, na construção naval, na reparação naval, e por aí fora. Já estivemos melhor. E, portanto, o livro mostra-nos que não temos o direito de deixar que as coisas continuem assim. Não temos direito à preguiça, não temos direito à tibieza, não temos direito ao conformismo, não temos direito ao medo, não temos direito à falta de iniciativa.

O mar, um dos elementos mais definidores da nossa identidade portuguesa, continua no mesmo sítio à nossa espera. Pede-nos atenção, pede-nos inteligência, pede-nos ousadia, pede-nos coragem, pede-nos investimento, pede-nos trabalho, pede-nos decisão, decisão, decisão.

Quando estudei esta obra para a apresentar, passou-me pela cabeça que D. Dinis, grande rei, que fundou a nossa marinha, gostaria certamente de o ler e de olhar as suas ilustrações. Mas, neste momento, creio também que D. Dinis não gostaria nada de ver o estado em que nos encontramos, quando já estivemos onde estivemos. De facto, não pode ser. A indiferença e a moleza têm de acabar.

Se esta obra, além da obra em si mesma, pode contribuir para algo de muito valioso, não é apenas ajudar ao despertar que é imperativo e urgente. É provocar diretamente esse despertar em nós. E, tocados pelo seu conteúdo e pelo seu espírito, levar-nos a despertar toda a gente – os homens e mulheres do mar, os deputados, os partidos, os jornalistas, os professores, as gentes das letras, os técnicos, os cientistas, os militares e os civis, a sociedade e o Estado – para que o mar, a sua economia, o seu valor ambiental e climático, sejam colocados na linha da frente da agenda nacional.

Vamos embora. Não queremos ser um país marítimo que navega poucochinho. Navegar é preciso.

Agradeço à ENIDH e aos CTT. Muito obrigado, sobretudo, a Luís Miguel Correia e a Rui Reis. Muito obrigado e parabéns! É uma obra notável. Inspiradora. Desafiante.

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