SCUT p’a mim, SCUT p’a ti, buraco p’ra todos
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problema das SCUT é basicamente um problema
financeiro. E foi sempre mal resolvido. Foi mal resolvido quando começou nos
governos Guterres, que, pelo ministro João Cravinho, cunharam em Portugal o
conceito e lançaram o seu desenvolvimento a partir de 1999. Digo “mal
resolvido”, porque, apenas poucos anos passados, o país estava repetidamente à
porta de violar os limites do défice. Cresceu continuamente a pressão de adoptar
medidas extraordinárias para acorrer ao défice excessivo e todos buscavam o
furinho por onde se esvaíam as finanças. As ideias eram muitas, porque eram
muitos os furinhos e para variados gostos.
Uma das
ideias apontava às SCUT, cujo impacto orçamental era já elevado – e sobretudo o
peso anual dos encargos aumentava significativamente no horizonte. SCUT queria
dizer “sem custos para utilizador”, mas podia também dizer-se sem custos para o
decisor. O decisor só tinha vantagens: fazia um brilharete à borla; e as
facturas mais pesadas ficavam para os governos seguintes.
O governo
Durão Barroso foi o primeiro a apanhar com a pastilha: desabafou cruamente, ao
receber o choque, que o país estava de tanga. Então, foi subindo de tom, quanto
às SCUT, a discussão do princípio do utilizador-pagador, isto é, quem usa, paga.
O governo teve vida curta. Não fez alterações estruturais, rolando o problema
para os dois governos Sócrates. O primeiro beneficiou de novas regras europeias
para gerir o défice, viu aliviada a pressão das SCUT e pôde até permitir-se
expandir despesa. O segundo, com conjuntura desfavorável, rapidamente viu o
garrote apertar-se e expôs as suas debilidades financeiras à mostra. O rating
do país caiu quase a pique e o governo foi de PEC em PEC até à queda final. Uma
catástrofe, de que só os suspensórios da troika nos salvaram de ser
total. Mesmo rapando o tacho, o último défice de José Sócrates ultrapassou os
10%. A grande festa da despesa pública, sem gestão, nem controlo, conduzira-nos
aqui. As SCUT também tinham feito parte desse festim. Por isso, no meio dos PEC
lançados pelos socialistas, tentando travar o escorrega para o abismo, o
princípio do utilizador-pagador ganhou o palco: as SCUT passaram a pagar
portagem.
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proveito para
referir uma ideia que tive nesse período final dos governos Sócrates. Sempre me
pareceu que não era boa solução pôr portagens em estradas que haviam sido
concebidas e construídas para as não ter. E atraía-me a solução austríaca para
a sua rede quer de Autobahnen, quer de Schnellstrassen: uma
vinheta, para períodos e com preços variáveis, que todos os condutores de
veículos automóveis têm de comprar para circular em qualquer troço da rede
geral.
Este modelo,
que experimentei algumas vezes, parecia-me o mais adequado ao nosso problema.
Desde logo, respondia por inteiro ao que era um problema financeiro, permitindo
grande flexibilidade e plasticidade. Conhecidos, de um lado, o total anual a
pagar às concessionárias e, do outro, o número de veículos em circulação, era
fácil calcular quanto cabia a cada vinheta, consoante o seu período de tempo
(por exemplo, semana, 15 dias, mês, trimestre, ano) e a categoria de veículo
(ligeiro, pesado ou motociclo). A vinheta podia seguir um regime mais favorável
para o residente face ao utilizador ocasional (por exemplo, o turista), através
de um custo/dia muito baixo na vinheta anual e elevado na vinheta semanal ou
mensal. A vinheta era uma solução do tipo utilizador-pagador, mas em regime de
solidariedade entre todos os condutores e sobre a totalidade da rede, o que
redistribuiria os encargos e não penalizaria apenas os mais dependentes das
SCUT. A introdução da vinheta permitia manter os contratos tal como estavam,
não havendo que os rever com as concessionárias, como aconteceu por causa das
portagens, o que acarretou grandes prejuízos para o Estado, segundo constou.
Não haveria que instalar os pórticos, nem outra parafernália técnica, o que
gerou novos custos elevados – houve relatos de custos de cobrança próximo do
valor cobrado e, às vezes, superiores. A vinheta era de fácil cobrança, estando
à venda em postos de combustível, recepções de hotéis, tabacarias, etc., e de
fácil controlo pela polícia, sem os sérios problemas que se colocaram para as
cobrar a visitantes. Também não teria gerado a revolta de muitos utilizadores,
nomeadamente em regiões mais críticas do país, revolta que nunca desapareceu.
Enfim, era também uma solução fácil de gerir, ano após ano, à medida que o
problema fosse sendo digerido e se dissipasse.
Como
deputado, apresentei e defendi a ideia em reuniões do grupo do CDS. Em três
ocasiões separadas, a maioria manifestou concordar. Mas, depois, a proposta
acabou por não ser apresentada. O colega que se ocupava da área disse-me que
recebera orientação para o não fazer: na altura, quem governava era o PS e quem
lhe deu a orientação não queria que o CDS aparecesse a assumir um problema do
PS. Não concordei, mas nada podia fazer. E, entrados na via da aplicação das
portagens, a minha ideia foi perdendo espaço e oportunidade.
Nos anos
seguintes, ocorreram vários problemas: renegociação dos contratos, disparos de
tiros contra pórticos, espanhóis que entravam e saíam sem pagar (nem saber
como), e muitos outros. Limitava-me a comentar com o meu colega: “Se fosse a
vinheta, não era assim.” E assim ficámos com um sorriso e um encolher de
ombros.
A seguir, no
quadro da troika, a situação esteve sob vigilância apertada, como outras
áreas com pesados encargos. E, nos governos de esquerda, o da geringonça e os
seguintes, o PS manteve as portagens nas SCUT, nunca acabou com elas. O discurso, na quinta-feira, de Carlos
Guimarães Pinto da IL, na Assembleia, foi de antologia, a expor e desmontar,
folha a folha, a hipocrisia do PS em votações consecutivas ao longo dos últimos
oito anos.
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gora, as SCUT
atacaram de novo. O populismo fez rufar os tambores ainda na pré-campanha
eleitoral. A 27 de Janeiro, Pedro Nuno Santos proclamou: “Nós fizemos uma
maldade a grande parte do território. Não tínhamos esse direito. Temos de repor
a justiça e o respeito por quem vive e trabalha no interior do país.” E
anunciou: “Ao longo dos últimos anos, nós temos feito um esforço para
reduzir as portagens. Nós não vamos reduzir mais as portagens no interior. Nós
vamos eliminar as portagens no interior do país e no Algarve.” Dois dias
depois, André Ventura juntava-se: “Não haverá acordo à direita sem apoio ao
fim das portagens.” Posto o que, seguiu por aí fora.
Foi isto que
vimos na semana passada, na Assembleia da República: o Chega a dar o braço ao
PS e ao resto da esquerda para socavar o terreno por baixo do governo AD. E
depois? Não foi isso mesmo que prometeram? Não deveriam cumpri-lo? Não, não
deviam.
Não têm
maioria de governo, não podem tomar medidas de governo. A Constituição diz que “o
Governo é o órgão de condução da política geral do país e o órgão superior da
administração publica.” Por isso, a Assembleia não deve instrumentalizar a
formação de maiorias para usurpar o papel constitucional que é o do Governo,
subordinando o seu poder de condução da política geral e minando a sua
capacidade de direcção da administração pública. E não o pode fazer, sobretudo,
na área especialíssima – e extremamente sensível – da política orçamental e da
responsabilidade financeira. Já que estamos a falar de estradas e de alta
velocidade, é bom que se lembrem que não há pior para as finanças do que pô-las
em derrapagem.
Não nos
esqueçamos de que as SCUT são, desde o princípio, uma questão financeira,
sempre maltratada até ter estoirado. E estoirou mesmo – não é figura de
retórica. Como Sócrates que nos entregou à troika, não nos esqueçamos de
que o descontrolo das contas se paga com língua de palmo. Pedro Nuno e Ventura
não têm o direito de fazer o que estão a fazer com as portagens e o IRS, porque
não estão à frente da gestão das contas públicas, nem têm mandato para isso. Não
façam jogos de palavras, nem brincadeiras com a nossa segurança económica e
financeira.
Além de
completamente irresponsável, é também cobarde este modo político de gerar
encargos a terceiros sem arcar com os seus efeitos e as consequências. As
finanças são um conjunto, não são segmentáveis; reclamam ser geridas pela mesma
mão, sob o mesmo critério. Só pode assumir o mando nas finanças do Estado – que
o mesmo é dizer o dinheiro dos contribuintes – quem o assumir por inteiro, na
avaliação, no seguimento, nos critérios de gestão e a cada decisão oportuna ou
estrutural. Tudo o mais que o contrarie põe em risco o país, a estabilidade e
os contribuintes. São movimentos de salteadores de bancada, que a democracia
não pode consentir, nem albergar.
Pedro Nuno
Santos e André Ventura estão a assumir o que se chama o governo de Convenção,
um modelo da história revolucionária, com desastre garantido. É bom que se
desmascarem de vez e o assumam por inteiro, o cavaleiro e o seu valete. Não se
trata, aliás, de uma “coligação negativa”, como alguns comentam. Ao fazerem a
Assembleia da República tomar medidas, é uma coligação positiva: não uma
coligação que rejeita, coincidindo por acaso; é uma coligação que aprova,
convergindo porque quer.
Os líderes do
PS e do Chega não podem continuar como o Senhor Feliz e o Senhor Contente do
regime, os dois estarolas do trolaró eleitoral, da campanha que foi e da
campanha que há de vir. Nem fizeram intervalo. Estão mexendo no meu bolso, como
cidadão e contribuinte – e isso, não têm o direito de fazer.
José Ribeiro e Castro
Advogado e cidadão
OBSERVADOR, 6.Maio.2024
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