Este ímpar 4 de Junho
Adaptação do discurso do Presidente da Direcção da Sociedade
Histórica da Independência de Portugal, José Ribeiro e Castro, na abertura da
sessão solene do Dia da SHIP, no Salão Nobre dos Paços do Concelho, em 4 de
Junho de 2024. O motivo da data e da localização extraordinárias deveu-se à
realização de obras no Palácio da Independência.
A Sociedade Histórica e a Câmara Municipal de Lisboa
As minhas primeiras palavras vão para o nosso anfitrião, o Presidente da
Câmara Municipal de Lisboa, Eng.º Carlos Moedas, nosso amigo, pela extrema
generosidade do seu gesto – e da Câmara –, ao acolher no Salão Nobre dos Paços
do Concelho esta nossa sessão solene anual, na circunstância do impedimento da
nossa sede no Palácio da Independência, por motivo das obras de reabilitação. É
caso para dizer que, olhando a estas obras iniciadas em Fevereiro, a Câmara
Municipal de Lisboa garante serviço completo: não só financiamento, mas também
realojamento. Muito, muito obrigado, Senhor Presidente!
Este gesto coroa uma longa relação entre a Sociedade Histórica da
Independência de Portugal e a Câmara Municipal de Lisboa, desde a nossa
fundação em 1861. Houve, aliás, fundadores nossos que foram Presidentes da
Câmara Municipal de Lisboa, como, por exemplo, Anselmo José Braamcamp e o nosso
primeiro Presidente, António Esteves de Carvalho, barão de Santa Engrácia.
Desde então, antes ainda da instituição em 1910 do feriado nacional do 1.º de
Dezembro, houve vários momentos de estreita cooperação entre a Câmara Municipal
e a Sociedade Histórica, sobretudo em acções culturais, cívicas ou
comemorativas. O momento mais brilhante desta cooperação patriótica foi a
edificação do Monumento aos Restauradores, inaugurado em 1886: a nosso insistente
pedido, foi decidido pelo município (que escolheu e destinou o espaço de implantação);
foi financiado por subscrição popular lançada pela Comissão Central 1.º de
Dezembro de 1640, como então nos chamávamos; e o seu projecto resultou de um
concurso decidido por uma comissão de que também fazíamos parte. E foi o
feriado nacional do 1.º de Dezembro que selou a parceria que se mantém até aos
dias de hoje, quanto às comemorações desta data.
Em Outubro de 1910, o governo provisório instituiu o feriado do 1.º de
Dezembro, dedicado “à autonomia da Pátria portuguesa”;
e, no fim de Novembro, acrescentou-lhe ainda o significado de “festa da
bandeira”. Por isso, o primeiro 1.º de Dezembro, celebrado em 1910 ao modo
moderno de feriado, o “Dia da autonomia da Pátria portuguesa e da Bandeira”,
foi o dia de apresentação e exaltação da nova bandeira nacional, através de um
grandioso cortejo que ligou a Praça do Município à Praça dos Restauradores,
como conta o Diário de Notícias, na edição do dia 3 de Dezembro de 1910:
«Logo que a bandeira assomou à porta do
edifício, o povo que se aglomerava no Largo do Município rompeu numa grande
salva de palmas, que se prolongou pelo espaço de alguns minutos, sendo
executada A Portuguesa pela banda da Guarda Republicana. O povo
aglomerado em massa era contido pelos militares e por alguns membros das Juntas
de Paróquia. A banda da Guarda Republicana rompeu novamente com A
Portuguesa e, precedendo os batalhões, principiou marchando por entre o povo,
abrindo caminho com dificuldade. O cortejo, composto por milhares de pessoas,
voltou para a Rua do Comércio, subiu pela Rua Áurea até ao lado ocidental do Rossio,
entrando na Praça dos Restauradores, onde se encontrava o Presidente da Comissão
Central 1.º de Dezembro (ou seja, o meu ilustre antecessor) e uma enorme
multidão, a rodear o Monumento da Restauração de Portugal. A multidão na Praça
era enorme, vendo-se as ruas carregadas de populares e as janelas dos prédios
repletas de pessoas. Era meio-dia menos um quarto, quando o cortejo chegou ao
seu destino, contornando pela direita do Monumento. A banda e a Companhia da Escola
do Exército formaram ao lado, com a frente para o obelisco. Em seguida, o
alferes José Rodrigues adiantou-se da escolta e, auxiliado por um indivíduo,
colocou sobre ele a haste da bandeira, ao mesmo tempo que a banda da Guarda
Republicana executava A Portuguesa e a guarda de honra apresentava armas. Uma
girândola de foguetes subiu ao ar nesse momento e a guarda de honra perfilou-se
em continência em volta do Monumento. A bandeira ficou, então, flutuando no
lugar que lhe fora destinado para ser saudada pelo povo.»
Que grande primeiro 1.º de Dezembro foi esse!
Creio não constar dos nossos registos que o meu ilustre antecessor, há
pouco referido, tenha vindo, pouco depois, de casaca e cartola, como era de
uso, agradecer, aqui, ao Presidente da Câmara, esse marco extraordinário das
nossas relações institucionais. Por isso, venho eu, em sua memória e
representação, embora sem cartola, nem casaca, agradecer à Câmara Municipal de
Lisboa, na pessoa de V. Ex.ª, Senhor Presidente, todas as gentilezas, as
atenções, a boa cooperação, o apoio aberto, com que o Município da capital tem
brindado esta modesta e generosa instituição patriótica, em moldes decisivos para
podermos prosseguir a nossa missão e realizar os eventos comemorativos. É assim
desde esse primeiro 1.º de Dezembro, e mesmo anteriormente, até a esta sessão
solene de hoje e, mais além ainda, pelo apoio indispensável às obras do Palácio
da Independência, em que a CML se substituiu às obrigações do Estado. Bem-haja,
Senhor Presidente. Agradeço-lhe muito a si, mas aqui deixamos igualmente a
expressão da nossa gratidão a toda a vereação e à Assembleia Municipal de
Lisboa. O Município de Lisboa sabe que tem na Sociedade Histórica, enquanto possuidor,
gestor e utilizador do Palácio da Independência, um parceiro leal e
imaginativo, patriota, que quer pôr ao serviço da cidade e do país o património
de que é guardião, trabalhando os seus valores nacionais em novas dinâmicas
populares e jovens, enraizando a vivência e o conhecimento da História em todos
os portugueses e também daqueles que nos visitam e têm imensa curiosidade sobre
nós. Cremos que este é um enorme capital para a cidade de Lisboa.
Um programa cheio
O programa de hoje tem vários momentos importantes com diversos motivos
de interesse.
Começamos com a intervenção do Presidente da Câmara Municipal, a que se
seguirá a palestra sobre a bula Manifestis probatum pelo nosso Patriarca
de Lisboa, Senhor D. Rui Valério, tão novo em funções e já tão querido de nós
todos. Apenas uma pequena nota, uma vez que aqui voltarei, para recordar a
decisão da minha anterior Direcção de celebrarmos, todos os anos, junto com o
Dia da SHIP, este último marco da nossa fundação, liderada por D. Afonso
Henriques: o acto por que o Papa Alexandre III reconheceu, em 1179, a independência
do Reino de Portugal. E porquê? Porque, estando nós a desenvolver um projecto
de celebração larga dos 900 anos de Portugal, queremos tornar mais familiar aos
portugueses esse último marco da fundação, o menos falado de todos e, no plano
internacional, talvez o mais importante.
De seguida, teremos o momento camoniano. Em pleno 5.º Centenário do
nascimento de Camões, não podíamos esquecê-lo no nosso dia solene.
Apresentaremos o programa que estamos a preparar; exibiremos um projecto muito
interessante e original, que chamamos de O Novo Manuscrito d’Os Lusíadas,
um projecto familiar de extremo valor, que estamos a apoiar intensamente para
procurar concluí-lo dentro do 5.º Centenário e em que o Eng.º Carlos Moedas e o
Senhor D. Rui Valério terão uma participação surpresa, aqui diante de nós;
ouviremos a palestra do Prof. José Carlos Seabra Pereira, o director do nosso
Programa Camoniano; e remataremos com Camões a falar-nos pel’Os Lusíadas
do que se passou na nossa terra há 900
anos, uma forma simbólica de cruzarmos o 5.º e o 9.º centenários.
Seguidamente, outro momento alto da sessão e, em cada ano, uma das marcas
mais fortes da Sociedade Histórica: a atribuição e entrega do Prémio Aboim
Sande Lemos – Identidade Portuguesa. É um Prémio tornado possível pela
generosidade do seu instituidor, Coronel Manuel Aboim Sande Lemos, antigo
Presidente do nosso Conselho Supremo. O Prémio está a caminho de completar 40
anos – a primeira atribuição foi em 1988 –, distinguindo personalidades ou
instituições em categorias diversas, que rodam em modo trienal. Nesta
atribuição do Prémio, a categoria era de Ciências, tendo a escolha do júri
recaído no Prof. Nuno Crato, um destacado cientista e matemática e também um
grande ministro da Educação, que deixou marca na cultura de exigência, de rigor
e de aproveitamento que quis introduzir e consolidar no nosso sistema de
ensino. Por isso, ouviremos, com muito interesse e curiosidade, o Prof. Nuno
Crato falar-nos de duas visões da Educação.
Finalmente, a assinatura do protocolo pelo qual o Movimento 1.º de
Dezembro (que se autoextinguiu, por ter cumprido a missão) transfere todo seu património
moral para a Sociedade Histórica da Independência de Portugal. E, já fora deste
Salão Nobre, dois momentos artísticos: a inauguração de uma exposição de
fotografia, a terceira desta série; e a actuação, certamente notável, da Banda
Sinfónica do Exército sob o lema “Por
Portugal e por Camões”. Fecharemos, assim, com chave de ouro!
Os 900 anos de Portugal, magnífico património
O essencial que tenho, hoje, a afirmar é o esforço em que estamos, desde
há alguns meses, para reforçar o nosso compromisso com a História de Portugal e
a sua divulgação, em Portugal e no mundo – como é a nossa razão de ser –, através
do projecto que definimos para assinalar, dar a conhecer e comemorar os 900
Anos de Portugal. É um projecto de visão larga, ancorado nos quatro marcos
principais da fundação de Portugal – batalha de São Mamede (1128), batalha de
Ourique (1139), conferência de Zamora (1143) e bula Manifestis probatum (1179).
Como às vezes digo, desde o primeiro artigo de imprensa que escrevi sobre o
assunto, são 50 anos para comemorar 900, meio século para assinalar nove
séculos. Não se trata obviamente de estar em festa todos os dias, o que seria
um disparate. Mas trata-se de mostrar que a brisa inspiradora dos 900 anos
sopra por todo esse largo período. Este será um modelo original de comemoração
do 9.º centenário, que nunca assim foi feito e que acredito que nunca mais
deixará de fazer-se assim, tirando partido da riqueza da História e
valorizando-a. Portugal não se fez num só dia, em que viesse um representante
do Rei de Leão arrear o seu estandarte e nós subíssemos a nossa bandeira. Portugal,
na verdade, nem se fez num só ano. Portugal fez-se por um longo processo, que
tem, aliás, antecedentes antes de 1128, e que se prolongou muito para além de
1179, nunca acabando até aos nossos dias de hoje. É tudo isso que queremos dar
a conhecer e celebrar o que é para celebrar, nos momentos próprios.
Há um outro sub-projecto, articulado com este, que intitulámos “Forais da
Fundação, Municípios de Portugal”, destinado a celebrar os 60 forais dados D.
Afonso Henriques, nosso primeiro rei, bem como por sua mãe e por seu pai, D.
Teresa e D. Henrique, desde a criação do Condado Portugal. O ano passado foi
Viseu e Porto, tendo Viseu feito um trabalho magnífico, razão por que queremos
confiar ao Município de Viseu a coordenação executiva deste sub-projecto,
cabendo à Universidade de Coimbra a coordenação académica. Neste ano, será a
vez de Sernancelhe celebrar os seus 900 anos e, no próximo ano, Ponte de Lima. O
refrão que estamos a fazer ecoar é: “As terras que fizerem Portugal já estão a
festejar 900 anos.” (E, a partir de 2044: “As terras que fizeram Portugal
também estão a festejar 900 anos.”) Além da homenagem a essas terras e ao
aprofundamento do papel que os forais tiveram na construção da nacionalidade,
este é um poderoso instrumento para enraizar o espírito dos 900 anos por todo o
país, não o encerrando nas elites, no litoral e nas maiores cidades. Queremos
Portugal celebrado por Portugal inteiro.
Falámos algumas vezes com o Presidente da República, que conferiu já
oficialmente o seu Alto Patrocínio ao projecto dos Forrais e, em discurso, declarou
o mesmo apoio ao projecto principal. E já iniciámos conversações com o governo para
definirmos processos mais sólidos de desenvolvimento. Queremos começar em 2025,
em Zamora, em 8 de junho, domingo de Pentecostes, para comemorar os 900 anos do
dia em que Afonso Henriques, muito jovem, a si mesmo se armou Cavaleiro na
catedral leonesa. Gostávamos que o Presidente da República presidisse a essas
primeiras cerimónias em Zamora e tem já em preparação um primeiro Congresso dos
900 anos, para se realizar em Zamora, que abriria em 8 de Junho e se
prolongaria até ao dia 10 de Junho, terça-feira – parece até que o calendário foi
feito de propósito para nós. Já fizemos alguns preparativos há um ano e nos passado
18 e 19 de Maio, junto com a Grã Ordem Afonsina de Guimarães, e encontramos em
Zamora grande alegria e entusiasmo com a perspetiva de acolherem esse arranque
em 2025. Não será já os 900 anos de Portugal, mas os 900 anos do seu anúncio:
Afonso Henriques ter-se armado cavaleiro daquela forma foi o primeiro sinal de
que o Reino de Portugal estava a chegar.
No quadro desse círculo largo, não vamos apenas escrutinar o Portugal
medieval do nosso nascimento, mas prevemos aprofundar outros factos da
definição do nosso território e da construção da identidade portuguesa. Por
exemplo, o reinado de D. Dinis terá de merecer atenção especial por ter fixado
o português como língua oficial e fundado a Universidade e a nossa Marinha. Em
2025, assinalaremos também os 600 anos do início do povoamento da Madeira,
assim como abraçaremos o 6.º Centenário do descobrimento dos Açores, de 1427 a
1452, com isto querendo realçar que Portugal é dos raros países, senão o único,
cuja formação do território se concluiu não por uma conquista, mas por
descobertas.
Somos uma história rara, uma história ímpar. 900 anos é uma marca
extraordinária e, nas mesmas fronteiras, um caso único na Europa e no mundo.
Seríamos até uma empresa improvável, para quem nos visse naqueles anos de
começo. Não havia portugueses, antes de haver Portugal. Quando nasceu o Reino
de Portugal, nós éramos aqueles que pr’áqui estavam e no território que fomos
conquistando para Sul: uma mistura que aqui estavam, como lusitanos e iberos, e
outros que foram chegando e, quando partiram, deixando alguns para trás:
fenícios, celtas, visigodos, suevos, alanos, mouros, judeus, moçárabes. De
todos estes, e mais alguns, nos fizemos, com uma mesma religião – o cristianismo
– e o mesmo soberano – o rei de Portugal. É a nossa primeira proeza da História
– termo-nos feito. Muitos daqueles tinham atravessado a Europa e, aqui, pararam,
por uma razão simples: o mar era um obstáculo, que não sabiam atravessar.
Quando aprenderam, atravessaram-no; e navegaram por todos os oceanos, tocando todos
os continentes. É a nossa segunda proeza da História: os Descobrimentos,
revelando novos mundos ao mundo.
Sei que, hoje, há muito ruído em torno desta palavra, “Descobrimentos”, e
da sua ideia, associando-lhe, com má-fé, a escravatura e o colonialismo. É um
erro crasso: este feito maior da nossa História, os Descobrimentos, grande e
incontornável contributo português para a História da Europa, do Mundo e da
Humanidade, não pode ser amarrado aos regimes políticos e económicos dos tempos
em que se desenvolveu. Ninguém confunde a cultura grega clássica e os seus
prodígios na poesia, no teatro, na filosofia, na arquitetura e na arte
escultórica, com a escravidão que se desenvolvia nesse tempo (e continuou), nem
com as colónias que implantou nas costas do Mediterrâneo. Ninguém confunde a
pujança referencial do Império Romano e da cultura latina, na literatura, no
Direito e em todas as artes, com a escravidão que abundava (incluindo o tráfego
negreiro, trazido pelos árabes), com os sacrifícios humanos e a crueldade atroz
do circo, como diversão popular, e com o esmagamento militar e submissão de
diversos povos, do Ocidente ao Oriente da Europa, e do Norte de África à Ásia
Menor. No seu território imperial, Roma deixou, para falarmos só das línguas
nacionais, cinco línguas latinas e a Igreja Católica mantém o próprio latim,
como sua língua oficial e de união – os woke ainda não se lembraram de proibir
o latim e obrigar-nos a vomitar as línguas latinas, indo buscar, em troca, um
qualquer dialeto perdido nas profundezas históricas do passado. Seria ridículo se o fizessem, mas trágico se o
conseguissem. Ninguém, por exemplo, confunde a descoberta das rotas do
Mediterrâneo, um feito da Antiguidade Clássica e antes ainda, pelos povos
ribeirinhos (fenícios, egípcios, gregos, cartagineses, romanos, árabes), com a
tragédia que, desde há anos, tinge de luto o Mediterrâneo pelo tráfego de seres
humanos e o transporte em condições inimagináveis de milhares de imigrantes
africanos e asiáticos que tentam a sua sorte. Iremos amaldiçoar o Mediterrâneo
e as sua rotas e rogar pragas aos que as descobriram, há mais de dois milénios?
Essas questões, a escravidão e o colonialismo, têm de ser encaradas na
sua propriedade, assim como no seu entorno e substância. Além disso, temos de
sublinhar que ambas terminaram, enquanto mecanismos legais, mais cedo a
primeira (há 150 anos) do que o segundo (há 50 anos). Aquele é um facto que não
pode ser diminuído, antes devendo ser divulgado, conhecido e exaltado: a
escravatura acabou porque se cruzou com o Ocidente. É costume dizer: primeiro,
estranha-se, depois, entranha-se. Aqui, foi ao contrário: primeiro,
estranha-se, depois, desentranha-se. Depois de a conhecer e experimentar, o
Ocidente expulsou a escravatura, proibiu-a onde governava e estendeu a
proibição a todo o Mundo. Isto nunca acontecera, em qualquer outra civilização,
no Egipto, na Grécia, em Roma, na América pré-colombiana, nas nações árabes ou
nos reinos africanos a Sul do Saará. Por isso, é muito estúpido e manobra de diversão
gastar tempo a lançar culpas sobre esse passado que já passou, em vez de
combater a escravatura que, apesar de proibida, ainda subsiste. Contam-se que são
sobretudo mulheres e crianças, escravizadas no trabalho infantil e no tráfico sexual
– serão ainda 40 milhões de pessoas no mundo.
Os Descobrimentos foram uma grande proeza científica, com meios muito
rudimentares, quer nas embarcações, quer nos instrumentos de navegação.
Impressiona ver réplicas de caravelas e imaginar como foi possível darem a
volta ao mundo. Há quem se amofine, sobretudo no Brasil, com o verbo
“descobrir”: “a nós não nos descobriram nada, já cá estávamos.” A frase estará
parcialmente certa, se for dita por um ameríndio ou seu descendente. Mas não
por qualquer outro brasileiro, emigrante ou descendente de emigrantes – estes
só lá estão, graças às rotas que os portugueses descobriram, mesmo que, hoje,
adaptadas à via área. Por outro lado, é evidente que já lá estava: tudo o que
descobrimos já lá estava, senão não tínhamos descoberto. A terra que é, hoje, o
Brasil já lá estava e todas as outras. O que nós fizemos foi descobrir rotas e
mostrar todo o mundo a todo o mundo. Navegámos as novas rotas e pusemos toda a
gente em comunicação – foi a primeira globalização. Os povos americanos que
encontrámos não sabiam sequer que existia a América, apesar de lá viverem. Fomos
nós e outros navegadores que relevámos esse continente absolutamente
desconhecido: a América. Foi assim por todos os mares até ao Japão e mais além
e, depois, no sentido contrário, na aventura iniciada por Fernão de Magalhães,
a primeira viagem de circum-navegação. As viagens das Descobertas exigiram
extrema heroicidade, sendo muitas as naus e as vidas que se perdiam. A viagem
iniciada por Magalhães, em 1519, por exemplo, era composta de cinco naus,
levando 270 homens; quando do regresso final, à Andaluzia, em 1522, só sobrara
uma nau e 30 homens – Magalhães também morrera no Pacífico.
Olhamos a História com um grande activo de Portugal, um formidável
capital do país e dos portugueses. Creio mesmo que é um dos nossos recursos estratégicos,
um poderoso recurso espiritual, um inspirador recurso moral. Guarda a energia
que nos pode levara de vencida em todas áreas, não temer a inovação, não tremer
diante do risco, desenvolver a capacidade de ousar, alimentar e ambição de
realizar. É um sólido alicerce de relações em todo o mundo. Em suma, uma grande
alavanca de progresso.
É isso que queremos fazer nos próximos anos: conhecer, conhecer,
conhecer, divulgar, apreciar os 900 anos de Portugal.
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